“Cada um no seu quadrado”: a separação de poderes — Rádio Senado
Legislativo - que poder é esse?

“Cada um no seu quadrado”: a separação de poderes

O quinto episódio do podcast “Legislativo – que poder é esse?” fala sobre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, deixando clara a separação entre eles e pontuando os momentos em que um poder exerce o papel de outro. Quem explica é o consultor do Senado João Trindade Cavalcante Filho, em conversa com a jornalista Fernanda Nardelli.

Encontre a transcrição do episódio aqui: https://cutt.ly/yWvz0ew

Produção: Rádio Senado

09/09/2021, 06h00 - ATUALIZADO EM 27/09/2023, 15h32
Duração de áudio: 35:53
Arte: Hunald Vale

Transcrição
Transcrição Episódio 5: – “Cada um no seu quadrado”: a separação de poderes F: Olá, eu sou a Fernanda Nardelli e este é o podcast Legislativo – “Que poder é esse?”. Uma produção da Rádio Senado. Se você está acompanhando o nosso podcast desde o início, já conhece alguns princípios do processo legislativo. Em cada episódio, o consultor do Senado Federal, João Trindade Cavalcante Filho, nos explica o funcionamento do parlamento e nos traz exemplos para que a gente entenda com base no que acontece no dia a dia, os princípios que estão na Constituição. Hoje nós vamos falar sobre os três poderes e o papel e o limite de cada um deles. Vamos lá? F: Hoje, João, nós vamos falar então do princípio, mais um princípio, do processo legislativo. Vamos falar hoje sobre a separação dos poderes, né? A gente tem os três poderes, né. Tem até a Praça dos Três Poderes, um lugar muito bonito aqui em Brasília… e as pessoas até sabem, né? Quais são esses poderes… mas às vezes não fica muito clara essa separação dos poderes, os limites e as atribuições de cada um deles. Então eu acho que a gente podia começar falando sobre esses três poderes. Quais são os poderes? J: Bom Fernanda, é bem interessante, inclusive, que você comece o nosso podcast por esse tema, porque realmente o princípio da separação dos poderes é um princípio que afeta ao Direito Constitucional geral, a Ciência Política em geral, e aplicável ao processo legislativo mais especificamente. Então quer dizer, é bem conveniente que a gente comece vendo primeiro essa aplicação do princípio da separação de poderes ao Direito Constitucional para depois a gente entrar na parte específica das consequências que ele tem no âmbito do processo legislativo. Esse princípio ele vem lá, ele foi popularizado lá na obra de Montesquieu, "O Espírito das Leis", quando lá no capítulo 6º do livro 11, Montesquieu falava, comentando sobre a constituição da Inglaterra, ele dizia que uma das grandes vantagens da constituição inglesa era exatamente dividir as funções, dividir os poderes entre os vários entes do poder, entre os vários entes da Inglaterra. Então havia, por exemplo, uma divisão de prerrogativas e de poderes entre o monarca, a Câmara Alta, a Câmara Baixa e essa ideia basicamente parte então da noção de que é preciso dividir para limitar. Quer dizer, essa é a máxima da separação de poderes, é dividir para limitar. Quer dizer, você divide o poder para evitar o abuso e o arbítrio. Na contemporaneidade, à luz da Constituição brasileira atual, a gente fala que os três poderes são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. E ao contrário do que muita gente pensa, esse princípio da independência e harmonia entre os poderes, que está lá no artigo segundo da Constituição Federal, ele não significa em absoluto que não haja tensões entre os poderes, que não haja, vamos dizer no popular, que não haja briga entre os poderes. Ao contrário, as disputas entre os poderes são características do sistema de divisão de poderes. Você divide o poder exatamente para limitar o poder, exatamente para que um poder coloque um freio, coloque um limite à atuação do outro. Então, no caso brasileiro, você tem a necessidade de que esses poderes atuem de forma harmônica, de forma, vamos dizer assim, com o mesmo objetivo para que o Estado, o poder público, atue. Então a gente pode dizer que ação do poder público no Brasil ela acontece quando há convergência de objetivos entre o Poder Executivo, que na esfera federal é exercido pelo Presidente da República com auxílio dos ministros do Estado; pelo Poder Legislativo, que na esfera federal é exercido pelo Congresso Nacional que se compõe de Câmara e Senado; e também pelo Poder Judiciário, cujo o órgão