Merenda escolar é vigiada no país por 80 mil “detetives”
Ricardo Westin | 07/08/2018, 08h54
Em Brasília, colégios públicos servem pipoca como prato principal das crianças. Na cidade de São Paulo, o diretor de uma escola municipal marca com caneta a mão das crianças que já lancharam, para impedir que voltem para a fila e comam outra vez.
No estado de São Paulo, uma CPI investiga propinas pagas na aquisição do lanche de colégios estaduais. Em Bom Jardim (MA), a prefeita acusada de embolsar verbas da merenda e exibir nas redes sociais sua vida luxuosa ganha a alcunha de “prefeita ostentação”.
Recorrentes no noticiário, problemas como esses se explicam, em parte, pelo gigantismo do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o que dificulta a fiscalização.
Por meio do programa, o Ministério da Educação (MEC) investe bilhões de reais para que diariamente haja merenda em todas as escolas públicas do Brasil — municipais e estaduais, da creche ao ensino médio.
O dinheiro vai para os 5.570 prefeitos e os 27 governadores, que compram os alimentos que serão preparados pelas merendeiras e servidos aos estudantes. No ano passado, o MEC aplicou R$ 3,9 bilhões.
Devido à capilaridade e à descentralização do programa, o MEC não tem braços suficientes para vigiar o destino da verba. Tal missão é confiada aos 5.597 Conselhos de Alimentação Escolar, um para cada prefeitura e governo estadual.
Os conselhos são formados por voluntários da sociedade e do poder público que trabalham sem receber salário.
Como detetives, 80 mil conselheiros investigam com lupa tudo que envolve a merenda: o depósito do dinheiro federal na conta bancária, a prestação de contas do município ou do estado, a escolha dos alimentos, a licitação, a entrega dos produtos, as condições de armazenamento, a higiene das cozinhas, o preparo e o valor nutricional das refeições e até mesmo a satisfação dos alunos.
Para ajudar os conselheiros na investigação, o MEC e o Tribunal de Contas da União (TCU) recentemente publicaram uma cartilha contendo dicas bem práticas — como averiguar se a empresa de alimento vencedora da licitação não pertence a algum político e verificar se a lixeira do refeitório não fica cheia depois do lanche, o que indicaria comida ruim.
Maquiar realidade
O vice-presidente do Conselho de Alimentação Escolar do Distrito Federal, André Luiz de Souza Santos, afirma:
— As visitas que nós fazemos às escolas são de surpresa, sem aviso, para que os diretores não tenham tempo de maquiar a realidade. Ainda há diretores que só olham o ensino e negligenciam a alimentação. Não percebem que a criança com fome não consegue assimilar o que o professor ensina.
O coordenador-geral substituto do Programa Nacional de Alimentação Escolar, Valmo Xavier da Silva, acrescenta:
— Existem casos, e não são poucos, de crianças muito pobres que comem apenas no colégio. É só por causa da alimentação escolar que elas vão todos os dias para a aula.
No ano passado, no Cruzeiro (DF), um menino de 8 anos desmaiou de fome assim que chegou à escola pública onde estudava e teve que ser socorrido por uma ambulância.
Valor congelado
O MEC destina um valor fixo à alimentação de cada aluno. Para um estudante do ensino fundamental ou médio, são R$ 72 por ano (R$ 0,36 por dia letivo). Para uma criança da creche, R$ 214 por ano (R$ 1,07 por dia).
— Os valores são um absurdo, incompatíveis com o preço dos alimentos praticados no Brasil — critica a senadora Rose de Freitas (Pode-ES).
Por essa razão, o dinheiro do MEC precisa ser complementado por prefeituras e estados, mas isso nem sempre ocorre.
Rose lembra que o valor dos repasses federais passam longos períodos congelados. De 2012 a 2016, não tiveram reajuste. O último aumento foi em 2017. Por isso, ela redigiu um projeto que obriga o governo a reajustá-los anualmente conforme a inflação. O PLS 394/2016 está na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).
Em outra frente, o senador Roberto Rocha (PSDB-MA) apresentou um projeto que duplica o repasse federal para os alunos que vivem em cidades em situação de extrema pobreza (onde pelo menos 30% da população tem renda familiar mensal de até R$ 77 per capita). O PLS 217/2015 é estudado pela Câmara.
— As necessidades nutricionais de crianças e jovens são as mesmas em todo o país, mas são muito diferentes as suas possibilidades de tê-las supridas adequadamente. Nos municípios pobres, ainda há desnutrição infantil — diz.
Roberto Rocha também é autor do PLS 216/2015, que transforma o desvio de dinheiro da merenda em crime específico, listado no Código Penal, com pena de até 14 anos de prisão. O projeto está pronto para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Os problemas que os conselheiros encontram devem ser denunciados ao MEC, ao TCU, ao Ministério da Transparência e Fiscalização, à Polícia Federal, ao Ministério Público, à Assembleia Legislativa ou à Câmara Municipal.
Reality show
Para que as boas práticas na merenda se tornem conhecidas e sejam replicadas, o governo tem apostado em competições nacionais. Está com as inscrições abertas um concurso destinado aos conselheiros. O MEC receberá até o dia 19 a descrição das experiências dos conselhos municipais e estaduais e escolherá as 15 mais inovadoras e criativas para publicar num livro.
Uma competição dirigida às merendeiras selecionou as receitas mais nutritivas e saborosas preparadas por elas para os estudantes. As dez vencedoras agora estão gravando o programa Super Merendeiras, da TV Escola, um reality show nos moldes do Masterchef, em que jurados elegem o melhor prato de todos.
A alimentação escolar virou política pública em 1955, no governo Café Filho. A ação foi batizada de Campanha de Merenda Escolar, que lentamente cresceu até virar o maior programa do gênero no mundo. Em 1988, a alimentação escolar se transformou num direito constitucional dos estudantes
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)