Trajetória de Teotônio Vilela é lembrada no centenário de seu nascimento

Larissa Bortoni | 02/06/2017, 19h48

Os dicionários definem democracia como o sistema político em que o poder é exercido pelo povo através do voto universal. Outro significado poderia ser “Teotônio Vilela”. O Menestrel da Alagoas nasceu há cem anos, no dia 28 de maio de 1917.

O filho de usineiro, nascido em Viçosa, pequena cidade a cerca de 100 quilômetros de Maceió, cortou o Brasil durante bom período da ditadura militar bradando pela democracia e mais especificamente pela anistia política. Pouco antes de morrer, em 1983, Teotônio Vilela ainda foi um dos nomes do movimento Diretas Já, pela aprovação de proposta de emenda à Constituição que reinstituía no Brasil as eleições diretas para presidente da República.

Assim como muitos dos filhos do Nordeste do começo do século passado, Teotônio deixou a casa da família para estudar na cidade grande. No Recife e no Rio de Janeiro, frequentou faculdades, mas não chegou a concluir o ensino superior. Em 1937, largou a sala de aula e voltou para Alagoas. Seguindo o caminho já trilhado pelo pai, abraçou a lida de usineiro.

Ainda em Alagoas, casou-se com Helena. Aos poucos, foi tomando gosto pela política. Filiou-se à União Democrática Nacional (UDN), partido de orientação conservadora que fazia feroz oposição ao presidente Getúlio Vargas.

A porta de entrada no mundo da política formal foi a Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas, em 1954. Lá, juntou-se à chamada bancada do açúcar, que reunia representantes dos usineiros. Seis anos depois tornou-se vice-governador na chapa do general udenista Luiz de Souza Cavalcante.

Estava em Alagoas quando os militares derrubaram o presidente João Goulart e tomaram o poder, em 1º de abril de 1964. O golpe contou com o apoio de Teotônio.

O homem da democracia entrou na carreira política como um político conservador, como explica o consultor do Senado Marcos Magalhães.

- O fato de fazer parte de uma família de usineiros e de ser proprietário de uma grande usina não o deixou insensível ao drama socioeconômico que era representado pela própria existência do latifúndio naquelas condições em que nós o verificamos desde o seu passado secular, já de três séculos – explica.

Para o historiador, a aristocracia dos usineiros nordestinos, nos primeiros anos do século passado, tinha uma visão mais crítica da formação socioeconômica do Brasil, calcada nos modelos coloniais de exploração do trabalho escravo. A província do Ceará, por exemplo, foi a primeira a abolir a escravidão, quatro anos antes da Lei Áurea. Essa tradição pode ter influenciado o político alagoano.

Umas das primeiras resoluções da ditadura iniciada em 1964 foi a extinção dos partidos que atuavam até então. Aos políticos, duas alternativas: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) – que apoiava o regime militar – ou o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que representava a oposição consentida. Teotônio tomou o rumo da Arena.

Ainda em abril de 1964, a junta militar instalada no comando do Brasil assinou o Ato Institucional nº 1, o AI-1.  Com isso, passaram a ter poder para suspender os direitos políticos de qualquer cidadão.

Começaram as cassações. Entre os primeiros, estavam o líder comunista Luís Carlos Prestes; os ex-presidentes João Goulart e Jânio Quadros, os ex-governadores de Pernambuco, Miguel Arraes, e o do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Também figuravam na lista o antropólogo e educador Darcy Ribeiro e o economista Celso Furtado. Dois anos depois, em 1966, Teotônio Vilela foi eleito senador pela primeira vez. Dois anos antes da edição do Ato Institucional nº 5, o mais duro do regime militar.

O AI-5 concedeu aos generais mais poderes para reprimir a oposição. Podiam, por exemplo, fechar o Congresso e outras casas legislativas, cassar mandatos eletivos e suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer pessoa. Também acabava a garantia do habeas corpus. Assim, os opositores presos não tinham a quem recorrer na busca por liberdade.

Houve outra leva de cassações. Em 1969, 333 políticos tiveram direitos políticos suspensos. O Congresso Nacional ficou fechado dez meses e, em protesto, até mesmo um grupo de senadores da Arena assinou um manifesto contra o ato, entre eles, Teotônio Vilela.

No rastro dos atos institucionais estava o exílio. Milhares foram forçados a deixar o país.  Assim o fizeram porque não havia outra saída. Assim o fizeram inclusive para escapar da morte.  O clima era de medo; da repressão, das prisões, da tortura, do assassinato, do desaparecimento.

Os alvos eram políticos contrários ao golpe, mas também cidadãos – na sua grande maioria jovens – que, de maneira desorganizada, ousaram enfrentar a ditadura.

Geisel

O Brasil vivia os piores momentos da ditadura, quando Teotônio Vilela se reelegeu para o Senado em 1974, ainda filiado à Arena, o que foi um feito. Naquele ano, o partido que apoiava os militares levou uma surra nas urnas. Elegeu seis senadores, enquanto o MDB preencheu 16 cadeiras.