principal é o Supremo Tribunal Federal. E dentro desse esquema de separação de poderes aí é que entra a importância mais direta desse princípio para o processo legislativo. Dentro desse esquema de separação de poderes, a tarefa de legislar, a tarefa de ditar as regras para a sociedade é majoritariamente, não unicamente, mas majoritariamente, prioritariamente colocada nas mãos do Poder Legislativo. O Poder Judiciário também legisla? Em algumas situações excepcionais, sim. O Poder Executivo também legisla? Em algumas situações excepcionais, também sim, mas a tarefa de legislar é ordinariamente atribuída ao Poder Legislativo. E é claro que isso daí vai influenciar decisivamente o nosso modo de fazer as leis, o nosso processo legislativo. F: Você fala aí dessas exceções, né. Que o Judiciário em algumas situações pode legislar… o Executivo, também. Quais seriam essas exceções e como que funciona? Assim, eu imagino que… estamos falando dos três poderes, eles têm essa separação, e um atuando para fiscalizar ou para julgar o outro… então assim, eu queria que a gente falasse um pouco sobre essas exceções. Como é o processo, vamos dizer assim, o processo legislativo Judiciário. Como é que o Judiciário legisla? J: Bom, essa é a questão principal. Quer dizer, já que é excepcionalmente possibilitado ao Judiciário legislar e ao Executivo legislar, a gente tem que saber exatamente quais são essas exceções, que bases excepcionais são essas. E o Poder Judiciário, ele legisla do ponto de vista material, do ponto de vista do conteúdo. Ele não vai fazer uma lei propriamente dita, mas ele vai fazer um ato que tem força de lei ou que tem conteúdo semelhante ao de uma lei. Quer dizer, um ato geral e abstrato que se aplica a pessoas indeterminadas e a situações genéricas. Por exemplo, quando o Poder Judiciário elabora seu regimento interno, cada tribunal no Brasil tem a prerrogativa de editar uma resolução, instituindo o seu regimento interno. As regras sobre como cada processo anda em cada tribunal, as regras específicas, são dadas pelos próprios tribunais no seu regimento interno. Existe uma lei geral que é o Código de Processo Civil, votada pelo Congresso Nacional, mas respeitada a lei processual, a Constituição diz lá no artigo 96, inciso primeiro, que cada tribunal vai ditar as regras específicas sobre a tramitação dos seus processos ao editar o seu regimento interno. Quando o Judiciário está editando o seu regimento interno, ele está de maneira atípica, de maneira imprópria mas constitucionalmente autorizado, ele está legislando. Também existem algumas situações em que do ponto de vista material, o Judiciário se aproxima de uma função de legislar. Por exemplo, quando ele decide um mandado de injunção. O mandado de injunção está lá no artigo 5º, inciso 71 da Constituição Federal, ele é uma ação por meio da qual alguém leva ao Judiciário a reclamação de que não está podendo exercer um direito fundamental, pelo fato de não haver regra que regulamenta aquele direito fundamental. Então você diz “olha, eu tenho um direito fundamental garantido na Constituição, mas eu estou sem conseguir exercer esse direito fundamental pela falta de uma lei, pela falta de uma regulamentação, pela falta de uma regra”. E aí o Judiciário, excepcionalmente, extraordinariamente, pode dar uma regra transitória, pode dizer “olha, nesse caso, enquanto não for feita a lei pelo Congresso Nacional, ou pela Assembleia Legislativa ou pela Câmara Municipal, conforme se trata de uma lei federal, estadual ou municipal que está faltando… então, enquanto a lei não for feita, você cidadão, vai poder exercer o seu direito com base na regra X." O judiciário, ele faz isso por meio de uma decisão judicial, de um acórdão, mas do ponto de vista material, do ponto de vista do conteúdo, ele também está se aproximando de uma função legislativa. F: Em 2016 foi sancionada a lei que normatizou o mandado de injunção. Eu separei aqui uma matéria da Rádio Senado, da época em que o projeto que deu origem à lei foi aprovado no Congresso Nacional. LOC: “O mandado de injunção é feito para garantir o direito de quem se sente prejudicado pela omissão diante da falta de regulamentação de uma norma constitucional. O Poder Judiciário cobra do órgão competente, seja o Poder Executivo ou Legislativo, a elaboração de uma lei para preencher a lacuna que existe na Constituição. Um exemplo clássico é o direito de greve