Para IFI, 2027 será o ano do inevitável rearranjo das finanças públicas no Brasil
A Instituição Fiscal Independente vem falando do inevitável rearranjo das finanças públicas em 2027, há mais de um ano. Na Nota Técnica, que acaba de publicar, levanta um debate e lança um alerta sobre a necessidade urgente de se repensar toda a dinâmica fiscal e sua estrutura de gastos. O autor da nota e diretor-executivo da IFI, Marcus Pestana, procura mostrar que o equilíbrio fiscal é também um desafio federativo.
“A gente demonstra, muito claramente, que a situação da maioria dos municípios e da maioria dos estados, é muito melhor do que a da União. Os municípios e os estados, somados, estão investindo mais que o governo federal. Coisa que não acontecia no Século XX e no início do Século XXI.”
Pestana falou sobre essas e outras questões orçamentárias e fiscais do País com a jornalista Mara Luquet, do Canal MyNews.
Confira a entrevista na íntegra:
Marcus, pelo último relatório que vocês soltaram, o que mais me chamou atenção é que houve um alívio para estados e municípios, mas, uma piora da União. É isso?
Essa Nota Técnica visou, exatamente, clarear essa questão. Para o nosso espectador entender bem, o governo tem uma série de tarefas que a sociedade, as famílias, as pessoas, a iniciativa privada não conseguem dar conta, não é papel desses segmentos da sociedade suprirem, por exemplo, segurança pública. A Polícia Militar, a Polícia Civil, o aparato do judiciário. Também a escola pública, para quem não pode pagar uma escola particular. O SUS para quem não tem plano de saúde, que não tem a quem recorrer. Então isso tudo são tarefas, como algumas construções de estradas, moradia popular, esgoto, água, isso são tarefas do poder público. Para isso, é preciso coletar impostos. É preciso pegar uma parte da renda da sociedade e trazer através dos impostos, para financiar a máquina do governo, os investimentos e as políticas públicas.
O que a gente procurou demonstrar, é que os dois mecanismos mais importantes de financiamento das atividades públicas, do poder público, sejam das prefeituras, dos governos estaduais, seja do governo federal, da União, estão esgotando: o aumento de impostos, e o endividamento. Nenhum dos dois mecanismos tem fôlego de longo prazo no Brasil. O Brasil já tem uma dívida muito grande, uma das maiores dívidas entre os países latino-americanos, os BRICS, os emergentes, isso prejudica e inibe a capacidade de investimento. E a carga tributária é a maior, recordista, medalha de ouro entre os países latino-americanos e emergentes. Isso mais do que sufoca o desenvolvimento.
Essa nota, procurou mostrar, então, que, por um lado, o endividamento e aumento da carga tributária, em poucos anos, em uma perspectiva histórica, vão se esgotar. E, procura mostrar também, que o problema não é só do governo federal, do presidente da República. O ajuste fiscal, o equilíbrio das contas públicas, que é um assunto que interessa a todos, é uma tarefa que deve envolver todos os atores da Federação, ou seja: municípios, estados e União e todos os atores da República, os poderes executivo, legislativo e judiciário. E, a nota técnica que nós publicamos procura desmistificar uma ideia que é recorrente a um cacoete, ao "uso do cachimbo que faz a boca torta", de que estados e municípios são uns "coitadinhos" que toda hora precisam recorrer a "Mãe União". Bate na porta para que a União gere soluções para os seus problemas orçamentários financeiros. E a gente demonstra, muito claramente, que a situação da maioria dos municípios e da maioria dos estados é muito melhor do que a da União.
Mostramos nesta nota técnica, que, do investimento público, que é pequeno, mas é ainda sim importante, os municípios, os estados, somados, estão investindo mais que o governo federal. Coisa que não acontecia no Século XX e no início do Século XXI. Então mudou o perfil. Os estados e os municípios, na maioria, estão melhores do que a União. Tem estados quebrados, em situação de estrangulamento por sua trajetória durante as últimas décadas, e alguns municípios que sofrem com escassez porque são pobres.
