Entrevista Nelson Jobim - Bloco 1

ENTREVISTADORA – Em 30 de agosto de 2018, registramos o depoimento do Ministro Nelson Jobim sobre sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988, parte do projeto de história oral, comemorativo dos 30 anos da Constituição.

Participam da gravação Virgínia Malheiros Galvez, Tânia Fusco, Ricardo Movits e Élcio Patrocínio de Lima.

ENTREVISTADORA - Ministro, embora vindo de uma família de políticos, na Constituinte, o senhor viveu o seu primeiro mandato de Deputado e já no cenário federal. Foi fácil essa chegada?

MINISTRO NELSON JOBIM– Não, não é questão de ser fácil; é mais sorte que juízo.

Ocorreu que, em Santa Maria, havia três Deputados Federais: João Gilberto Lucas Coelho, do PMDB; o Nelson Marchezan, do PDS, à época; e o Osvaldo Nascimento, do PDT, que era ex-Prefeito. Esses três eram os que eram eleitos por aquela região de Santa Maria. Ocorreu que o João Gilberto, que era um grande Parlamentar, resolveu ser candidato ao Senado. O Nelson Marchezan foi candidato a governador – disputou com o Pedro Simon –, e o Osvaldo Nascimento rompeu com o Brizola, saiu do PDT e, por isso, então, não foi candidato. Então, havia um vazio. E eu integrava o PMDB, e o Simon tinha que encontrar um candidato da região. O candidato natural da região seria o João Gilberto, mas ele saiu. Ele tinha de encontrar outro candidato natural, que seria o Cezar Schirmer, que era Deputado Estadual, mas o Cezar Schirmer não quis ser candidato estadual. Ele – fiquei sabendo disto depois –, então, acabou falando o meu nome. Vieram me procurar, e, então, acabei examinando o programa. Em destaque, estava aquele negócio de Constituinte. Eu era Vice-Presidente da OAB no Rio Grande do Sul. Eu acabei aceitando ser candidato, aplicando uma regra que eu aprendi com o meu avô: a gente tem que fazer escolhas – quando essas escolhas se impõem –, escolhendo o caminho em que o arrependimento for eficaz. Se eu me candidatasse e não me elegesse, eu continuava na mesma, não mudava nada; se eu me candidatasse e me elegesse, seria um mundo novo, um mundo novo em que eu poderia voltar para trás, renunciar, enfim, voltar para Santa Maria; agora, se eu não me candidatasse e me arrependesse de não ter me candidatado, não haveria solução. Então, eu resolvi me candidatar. Foi isso.

ENTREVISTADORA – E aí essa chegada lá (na Constituinte) teve alguma perplexidade? O senhor já trabalhava com a questão de direitos humanos.

MINISTRO NELSON JOBIM – Eu trabalhava com isso, eu trabalhava com problemas da situação da transição democrática.

E, quando eu me elegi, resolvi, então, estudar alguns Regimentos Internos. O Senado tinha publicado uma coletânea dos Regimentos Internos de todas as Constituintes brasileiras, e eu ainda consegui lá os Regimentos Internos das Constituintes do pós-guerra na Europa. Estudei muito aquilo.

Quando cheguei a Brasília – eu vim de carro, trazendo a mudança etc. –, eu fui almoçar, num sábado, com Antônio Britto, que já morava em Brasília há muito tempo. Almoçamos, e o Antônio Britto, então, sugeriu que eu conhecesse o Dr. Ulysses, que eu não conhecia. Fomos visitar o Dr. Ulysses à tarde. Essa conversa começou às 6h da tarde e se estendeu muito, porque ele começou a conversar sobre Regimento, e eu estava com tudo isso na cabeça. Aí, fiz sugestões pra cá, fiz sugestões pra lá: "Isso assim não funciona; não funcionou em 1946; não funcionou em 1934", etc. Então, o Dr. Ulysses determinou ao Pimenta da Veiga, que era o Líder do PMDB, que conversasse comigo. Naquela época, em Brasília, a história era o café da manhã. E ele me convida para um café da manhã no Hotel Nacional.