para os servidores públicos. Como a regra nunca foi regulamentada, o Supremo Tribunal Federal, em 2007, decidiu que até a edição de uma legislação específica sobre o assunto, deveria ser aplicada aos servidores públicos a mesma lei que rege a greve na iniciativa privada. O projeto de lei aprovado pelo Senado determina que o mandado de injunção pode ser individual ou coletivo e apresentado por pessoa física ou jurídica. No caso de mandados coletivos poderão entrar com ação o Ministério Público, a Defensoria Pública, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e Organizações Sindicais.” J: E finalmente o Poder Executivo, ele também legisla, e aí legisla no sentido próprio da palavra mesmo… ele edita um ato legislativo quando ele edita as medidas provisórias. As medidas provisórias que estão lá no artigo 62 da Constituição Federal, que vieram por inspiração do direito italiano lá no artigo 77 da Constituição Italiana, as medidas provisórias que são atos editados pelo Presidente da República com força de lei, quer dizer, valem como se fossem lei antes mesmo de serem apreciadas pelo Congresso Nacional, mas que dependem da aprovação do Congresso Nacional para se tornarem lei, para se transformar em uma lei em definitivo. Então quando o Presidente da República edita a medida provisória, ele está de maneira atípica, porque não é a função primordial dele, ele está de maneira atípica, de maneira excepcional, ele está também legislando, ele está também exercendo a função legislativa. O que é interessante, Fernanda, é que a gente perceba que mesmo que os outros poderes, e notadamente aqui o Poder Executivo, possam legislar, isso nunca é a regra geral, isso é sempre a exceção. Por isso que, por exemplo, a Constituição diz que tem uma lista de matérias sobre as quais a medida provisória não pode tratar. Também, a medida provisória está sujeita a um prazo, se ela não for votada dentro um determinado prazo, ela é considerada rejeitada, ela morre. E também, além disso, o presidente só pode editar medida provisória se estiverem presentes os requisitos de relevância e urgência, e você percebe que ao mesmo tempo em que a Constituição permite que o Executivo legisle, também ela diz “olha, isso daqui não é a regra geral. Isso daqui é uma situação de exceção”. F: Uma situação de exceção e temporária, né? Qual é o prazo que ela tem de validade? J: A Constituição prevê o prazo de 60 dias prorrogáveis uma única vez por mais 60. Tudo bem que esse período fica congelado em caso de recesso do Congresso Nacional. Quer dizer, a medida provisória fica valendo, mas nos períodos de recesso, esse prazo é suspenso, esse prazo tem a sua contagem suspensa. Mas aí se você olhar, então, em não havendo interrupções, você vai ter, então, nesse prazo de 120 dias de vigência da medida provisória. A medida provisória, ela ou vai ser aprovada pelo Congresso e vai se transformar numa lei, vai deixar de ser uma medida provisória e vai virar uma lei em caráter definitivo, ou ela vai ser rejeitada pelo Congresso. Se ela não for votada, não for apreciada nesta janela, ela é considerada rejeitada. A medida provisória, enquanto medida provisória, vai morrer ou porque vai deixar de existir simplesmente ou então porque vai ser convertida numa lei. LOC: “O plenário aprovou nesta terça-feira a medida provisória que facilita a compra de vacinas contra a covid-19. O texto, já aprovado pela Câmara dos Deputados, dispensa a licitação e estabelece regras mais flexíveis para a aquisição de insumos e serviços necessários à imunização. A medida provisória determina que a aplicação de vacinas deve seguir o Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde e autoriza estados e municípios [...]” LOC: “O plenário do Senado aprovou o programa de subvenção ao diesel que autoriza o governo a bancar 30 centavos no preço do combustível. A medida provisória 838 foi editada para acabar com a greve dos caminhoneiros que paralisou o país em maio. Durante a votação na Câmara, os deputados restringiram o incentivo ao [...]” LOC: “O presidente Jair Bolsonaro editou, no início de setembro, a medida provisória número 1000 (mil). Esse número representativo é contado a partir de 2001, mas as medidas provisórias existem desde 1988. As MPs, como são conhecidas, são geralmente vistas por dois aspectos. Podem permitir ações urgentes e necessárias, mas também são criticadas por dar ao Poder Executivo a