A IFI não opina, não dá os caminhos, só faz o diagnóstico, apresenta números críveis, consistentes, apartidariamente, e, lança alertas. E o alerta que a gente lança é que o endividamento e o aumento da carga tributária estão se esgotando como mecanismo de financiamento das atividades públicas e que esse não é um problema só da União. Tem que haver um rearranjo do padrão de financiamento do setor público, um ajuste fiscal, uma reforma fiscal nos três níveis de governo: prefeituras, estados e governo federal. E esse último socorro, o alívio na dívida de municípios e estados que foram duas medidas tomadas, um projeto de lei e uma emenda constitucional aprovadas em 2025, é que eu imagino que seja a última vez que a União socorre estados e municípios porque esses estão melhores que a União.
Marcus, isso que você tá falando é muito importante pelo seguinte: se estados e municípios estão em uma situação melhor, a "Mãe União" foi lá e socorreu, a gente tá entrando em um ano eleitoral. Eles têm caixa e capacidade de endividamento, e isso em ano eleitoral é um risco muito grande de voltarem a se endividar, como é que é isso? Quer dizer, como é que eles (municípios e estados) estão, como é que eles entram e o que é que eles podem fazer? Eles vão se endividar de novo para lá na frente, a "Mãe União" está esgotando a capacidade dela de socorro, pelo que eu entendi.
Nós tivemos, por coincidência, uma audiência pública na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal (CAE), essa semana, na quarta-feira, quando eu participei em nome da IFI. Outros economistas renomados do Brasil participaram, Felipe Salto, José Roberto Afonso, Manuel Guedes da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o secretário do tesouro nacional (SERON), e o representante da Casa Civil, o Bruno Moretti, para discutir um projeto de resolução de autoria do Senador Renan Calheiros, relatado pelo Senador Oriovisto Guimarães, do Paraná, que visa criar um limite para o endividamento. E ai, o José Roberto Afonso demonstrou que, nos municípios, o endividamento vai ser negativo. Se você pegar o que eles têm em caixa e o endividamento, eles estão em situação equilibrada. As situações entre os municípios são muito diferentes em função do perfil. Nós expandimos muito o número de municípios, são 5.570. A grande maioria de municípios pequenos, que não tem atividade econômica forte, vive do fundo de participação dos municípios, que é uma transferência federal, e também da transferência dos estados, de uma parte do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) e o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
A maioria vive, então, sem produzir receitas próprias. Mas, mais da metade, ou tem indústria forte, ou tem mercado imobiliário forte, condições de cobrar IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), setor terciário forte, aí tem condição de tributar o ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), tem royalties de minério, royalties de petróleo, royalties de energia elétrica. Com os estados, foi feita uma renegociação, mais uma de várias renegociações, desde a consolidação no governo Fernando Henrique em 1997. Posteriormente, os contratos foram revistos, houve judicialização no Supremo, muitos estados não estão pagando a dívida com a União, por decisões liminares do Supremo Tribunal Federal.