Era um momento de renovação. Na leva de novos nomes, chegaram ao Senado Marcos Freire (PE), Paulo Brossard (RS), Itamar Franco (MG) e Orestes Quércia (SP). “Lideranças que teriam um papel decisivo no período de transição”, lembra Marcos Magalhães.

Mas enquanto o Senado recebia novas caras, a ditadura mantinha os generais no Palácio do Planalto. Ernesto Geisel venceu a disputa no Colégio Eleitoral, em escolha indireta, em janeiro de 1974.

O opositor, o deputado Ulysses Guimarães, do MDB de São Paulo, anticandidato (uma forma de denunciar a eleição ilegítima), perdeu de lavada. Foram 84% dos votos para o general da Arena. Um retrato da falta de espaço para a oposição no Congresso Nacional.

Cada vez mais incomodado com os rumos do país, Teotônio se reuniu com o presidente Geisel.

No livro “Teotônio, guerreiro da paz”, o jornalista e ex-deputado federal cassado pelo AI-5, Márcio Moreira Alves, lembra como se deu a conversa entre o senador e o general.

“Geisel me disse que a meta política do seu governo era o restabelecimento da democracia. Não cabia a mim perguntar o que ele entendia por democracia, que limitações ou que salvaguardas queria impor para preservar o regime (…). Expus ao presidente as minhas ideias e lhe disse que podia contar comigo. Ele ouviu e se limitou a fazer dois pedidos: que não me aproximasse do Paulo Brossard (líder do MDB) e que não brigasse com o Petrônio Portela (Arena), que fora escolhido para negociar a abertura com a oposição. À saída, eu disse ao Geisel que seria fiel ao pensamento que ele me revelara e que só voltaria ao Palácio se fosse expressamente chamado por ele. Ele não me chamou e eu nunca mais voltei”.

Embora ainda filiado ao partido dos militares, Teotônio endurecia cada vez mais suas críticas ao regime, a ponto de exasperar outros arenistas, como Jarbas Passarinho. “Se nós temos um correligionário como Teotônio Vilela, não precisamos ter oposição”, afirmou o então senador pelo Pará, que havia sido ministro da Educação.

Distensão lenta

Em agosto de 1974, Ernesto Geisel apresenta seu projeto de abertura "lenta, segura e gradual". Sinalizava assim para uma maior possibilidade de diálogo com a oposição e a sociedade civil.

O general-presidente agiu para acabar com a tortura – marca dos anos do presidente Emílio Garrastazu Médici. Mas as ações de Geisel não foram suficientes para acabar com as mortes nos porões da ditadura.

Duas das mais emblemáticas ocorreram quando o processo de abertura já tinha se iniciado, indicando que os carrascos não aceitariam a abertura facilmente. O jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho foram mortos na sede do DOI-Codi de São Paulo. Nos dois casos, os torturadores simularam suicídios.

Com a Emenda Constitucional nº 11, de 1978, Ernesto Geisel restabeleceu o habeas corpus e revogou todos os atos institucionais em vigor, inclusive o AI-5. Ainda assim, durante os cinco anos do general no Planalto foram registrados 39 desaparecimentos e mais de mil episódios de tortura.

Um dos slogans da ditadura era “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Os militares apelavam para o amor à pátria, tentando passar a ideia de que a oposição ao regime era uma oposição ao Brasil. Os militares insistiam também na tese de que os adversários do regime criticavam, mas não eram capazes de apresentar alternativas concretas para o país.

A estratégia dos militares levou Teotônio e seu parceiro na luta pela democracia, Raphael de Almeida Magalhães, a colocarem no papel propostas para a nação. Assim nasceu o Projeto Brasil, em que reivindicavam o retorno da democracia e das liberdades individuais. Entre as solicitações estavam a liberdade de organização sindical e eleições direta para presidente e governadores.

Anistia sem democracia

O ano de 1979 trouxe o último presidente militar, escolhido em mais uma eleição indireta. Com promessas de dar continuidade à abertura, João Batista Figueiredo, apresentou ao Congresso, em junho, seu projeto de anistia.

“A anistia tem justamente este sentido de conciliação para renovação, dentro da continuidade dos ideais democratizantes de 1964 que hoje reencontram sua melhor e mais grandiosa expressão”, afirmou Figueiredo.

Teotônio ouviu as palavras do presidente já como integrante do MDB. O filho do Menestrel das Alagoas, o também ex-senador, Teotônio Vilela Filho, lembra que o pai estava cada vez mais inconformado com o regime.

- Ele começava a discordar dos rumos do processo de abertura democrática. Depois que ele esteve com Geisel, saiu pelo país pregando [pela abertura], mas a linha dura [da ditadura] resolveu pôr uma trava no processo de abertura. Ele ficou muito incomodado com aquilo e mudou [de partido] – relembra o ex-governador de Alagoas.