prerrogativa de [...]” F: Bom, a gente tem aqui também, João, propostas, projetos que são de iniciativa dos outros poderes, né? Então, por exemplo, projetos que são de iniciativa do Poder Judiciário, do Poder Executivo, mas esses projetos, mesmo eles tramitando no Congresso Nacional, eles têm uns limites, não têm? Como é que funciona com relação ao aumento de despesas? Têm algumas coisas que a Constituição prevê levando em consideração essa separação dos poderes, não têm? J: Pois é, a gente até aqui toca nas duas outras consequências, Fernanda, do princípio da separação de poderes. A gente fala em três consequências do princípio da separação de poderes, mais diretamente para o processo legislativo. A primeira foi aquela que a gente já citou, a excepcionalidade de qualquer legislação emanada do Poder Executivo, quer dizer, o Executivo pode legislar, mas é em algumas situações excepcionais em bases excepcionais. E as outras duas consequências são exatamente essas duas que você cita. Primeiro, a existência de hipóteses de iniciativa privativa de outros poderes, quer dizer, a existência de determinados projetos de lei que um deputado ou senador não pode propor, que só pode ser debatido se vier por provocação de outros poderes. Por exemplo: aumento de salário para os servidores do Poder Executivo. Não tenha dúvida que se um deputado ou senador pudesse propor aumento para os servidores do Poder Executivo ia haver uma miríade de projetos para dar aumento pra tudo quanto era carreira do funcionalismo. E aí é considerado uma conduta, essa, perigosa, porque o Congresso estaria, me perdoe ser mais popular, mas o Congresso estaria fazendo cortesia com chapéu alheio, né? Dando um aumento que seria pago com orçamento, não do Congresso, mas do Poder Executivo. Então, por isso o constituinte ao redigir a Constituição, entendeu que, por exemplo, para dar aumento aos servidores do Poder Executivo, isso só pode acontecer no Congresso Nacional por meio de projeto de lei se o projeto for de autoria do próprio Poder Executivo. É como se a Constituição dissesse o seguinte: "olha, quem dá o aumento para os servidores públicos é o Congresso, mas só por provocação de cada poder. Então o Congresso pode dar aumento aos servidores de todos os poderes, mas só se os próprios poderes pedirem”. Então, por exemplo, o Executivo apresenta um projeto de lei para dar aumento aos servidores do Executivo. O Congresso, se concordar, aprova e o Judiciário propõe um projeto de lei para dar aumento aos servidores do Poder Judiciário. O Legislativo, o Congresso, se concordarem aprovam. Nesse caso eu tenho a iniciativa privativa de cada poder exatamente para proteger a independência e harmonia deste próprio poder para, vamos dizer assim, jogar com essa necessidade de convergência. Digamos, só há aumento para os servidores do Poder Executivo, se o Executivo e o Congresso concordarem, que é o caso. Só há aumento para os servidores do Judiciário ou do Ministério Público se a própria instituição e o Congresso concordarem. Por que que um deputado não pode propor aumento para os servidores do Ministério Público? Separação de poderes. E mesmo nesses casos também se admite emenda parlamentar, quer dizer, se admite que um parlamentar proponha alterações no projeto de lei que veio, mas ele não pode por meio de emenda parlamentar, nesses projetos de iniciativa privativa de outro poder, não se pode por emenda parlamentar gerar aumento da despesa. Aqui, para o nosso ouvinte acompanhar de forma bem detalhada, a situação é a seguinte: imagine que o Ministério Público da União enviou, por meio do procurador geral da República, que é o chefe da instituição, enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei dando aumento aos servidores da carreira de técnico administrativo, que ganham, digamos, cinco mil reais e que vão para ganhar sete mil. Esse é o projeto, essa é a proposição. Projeto de lei para dar aumento aos servidores do MPU, do Ministério Público da União, só pode ser proposto pelo próprio MPU. Mas se o Congresso pudesse fazer emendas neste projeto de maneira ilimitada, a gente cairia no mesmo problema, concorda? Se o Congresso pudesse pegar esse projeto e fizesse uma emenda e dissesse “não, senhor procurador geral da República. Para que dar sete mil? Vamos arredondar logo para 10? Eu cairia no mesmo problema, entendeu? Teria uma cortesia com o chapéu alheio. Eu teria um ato do