O trabalho que nós publicamos, mostra claramente que você tem três estados em situação gravíssima: Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Esses são os que tem dívida muito alta, em proporção à sua receita, e ao mesmo tempo tem o fluxo de receita/despesa, desequilibrado, então, ele tem um problema de estoque de fluxo. São Paulo, tem um problema de estoque: a dívida é alta, mas São Paulo nunca parou de pagar dívida, tem as finanças organizadas, historicamente. São Paulo, nas últimas décadas, têm uma gestão fiscal responsável e, portanto, não é um estado problema, apesar do estoque de dívida ser alto. Tem outros estados que têm dívida baixa, mas tem o fluxo desorganizado, por exemplo: Rio Grande do Norte. Então, as piores situações são: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Mesmo no Rio Grande do Sul, reformas muito profundas foram feitas, mas ainda sim a situação é grave. E aí, os outros estados, houve um programa aprovado pelo congresso nacional, o PROPAG (Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados), para viabilizar o pagamento da dívida, já que estava tudo um conflito judicial muito grande. Uma condição, eu diria de pai pra filho, uma renegociação muito favorável aos estados. Só que quem estava com o problema da dívida e o problema de pagar dívida, eram 4 estados. Aí os outros estados falaram "não é justo". Fizeram uma regra onde o governo federal vai perder o que ele recebe da dívida, porque, em algumas condições, a taxa de juro vai ser 0, IPCA (Índices de Preços ao Consumidor) + 0, em país que tem SELIC de 15%. Então, parte desse dinheiro vai ser direcionado para um fundo nacional que é chamado de Equalização Federativa, para compensar os outros estados do norte, nordeste e centro-oeste que não tem dívida alta. Eles, legitimamente, botaram na mesa com o governo federal e com o Congresso e falaram assim: "olha, esse programa (PROPAG) é pra socorrer quem tá em grave dificuldade. Nós queremos uma compensação." e aí foi feito, uma parte do juro pago da dívida vai ser convertido em um fundo nacional de investimentos, que vai privilegiar esses outros estados não tão endividados. A situação não é homogênea.
Quando você cria uma regra, como a situação é muito heterogênea, a complexidade cresce. Isso foi replicado para os municípios. Houve uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), que é muito problemática, e aí, Mara, tem uma coisa que nós já discutimos aqui que é muito esquecida no Brasil: o pacto intergeracional. Isso é fundamental na história da civilização, o pacto do presente com o futuro e isso se expressa muito na previdência e na dívida. Endividamento é isso, você troca gasto presente por dívida futura. No setor público, dívida você pensa em tempo de 20, 30, 50 até 100 anos. O Japão lançava títulos do tesouro japonês de 100 anos e vendia! As pessoas aplicavam fundos de previdência, tinham uma âncora de credibilidade, de segurança. Então, nós temos que pensar. Por exemplo, a decisão que foi tomada em relação aos municípios e os estados, que pegaram carona nisso, você postergou, criou um limite para pagamento de precatório. Tem um limite percentual da receita, conforme a circunstância, que vai ser de 1 a 5% do estoque dos precatórios.
O governo está fazendo a mesma coisa que o governo Bolsonaro fez, de jogar os precatórios lá pra frente? Eu lembro que o governo Bolsonaro fez isso, aí quando o governo Lula assumiu, o Ministério paga os precatórios e agora a gente está vendo tudo de novo? É isso?
Não, não. Essa regra é uma Emenda Constitucional que foi gestada no Senado Federal. Uma iniciativa preocupada com os municípios, de origem, de autoria do Senador Jader Barbalho. Foi para a Câmara. Ela cria uma regra para os precatórios de municípios, a regra era para os municípios, um limite de pagamento anual de precatórios, e aí na tramitação, foram incluídos os estados, pegaram carona, mas não envolve o governo federal. Os precatórios federais, a única coisa foi que encurtou o prazo de apresentação para entrar no orçamento, era abril, agora é fevereiro.
É uma coisa interessante pelo seguinte: o governo Lula, ele começa a resolver a questão dos precatórios, que foi herança do governo Bolsonaro, ele vai, resolve. Aí ele vai agora, socorre estados e municípios, aí estados e municípios tem regra pra jogar precatórios, quer dizer, é muito importante prestar atenção para que não ocorra, dos estados e municípios não se sintam à vontade para voltarem a ter endividamentos e depois voltar a buscar socorro na União porque a capacidade da União está esgotada, eu imagino.
