Tratamento com fitoterápicos aumenta na rede pública de saúde
Guilherme Oliveira | 20/11/2018, 10h52A procura por remédios naturais no sistema público de saúde do Brasil está em alta. No décimo aniversário da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, em 2016, o Ministério da Saúde estimou que a quantidade de pessoas que buscaram os tratamentos à base de plantas havia crescido mais de 160% em dois anos.
A política abriu as portas da oficialidade para os medicamentos fitoterápicos —aqueles produzidos diretamente a partir de plantas — e também para o costume de usar a flora no tratamento de problemas de saúde. Muito ligado à tradição popular brasileira, o costume foi codificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e incorporado ao receituário do Sistema Único de Saúde (SUS), com boa receptividade.
Plantas
Apesar de o uso de medicações alopáticas ainda ser dominante, a busca por tratamentos naturais tem se intensificado, segundo a agrônoma Hellen Santana, que faz pesquisas com plantas medicinais há 12 anos e ministra cursos sobre uso e cultivo no Instituto Oca do Sol, em Brasília. Além das políticas públicas, ressalta, há mais estudos na área, o que amplia a segurança no aproveitamento das ervas e desperta no cidadão a confiança para trocar os produtos da farmácia convencional por extratos e compostos vegetais.
Para Hellen, a tendência é importante para superar o que chama de “uso inconsequente” dos alopáticos.
— É claro que eles têm o seu valor, mas sabemos de todos os efeitos colaterais que existem. Em muitos casos, dá para dispensar. Há situações e sintomas que não precisam [desses remédios], podemos tratar com plantas.
Hellen também acredita que a disseminação das terapias naturais pode impulsionar um ciclo virtuoso: quanto mais as pessoas estejam dedicadas a descobrir o potencial preventivo e curativo das plantas medicinais, mais incentivo haverá para que pesquisadores e empresas direcionem esforços para a área.
— Valorizo muito a tradição oral. Começa-se a pesquisar uma planta a partir de um uso popular, porque é inviável economicamente estudar do nada.
Responsável pela fiscalização do setor, a Anvisa mantém uma compilação de plantas e suas diversas utilidades, formas de aproveitamento, posologias e contraindicações: a Farmacopeia Brasileira. O documento serve de base para Hellen nos cursos. Ela adverte que a medicação natural não deve ser considerada inofensiva e que as experiências pessoais podem e devem variar. Portanto, é preciso cautela e pesquisa.
— É um pontapé para a pessoa despertar e começar a usar, mas não acaba aí. O estudo é infinito. Se você tem vontade de se tratar mais, ou tratar outros, tem que buscar conhecimento.
Projeto
Outra entusiasta do uso de plantas para o tratamento da saúde é a senadora Regina Sousa (PT-PI). Ela é relatora do PLS 353/2017, que pode estabelecer incentivos para o cultivo doméstico de vegetais com propriedades médicas.
— Incentivo as pessoas a saírem da mentalidade de "remédio na farmácia para qualquer coisa". Acredito muito no saber tradicional, que é a primeira fonte para a pesquisa e a indústria.
O projeto trata de agricultura urbana sustentável. Segundo o texto, diversas modalidades de cultivo nas cidades (entre os quais o de plantas medicinais) poderão fazer jus a vantagens como benefícios fiscais, crédito, assistência técnica, capacitação e aquisição governamental da produção.
Para Regina, a disseminação do cultivo dessas plantas tem vantagens que vão além da seara da saúde: também pode ajudar na otimização do uso do solo urbano.
— Importante no projeto é a ocupação de terra ociosa. Em certas áreas, como embaixo de linhas de transmissão, não se pode construir, mas se pode cultivar. Nelas as pessoas podem produzir e gerar renda e emprego — defende.
A senadora explica que a concessão dos incentivos pode ser subordinada a critérios de rigor científico e de comprovação de efetividade das plantas e também a uma fiscalização específica. Os detalhes ficarão a cargo de uma regulamentação posterior, provavelmente em níveis estadual e municipal. Porém, segundo ela, como já existe reconhecimento e normatização dessas práticas pela Anvisa e pelo SUS, já há um ponto de partida institucional para guiar a regulamentação futura.
O projeto, que é de autoria do senador Eduardo Braga (MDB-AM), já está pronto para votação na Comissão de Meio Ambiente (CMA). Depois, passará pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), onde terá votação final.
Rigor
A destinação de recursos e incentivos públicos para o uso de tratamentos fitoterápicos é um tópico que suscita alguma cautela. O costume dos chás, xaropes e emplastros caseiros pode ter a seu favor o teste do tempo e o filtro da tentativa e erro, mas nem sempre atravessou as barreiras científicas que levam à medicina formalizada.
A incorporação de plantas medicinais pelo SUS é vista com reservas pela pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo , a bióloga Natalia Pasternak. Ela é fundadora do Instituto Questão de Ciência, organização voltada à divulgação científica.
Para a pesquisadora, o uso pessoal e o compartilhamento comunitário de tratamentos com plantas medicinais são práticas protegidas pela liberdade individual, mas a inclusão no cardápio do sistema estatal de saúde é uma discussão à parte. A formulação de políticas públicas, argumenta ela, não deve se condicionar ao embasamento empírico.
— Quando você coloca no sistema público práticas que não têm respaldo científico, está usando dinheiro coletivo de forma inadequada. Os recursos arrecadados [da população] devem ser direcionados prioritariamente para o que tem evidências.