Congresso Nacional que estaria então, vamos dizer assim, gerando obrigação financeira para outro poder, o que seria um desequilíbrio, uma desarmonia entre os poderes. Então por isso tem um artigo que é bem interessante da Constituição, que é o artigo 63. O artigo 63 diz “olha, nesses projetos de iniciativa privativa de outras autoridades, de outros poderes, o Congresso Nacional pode fazer emendas, porém não pode acarretar aumento de despesa, não podem essas emendas acarretarem aumento de despesa. Então, nesse meu exemplo, projeto de lei, de autoria do procurador geral da República, para aumentar o salário, o vencimento dos servidores técnicos do MPU de cinco mil para sete mil reais. O Congresso Nacional pode dizer “não, estamos em um momento de crise, não vamos dar aumento para ninguém”, rejeita esse projeto e aí tá arquivado. O Congresso Nacional pode dizer “aceito dar aumento, mas sete mil é muito. Vou fazer uma emenda para reduzir de sete mil para seis mil”, e seria admissível porque é uma emenda que não está acarretando aumento de despesa prevista. E o Congresso até poderia mexer em outros artigos do projeto de lei desde que mantivesse o vencimento em sete mil. O que não se admite é que o Congresso aumente esse valor total da despesa, que o Congresso faça uma emenda parlamentar que acarrete aumento da despesa prevista. Porque que nos projetos de lei de iniciativa privativa de um poder não pode o Congresso Nacional fazer emendas que acarretem aumento da despesa prevista? Separação dos poderes. Quer dizer, você vê que realmente, Fernanda, o princípio da separação de poderes é um grande princípio, é uma grande diretriz que informa o Direito Constitucional e a vida política brasileira, e ele vai se comunicando para outros caminhos, né? Ele vai se enraizando em vários dispositivos da Constituição. Mas basicamente em termos de processo legislativo, essas seriam as três consequências principais do princípio da separação de poderes. A excepcionalidade de qualquer legislação oriunda do Poder Executivo; a existência de hipóteses de iniciativa privativa de outro poder, quer dizer, casos que o Congresso só pode votar a pedido de outro poder se provocado por outro poder; e a vedação do aumento de despesa por emenda parlamentar nesses projetos de iniciativa privativa. F: A gente falou aqui das exceções, né? No caso do Executivo e do Judiciário também poderem legislar. Isso acontece, também, de o Poder Legislativo ter a prerrogativa, em algum momento, de julgar, por exemplo? J: Sim, sim, acontece. O Poder Legislativo também exerce a função judicante, a função jurisdicional, digamos assim, quando ele, por exemplo, julga determinadas autoridades pela prática de crime de responsabilidade, quando julga o "impeachment" (impedimento) de algumas autoridades. Aliás, aqui, Fernanda, me permita usar a audiência aqui do nosso podcast para fazer um um serviço de utilidade pública, uma prestação de serviço, né? A pronúncia correta, a pronúncia ortodoxa é "impeachment", com o T pronunciado, né? Tem muita gente que fala "impeachman" como se fosse de origem francesa, mas na verdade o instituto é de origem inglesa, né? Então é como pronunciava o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello. Mas feito esse parênteses aqui, quando o Senado Federal, aqui é uma competência privativa do Senado, tá, a Câmara dos Deputados não participa. Claro que na esfera estadual não vai fazer diferença porque vai ser a Assembleia Legislativa unicameral. Mas na esfera federal esse julgamento de autoridades é feito pelo Senado e não pela Câmara, quer dizer, não é uma competência do Congresso Nacional, não abrange a Câmara. Mas então quando o Senado julga autoridades para decidir se elas vão ou não sofrer o impeachment ele está exercendo a função julgadora, uma função judicante. No Senado, por exemplo, está lá no artigo 52, incisos primeiro e segundo, o Senado Federal julga, por exemplo, o presidente da República, o vice-presidente da República e os ministros de Estado, esses últimos nos crimes de responsabilidade conexos com os do presidente ou do vice-presidente da República. Quem tem a grandiosa responsabilidade de tirar o mandato de um presidente eleito pelo voto popular, por entender que ele atentou contra a Constituição, é o Senado Federal, quer dizer, é um órgão do Poder Legislativo. Aliás, não só o presidente, o vice e os ministros, o Senado também julga, por