São 4 válvulas para os municípios de represar pagamentos, viabilizar gastos em troca de endividamento futuro. A primeira, são os precatórios, represar precatório e, portanto, empilhar para o futuro, a cada ano, vai avolumando essa dívida de precatórios. O segundo, são dívidas com o INSS, com o regime geral da previdência. Cerca de 2.300 municípios não têm regime próprio, então a Emenda Constitucional cria situações muito favoráveis, em termos de taxa de juro, de refinanciamento, das dívidas que os municípios têm com o INSS. Então, os municípios vão ganhar espaço fiscal em prejuízo da União. O terceiro espaço, são a renegociação de dívidas com regimes próprios de previdência, aí não envolve a União, envolve os servidores municipais, ele vai postergar pagamentos de dívidas com os sistemas municipais de previdência. São 2.200 e poucos municípios que têm institutos de previdência próprios, e aí a questão do déficit da previdência está no colo dos prefeitos. E a quarta, são as dívidas contratuais com o governo federal que repicou para eles as mesmas condições do PROPAG para os estados. Aí o que aconteceu? A inspiração do Senador Jader Barbalho, era o foco nos municípios para aliviar a economia das prefeituras. No meio da tramitação, foram incluídos os estados na questão dos precatórios e aí também, vai represar os precatórios que os governos estaduais acumulam.
A única coisa do governo federal que também foi introduzida na Câmara dos Deputados, foi tirar os precatórios, a partir de 2027, do teto de gastos, do arcabouço fiscal, e 90% dos precatórios, do valor total de precatórios, que dá uns R$ 115 bilhões, mais ou menos, de espaço fiscal, em 2027. E aí vai tirando 10% ao ano, a cada ano você vai incluindo 10% do total de precatórios, do estoque de precatórios, no cômputo da meta, e 100% de alívio no teto de gastos. Isso quer dizer o que? Que os precatórios federais vão ser pagos, mas que não vai computar para o regime fiscal, para o arcabouço, aí vai virar dívida... não vai estar no déficit primário.
Como a despesa é paga, apesar de ele não estar na meta, na apuração do déficit primário, ele vai estar excluído do cálculo, mas ele vai ser efetivo, o gasto. Aí ele soma na dívida. Para deixar claro, os precatórios federais não são contemplados, não vai haver postergação. O que foi feito foi tirar os precatórios, porque o governo federal, o futuro presidente da República, ia ficar totalmente estrangulado em 2027, não ia ter espaço nenhum para investimento e para financiamento de políticas públicas. Com essa PEC, com essa regra, ele ganhou R$115 bilhões de espaço fiscal, mas os precatórios não deixarão de ser pagos, eles vão somar na dívida, vai resultar em mais endividamento.
Agora, os municípios e estados, não tem uma regra muito estreita de represamento dos seus pagamentos e a OAB diz que vai judicializar essa questão, por serem decisões judiciais, direitos líquidos e certos, ela vai contestar a constitucionalidade dessa emenda constitucional. É o que eu li, do pronunciamento da OAB.
O importante, é que o Brasil uma hora vai ter que encarar o problema fiscal. Empurrar o problema com a barriga, não é bom para os nossos filhos, para os nossos netos. É muito confortável para a gente criar falsas soluções, quase um autoengano. Você cria soluções no curto prazo, comprometendo o futuro, o horizonte das novas gerações. Isso não é justo, do ponto de vista do pacto intergeracional, isso se manifesta, principalmente, na dívida e na previdência. Temos que ter responsabilidade com o futuro, a humanidade sempre funcionou assim: o passado teve compromisso com o presente e o presente tem que ter compromisso com o futuro. Isso se manifesta também na questão ambiental, a gente não pode arrebentar o planeta em nome do desenvolvimento econômico e entregar para os nossos netos, um planeta com uma mudança climática insuportável, o calor já está insuportável no Brasil, daqui a 50 anos, então, nem se diga. Então, dívida, previdência, meio ambiente, coisas que atravessam as gerações, você tem que ter responsabilidade e o Brasil não pode ficar adiando soluções. Eu acho que 2027 vai ser um ano inevitável de um rearranjo geral das finanças públicas.
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