Eu comecei a me envolver com a história do processo constituinte, não porque eu tivesse autoridade política – não era isso –, é que eu tinha estudado isso. Eu era um sujeito organizado, tinha memória de ferro – hoje não tenho mais – e, então, acabei me envolvendo nesse processo. Tanto é que, quando houve o início do processo constituinte propriamente dito, o Dr. Ulysses me chamou para ajudar na elaboração de umas normas iniciais, regimentais prévias, que ele deveria outorgar para disciplinar a votação do Regimento Interno, que não existia. Depois, o Dr. Ulysses me indicou para o Senador Fernando Henrique na época como relator do Regimento. Eu virei uma espécie de amanuense, que ajudava a escrever, e aí me envolvi com esse negócio.

ENTREVISTADORA – Parece que o Dr. Ulysses havia encomendado anteriormente uma proposta à assessoria da Câmara, que foi feita com base no Regimento de 1946 e que não foi bem recebida pelos Parlamentares. Também há uma história que a gente gostaria que o senhor contasse – se for verdade – de que o senhor e mais alguém teriam recortado trechos de Constituições de diversos países, e daí teria nascido, então, a definição de oito comissões temáticas. Como foi essa história, Ministro?

MINISTRO NELSON JOBIM– Primeiro, há um antecedente. Quando o Dr. Ulysses me indicou ao Fernando Henrique para ser o relator...  Antes disso, havia a eleição da Câmara e a eleição da Constituinte. O Dr. Ulysses sustentava que ele seria o Presidente da Constituinte – não havia nenhuma divergência –, mas ele sustentava também que tinha de ser Presidente da Câmara. Ele, corretamente, dizia o seguinte: "Não adianta ser Presidente da Constituinte se eu não tiver a estrutura da Câmara para colaborar; se botar outro Presidente da Câmara, o Presidente da Constituinte terá que solicitar ao Presidente da Câmara e vai dar confusão." E ele se candidata a Presidente da Câmara. Fernando Lyra resolveu ser candidato a Presidente da Câmara e disputar com o Dr. Ulysses. Aí é que aparece essa história desse Regimento, porque havia lá um trabalho que o Dr. Ulysses teria encomendado, em 1986, à assessoria da Câmara, e eles lá tinham feito um anteprojeto, um estudo, que nada mais é do que o decalque do Regimento da Constituição de 1946, em que o governo, que na época era comandado pelo Presidente do Supremo Tribunal – o Getúlio tinha caído –, não tinha força política. Então, o projeto de Constituinte foi feito por uma comissão interna criada pela própria Constituinte da época, chamada de Comissão Nereu Ramos, porque era presidida pelo Senador Nereu Ramos, de Santa Catarina. Essa comissão fazia o projeto da Constituinte, depois esse projeto era votado no Congresso constituinte – discutido e votado lá. Nós fizemos uma coisa parecida. Ocorre que o Lyra, na campanha para Presidente da Câmara, usou esse material dizendo que iam se criar dois tipos de Constituintes: os Constituintes de primeira categoria, que seriam os sábios da grande comissão que iriam redigir o projeto, e os Constituintes de segunda categoria, que ficariam esperando que os sábios fizessem esse projeto. Era mais ou menos essa a linguagem. Isso não deu os votos suficientes ao Lyra – que foi bem votado, inclusive –, e o Dr. Ulysses ganhou a eleição para Presidente da Câmara.

Aí vem a história também para começar o processo constituinte. O Dr. Ulysses, então, pediu que a gente fizesse um esboço. O Bonifácio José de Andrada, o Andradinha, que era do PDS, e eu fomos para a Liderança do PDS, na época, com uma máquina de escrever Remington, e fizemos um decalque do Regimento Interno da Constituinte de 1946. Por quê? Você tinha dois modelos de fazer Constituinte no Brasil. Um era o projeto de governo. Aconteceu isso em 1891; aconteceu isso em 1934, com Getúlio, que tinha força; e aconteceu isso em 1967, quando o governo militar mandou o projeto da Constituição de 1967. Agora, o outro modelo era a criação dessas comissões que tinham acontecido em 1946. Acontece que a solução majoritária brasileira, que era o governo mandando o projeto, estava se repetindo contrariamente naquele caso. Por exemplo, o Sarney não tinha força política naquele momento. Ele estava mais ou menos na posição de 1946, não tinha como mandar um projeto de Constituinte, como aconteceu nas outras vezes. O Tancredo pretendia fazer isso. O Tancredo tinha constituído aquela Comissão Arinos, que fez um projeto. Aí nós fizemos um desenho desse modelo inicial, que era mais ou menos a mesma coisa, com ajustes, da Constituição de 1946.