exemplo, impeachment de ministros do STF, de Procurador Geral da República, de conselheiros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público… Existe um grupo de autoridades cuja fidelidade à Constituição é objeto de julgamento pelo Senado Federal e repito, ao exercer essa prerrogativa, o Senado Federal, que é um braço do Poder Legislativo, ele não está legislando, ele está efetivamente julgando, efetivamente produzindo uma decisão de caráter judicante. Até, é interessante saber que a resolução do Senado Federal que julga o crime de responsabilidade tem o nome de acórdão, assim como os dos tribunais, sabe? É realmente como se os 81 senadores formassem um tribunal para julgar aquela questão. F: Em 2018 o Senado se reuniu para julgar a Presidente da República, Dilma Rousseff, por crimes de responsabilidade na edição dos decretos suplementares sem autorização do Congresso Nacional e também por empréstimos junto a bancos públicos. Em um processo que durou 4 meses e meio, os senadores aprovaram o impeachment de Dilma com o placar de 61 votos favoráveis e 20 contrários. Durante todo o julgamento, os trabalhos foram conduzidos pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski. Foi ele quem proclamou o resultado no dia 31 de agosto de 2018. LOC: “O Senado Federal entendeu que a senhora Presidente da República Dilma Vana Rousseff cometeu os crimes de responsabilidade ficando assim acusada, condenada à perda do cargo de Presidente da República Federativa do Brasil.” F: Por que isso acontece, João? O que que tem por trás dessa prerrogativa do Senado Federal. Por que isso acontece? J: Bom, isso acontece em primeiro lugar porque é papel do Poder Legislativo fiscalizar o Poder Executivo. Desde lá da baixa idade média, desde a invasão da Inglaterra por Guilherme de Orange, Guilherme conquistador em 1066 e de forma mais pronunciada, após o reinado de João Sem Terra com a célebre magna carta lá de 1215, desde essas priscas eras, como dizia Augusto dos Anjos, é que a função de fiscalizar é uma função do Poder Legislativo, o Poder Legislativo como representante do povo, ele fiscaliza o exercício dos poderes pelo Executivo. Então aí quando surgiu o Instituto do Impeachment lá na Inglaterra, surgiu com esse julgamento político feito pelo Parlamento Inglês. Depois isso foi para Constituição Americana de 1787, em que se previu também o Senado fazendo esse julgamento de autoridades em caso de alta traição, etc., e veio para o ordenamento brasileiro. Isso, quer dizer, a origem útil disso daí é o fato de que como é o Poder Legislativo que fiscaliza os atos do Poder Executivo, é o Poder Legislativo que vai julgar um eventual atentado à Constituição praticado, por exemplo, pelo Presidente da República. Lembrando que esse julgamento do impeachment não tem natureza de um julgamento criminal comum. A pessoa condenada não vai para cadeia, por exemplo. Não cumpre pena de reclusão, ou detenção, ou multa, não. A pena ou as penas para o impeachment ou as penas para condenação pela prática de crime de responsabilidade são: a perda do cargo; a destituição do cargo ocupado, que é o impeachment propriamente dito; e a inabilitação para exercer qualquer outro cargo ou função pública pelo período de oito anos. É um julgamento de natureza política, feito por um órgão de natureza política, que é o Senado Federal, e com consequências também de natureza política. O impeachment e a inabilitação por oito anos para exercer cargo ou função. F: Além desse julgamento, você falou que o Poder Legislativo fiscaliza o Poder Executivo. Quais são os instrumentos para essa fiscalização? J: Em primeiro lugar existe o requerimento de informações, existe a possibilidade de alguns órgãos colegiados do Senado Federal e da Câmara dos Deputados requisitarem informações aos ministros de Estado, por exemplo, sobre a condução dos respectivos ministérios. “Olha, quero saber qual a política que você está fazendo para enfrentar o problema X... Quero saber qual é o cronograma de implementação do programa de políticas públicas tal..." Então isso é um primeiro instrumento. Outro instrumento também é a própria convocação de ministros do Estado para prestar esclarecimentos às comissões do Congresso Nacional. A gente vê muito, né? O ministro da Educação é convocado para explicar a questão do Enem, ministro da Saúde convocado para explicar plano de vacinação. Então, é um instrumento por meio