A bióloga explica que produtos fitoterápicos que não passaram pelas devidas provas de laboratório que caracterizam os remédios não possuem garantia de eficácia ou de segurança. Isso não significa que qualquer uso seja necessariamente inócuo ou perigoso, mas a chance será maior do que com um remédio verificado cientificamente.
— Temos que testar como [as plantas] interagem com outros medicamentos, qual é a dose que funciona, se são seguras para gestantes, crianças, idosos. O produto fitoterápico não foi testado para nada disso. Pode ser que funcione, afinal princípios ativos são extraídos da natureza, mas a informalidade sempre vai apresentar um risco — argumenta.
O risco, destaca a cientista, todos têm o direito de correr individualmente. Por isso, não se pode extrapolar para o foro privado as restrições que são necessárias sobre as ações do poder público. Seria um absurdo a pessoa ser fiscalizada em sua própria casa. Se ela quiser se tratar com os fitoterápicos de que gosta, deve ter todo o direito. Só não se pode confundir isso com o sistema público — completa.
Remédios
A preocupação científica se concentra sobre as plantas medicinais in natura e os produtos diretamente extraídos delas. Em situação diferente se encontram os medicamentos fitoterápicos desenvolvidos em laboratório. São remédios que têm como ponto de partida as plantas, mas que passam por todas as etapas requeridas para os medicamentos alopáticos comuns.
Os fitoterápicos são, portanto, remédios formalizados, conforme explica a professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Maria Thereza Gamberini.
— Considera-se medicamento desde que exista validação de eficácia, segurança e reprodutibilidade de efeitos. Se o medicamento já está na farmácia, essas informações já estão estabelecidas.
Etapas
O processo para consolidar um remédio é longo. Começa com testes pré-clínicos, que envolvem experimentação em animais de crescente complexidade genética. Dependendo dos resultados farmacológicos e toxicológicos, passa-se, então, aos testes clínicos, em que se verifica a aplicação em humanos. Apenas depois disso é que se pode pensar em comercializar.
No Brasil, a conclusão desses passos pode levar de 10 a 15 anos, segundo Maria Thereza. De acordo com ela, a valorização da comprovação científica sinaliza um grande potencial para os fitoterápicos. De fato, a pesquisa na área é forte no país. Entretanto, o volume de produção ainda decepciona.
— Ficamos aquém do que poderíamos. As indústrias farmacêuticas não têm uma filosofia de desenvolvimento de novos medicamentos. Elas priorizam a comercialização de princípios ativos que vêm do exterior, só colocados em forma farmacêutica para venda — lamenta.
Essa atitude significa “deixar dinheiro na mesa”, conforme o professor de ciências farmacêuticas e ex-reitor da Universidade Federal do Amapá (Unifap) José Carlos Tavares.
— O tempo a ser gasto na pesquisa de um fitoterápico é menor do que no remédio sintético. Em termos de lucro, nem se compara. É um mercado aberto, principalmente quando tem uma característica totalmente nova. Fitoterápicos que vieram do exterior, a partir de plantas europeias, estão ganhando muito dinheiro.
Tavares lamenta a falta de investimento e crédito voltados para o desenvolvimento do setor. Também destaca a necessidade de uma formação profissional que valorize os produtos fitoterápicos. Ele afirma que existe demanda social, mas ela ainda precisa ser mais bem atendida pela comunidade médica.
— Muitas vezes o camarada tem na cabeça apenas o chazinho da feira. Fitoterapia não é isso. Já está extremamente desenvolvida, em alguns países é a primeira opção. Observamos os medicamentos novos nos congressos e sempre tem algum à base de planta sendo introduzido — alerta o pesquisador.
Direito
Um estudo da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, divulgado no início deste mês, estima que a vida orgânica da biodiversidade brasileira tem uma “atividade econômica” anual equivalente a R$ 12 bilhões. Isso significa que a instrumentalização inteligente do potencial natural do Brasil representaria uma significativa injeção de ganhos para o país.
Mas as ferramentas para aproveitar o potencial ainda são tidas como insuficientes. O país tem uma legislação de proteção ambiental considerada avançada, começando pela Constituição de 1988 e chegando ao Marco Legal da Biodiversidade, de 2015. Entretanto, faltam instrumentos para alavancar o desenvolvimento sustentável.
O jurista Vladimir Passos de Freitas manifesta preocupação com esse cenário. Especialista em direito ambiental, ele é membro da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e preside o conselho da International Association for Court Administration (Iaca), entidade global que promove administração judicial.
Para ele, o excesso de burocracia do Brasil leva a um reconhecimento de patentes muito lento, o que impede os cientistas e empreendedores nacionais de transformarem suas pesquisas em produção oficial. E esse mesmo arcabouço de regras não se aplica necessariamente a atores estrangeiros.
O resultado é que as iniciativas brasileiras para aproveitar o material nativo perdem espaço para incursões de outros países, o que se transforma em lucros para empresas não brasileiras em detrimento do que poderiam ser ganhos econômicos e sociais no cenário interno.
— Argumentam que estamos impedindo a fabricação de novos remédios porque nós mesmos não fazemos a pesquisa e que é um absurdo privar a humanidade disso por questão de proteção de um país. Quem investe mais consegue descobrir e patentear, e nós temos que pagar ou, no mínimo, não podemos mais exportar.
Para superar o problema, avalia Freitas, o Brasil precisa “tomar a dianteira”, valorizando a pesquisa e a produção no âmbito nacional.
De acordo com ele, o país também deveria acentuar esforços para garantir que empresas estrangeiras que exploram a biodiversidade brasileira promovam distribuição de lucros e compensação a populações locais. Outra medida importante, afirma, seria a criminalização mais severa de tentativas de contrabando.