A cerimônia de filiação ao MDB aconteceu de forma improvisada no gabinete do deputado Ulysses Guimarães. “Eu sou um doido que perdeu o rumo do hospício. O que quero é que me deixem andar pelo Brasil”, disse Teotônio sobre seu desejo de pregar a favor da democracia, conforme relato de Ulysses, recolhido por Marcio Moreira Alves.

Já nas fileiras do MDB, Teotônio ocupou a presidência da comissão que analisou o projeto de lei de anistia. Encontrou ali mais uma causa para lutar. Percorreu cadeias em visitas a presos políticos. Disse que em nenhuma delas achou terroristas, “mas jovens na luta pela democracia”. Teotônio via a anistia como a oportunidade de o Brasil se reencontrar como nação.

“Anistia não é uma concessão à divergência; não se faz apesar da divergência, ao contrário, busca-se por causa das divergências”, apelava o líder.

O projeto do governo enfim foi a voto em agosto de 1979. O relatório do deputado Ernani Satyro, da Arena, foi aprovado de forma simbólica, mas para Teotônio Vilela, o texto não atendia as necessidades da sociedade brasileira. Ele via no projeto uma tentativa de sobrevivência do regime. “O que está em votação é uma demonstração nítida de poder tutelar, que podendo tudo, resolve fazer do clamor nacional pela anistia uma manobra de reabastecimento de força”, afirmou.

“Tudo nos foi negado. Não precisava de maneira alguma de votação. Bastam os pelotões que lotam essas galerias. Eu peço ao Congresso Nacional que promova a rebelião das consciências, antes que venha a rebelião das massas”, apelou.

Teotônio deixou claro que voltaria a defender a anistia ampla, geral e irrestrita.

O projeto de lei de anistia dos militares foi sancionado no dia 28 de agosto de 1979 pelo general João Batista Figueiredo. A interpretação, que causa controvérsia até hoje, é que a anistia teria que ser recíproca, beneficiando tanto os militantes políticos quanto os agentes do estado. Seus críticos dizem que a lei acabou deixando impunes pessoas que cometeram atos bárbaros, inclusive crimes contra a humanidade, sob a proteção do Estado.

Último ato

Com os banidos pela ditadura voltando ao Brasil, Teotônio Vilela passou a brigar com mais afinco pelo direito de o povo brasileiro voltar a eleger seu presidente. Do cartunista Henfil veio a charge em que Teotônio, com bengala na mão, chapéu na cabeça e o bigode peculiar, gritava “Diretas Já!”.

No carnaval de 1983, Henfil foi a Alagoas conversar com Teotônio. A entrevista foi parar nas páginas do Pasquim. Falar com a imprensa sobre a luta pela democracia aumentava o vigor do ex-senador, já muito debilitado pelo câncer.

- A última entrevista que ele deu foi ao Henfil e com um entusiasmo extraordinário. Ele estava um pouco sonolento, e o Henfil chegou com um gravador. Logo ele sentou na cama, começou a falar com entusiasmo. O Henfil dizia que “o remédio para ele é pedir para falar sobre o Brasil” – lembra Teotônio Vilela Filho.

Na entrevista histórica, o grande líder da democracia denunciou a tortura e lamentou que o medo estivesse oprimindo o brasileiro. “Foi o que determinou a fase terrível de 68, depois do AI-5, com uma violência brutal e sem limites. Este medo mantém o brasileiro numa posição de muita tolerância para com os abusos cometidos. Nas escolas, universidades, associações profissionais, instituições políticas, instituições militares, o medo faz com que estes organismos não tenham um funcionamento”, disse.

Teotônio morreu de câncer em 27 de novembro de 1983. A doença tornara-se pública no ano anterior. Companheiro de luta, o ex-senador Pedro Simon lembra com carinho que Teotônio percorreu o Brasil com a saúde já abalada.

- Ele foi a grande voz, a grande liderança e, durante um tempo, o grande nome da vida pública brasileira. Um herói. Ele teve quatro cânceres, foi operado, andava com duas bengalas e depois de cadeira de rodas, percorrendo o Brasil e fazendo uma campanha fantástica – relata.

Teotônio sempre tinha uma resposta pronta para os que vinham falar sobre o câncer: “O Brasil está mais doente, precisava de mais cuidados”, lembra Teotônio Filho. Defender a democracia naquelas condições criou algo novo no coração dos brasileiros em termos de dignidade e amor à pátria, avalia.

No dia em que Teotônio Vilela morreu, era realizado em São Paulo um dos 48 comícios pelas eleições diretas. O alagoano não viveu para ver o Brasil voltar a escolher presidente no final de 1989, mas deixou um legado de luta pelas liberdades democráticas, expresso em seu discurso de despedida do Senado, em novembro de 1982.

“A vida política continua comigo, continuarei lutando lá fora, só não terei o privilégio de usar esta ou aquela tribuna. Quanto ao mais, prosseguirei na minha vida de velho menestrel, cantando aqui, cantando ali, cantando acolá, as minhas pequeninas toadas políticas”.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)