Quando o Fernando Henrique abriu esse assunto, aí surgiu todo o ódio a esse tipo de solução, decorrente da campanha que o Lyra havia feito. E todo mundo se opôs. "Ah, não! Esse modelo não dá." Aí deu empate. Tínhamos que inventar um mecanismo. E o que a gente fez? Nós tínhamos que inventar, começar do zero. Como é que íamos fazer? Aí o que aconteceu foi isto: eu fui ao meu apartamento – eu morava na 302 norte – e recortei os títulos e capítulos de tudo que era Constituição que havia. O Senado tinha publicado uma coletânea das Constituições, com cinco ou seis volumes das Constituições ocidentais e das Constituições orientais, da União Soviética e dos países.... Enfim, eu recortei cada pedaço daquilo e fui, de noite, empilhando, em um trabalho empírico. E aí o que aconteceu? No final, havia lá nomes, títulos, capítulos que se repetiam em todas as Constituições, havia outros que se repetiam na maioria das Constituições, havia outros que se repetiam na minoria das Constituições, depois havia outros que eram idiossincrásicos. E nós chamamos, na época, de temas absolutamente constitucionais os que estavam em todas as Constituições; de relativamente constitucionais; de relativamente não constitucionais, porque eram minorias; e aqueles que eram individualizados, de idiossincrasicamente constitucionais.

E aí começamos a montar aquilo. O que fizemos? Pegamos o número total – eu peguei o número total da Assembleia –, identificamos as pessoas que eram Líderes partidários, enfim, formadores de opinião, Mesa, etc. e tiramos fora. E aí dividimos – fizemos um cálculo – o número de Parlamentares por oito, o que ia dar 60, e deu 60 para cada uma delas. Esse cálculo tinha sido ajustado. Depois, esses 60 eram divididos – eram 63. Cada comissão dessas dividia-se em três subcomissões, de 21 membros. Então, com aquilo, deu trabalho para todo mundo, porque começou, primeiro, o trabalho das subcomissões. E, depois que as subcomissões trabalharam etc. e tal, elas produziram um texto. Cada subcomissão tinha lá uma tarefa. Uma tarefa era uma palavra, uma frase, como "organização do Poder Executivo", "organização do Poder Judiciário", sei lá.

E aí o que aconteceu? Foi assim que se fez. Deu muito trabalho, começou do zero. Deu muito trabalho, durante todo esse tempo, para chegar ao trabalho das comissões terminado – cada comissão tinha três subcomissões. Então, entregava-se o texto de cada uma das três subcomissões para a comissão, que tinha um presidente e um relator. Esse relator da comissão juntava os três textos, integrava os três textos. Esses três textos se transformavam em um só, que era votado pela comissão. Cada comissão fazia isso. No final, as oito comissões terminaram, cada uma delas, com oito textos. O Bernardo Cabral reuniu todos esses oito textos em um texto só. Aí começou o processo da chamada Comissão de Sistematização, que era composta por aqueles Parlamentares que não participaram do processo mais os presidentes das comissões, os relatores das comissões e os relatores das subcomissões. E formou-se a Comissão de Sistematização, que tinha lá em termos de oitenta...

ENTREVISTADORA – Oitenta e seis.

MINISTRO NELSON JOBIM– Oitenta e seis Parlamentares.

Nós tínhamos que dar um jeito de fazer uma montagem que superasse o problema de não quererem fazer uma comissão.... Tinha que haver um projeto. Então, aí você fez com que todos os Parlamentares participassem da elaboração do projeto, que era o final do texto da Comissão de Sistematização, e esse projeto da Comissão de Sistematização ia para o Plenário. Então, tudo aquilo seria revisto de novo por todos os Parlamentares.