do qual o Legislativo fiscaliza o andamento das políticas públicas no poder Executivo. LOC: “Na audiência pública marcada para esta quarta-feira, às 10 horas da manhã, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, deve falar sobre a gestão dos testes de detecção do novo coronavírus, comprados pelo governo, detalhando as quantidades, as condições de uso, as metas de distribuição e a possibilidade de descarte. Os exames, que perderiam a validade nos próximos meses, são considerados os mais eficazes para diagnosticar a doença e teriam custado 290 milhões de reais. A autora do pedido, a senadora Eliziane Gama, do Cidadania do Maranhão, afirma que é preciso usar todos os recursos disponíveis para preservar a saúde da população nesse momento de crise sanitária e econômica mundial.” J: Além disso, a gente tem também as comissões parlamentares de inquérito, as famosas CPIs, que estão previstas lá no artigo 58, parágrafo terceiro da Constituição, e cuja principal embora não única função seja fiscalizar os atos do Poder Executivo e investigar eventual má aplicação de recursos públicos, por exemplo... E nós temos ainda a possibilidade de o Legislativo requisitar tomadas de contas aos tribunais de contas, requisitar por exemplo que um tribunal de contas, no caso do Congresso Nacional o TCU, Tribunal de Contas da União, que investigue determinada prestação de contas de um órgão ou entidade, por exemplo, porque há suspeitas de que ali haja uma irregularidade. Aliás, Fernanda, uma curiosidade que pouca gente lembra é que a famosa Operação Lava Jato começou por uma tomada de contas feita pelo TCU na Petrobras, por determinação do Congresso Nacional. O Congresso Nacional determinou ao TCU que investigasse determinados contratos da Petrobras o TCU investigou, descobriu algumas ilicitudes comunicou ao Ministério Público e aí veio toda aquela operação montada com forças tarefas, etc., para investigar esses ilícitos. É uma decorrência desse poder fiscalizatório do Congresso Nacional. F: Esse poder fiscalizatório se estende também ao Judiciário? J: Se estende em certa medida, Fernanda. Por que que eu digo em certa medida? Porque o Legislativo, por meio de determinados instrumentos, ele não pode investigar a atividade fim do Judiciário. Ele não pode investigar, por exemplo, o exercício da jurisdição, porque a jurisdição, o poder de dizer o direito de resolver conflitos da sociedade é exercido pelo juiz de forma fundamentada. Então o juiz diz “ó, estou decidindo aqui, não é porque eu sou um iluminado divino, estou decidindo aqui pelo motivo A, B e C, porque eu entendo que se aplica à lei Z, D, E, F”. Então o Legislativo não pode, por exemplo, por meio de uma CPI, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, convocar um juiz para dizer “por que você deu a decisão X e não Y?” Se fosse possível obviamente qualquer juiz ficaria com medo de tomar uma decisão que desagradasse a maioria política do momento, e tudo que a gente não quer é juiz com medo. O juiz pode ter tudo, menos medo. Juiz que tem medo de decidir é realmente como o árbitro de futebol que está lá com medo de ter a família atacada. Obviamente ele não vai apitar a partida de uma forma imparcial que se exige, que se espera. Então, por exemplo, o artigo 146 do regimento interno do Senado Federal diz que não se admite CPI sobre matérias afetas à atividade fim do judiciário. Você pode investigar licitações feitas pelo judiciário, você pode investigar a conduta funcional do juiz, se eles cometeram alguma ilegalidade, mas você não pode convocar, por exemplo, o ministro do Supremo para dizer “por que você deu a decisão A e não a decisão B?” Isso é uma questão da consciência de cada juiz e da fundamentação de cada juiz. Então, em certa medida, esse poder fiscalizatório se estende ao Judiciário e ao Ministério Público, mas é numa extensão bem menor do que acontece em relação ao Poder Executivo. F: E a gente encerra aqui o 5º episódio do nosso podcast, que conta com a participação do professor e consultor do Senado Federal, João Trindade Cavalcante Filho. Não perca a nossa próxima conversa sobre o princípio da simetria. O podcast Legislativo – “Que poder é esse?” é uma produção da Rádio Senado, com sonorização de André Menezes e Josevaldo Souza e pós-produção de Luana Corrêa. Eu sou a Fernanda Nardelli e te espero no próximo episódio.

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