Entrevista com Senadora Lídice da Mata - Bloco 4


ENTREVISTADORA – Senadora, a Constituição cidadã envelheceu? A senhora pode apontar o que ainda é forte e o que realmente... A senhora falou algumas coisas: reforma tributária, reforma política, a questão do subsolo. Onde ela se enfraqueceu, ou melhor, precisa ser mudada?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Olha, toda Constituição que tem a característica da nossa, Constituição grande, que fala sobre muitos assuntos, necessariamente passa por mudanças. Volto a dizer: eu não concordo com todas as mudanças que aconteceram. É que a gente pensa que pode existir uma Constituição que seja acima do bem e do mal. Não é. A Constituição é resultante de uma luta de poder na sociedade, em que determinados segmentos se fazem maioria para votar aspectos ou trechos. Foi assim que foi construída a nossa.

Quando surgiu o Centrão na Constituição, ele surgiu para garantir a propriedade da terra, para garantir que fossem delimitadas, no capítulo que trata da propriedade da terra, questões que dizem respeito à constituição da economia brasileira, que é de latifúndio, de formação do campo brasileiro. Então, os segmentos políticos brasileiros – não me interessa se bem ou mal, se isso corresponde ao que penso ou não – organizaram-se para garantir aquele privilégio. E outros segmentos se organizaram para garantir que se acabasse com esses privilégios e que se dividissem essas possibilidades. A nossa garantiu os direitos do cidadão. E, no que diz respeito aos direitos do cidadão, ao Estado democrático de direito, essa Constituição não pode ser mexida. Há muita gente querendo mexer na Constituição, porque garantir o Estado democrático de direito não necessariamente garante que o seu candidato ganhe a eleição naquele momento ou que outros segmentos seus possam ser privilegiados neste momento.

Então, a sociedade brasileira não tem o costume de perder e de ganhar. Há segmentos da sociedade brasileira que são segmentos privilegiados e que, ao longo da história, só têm a cultura e o costume de ganhar. Então, se lhe tiram um pedacinho do seu ganho, aí dizem: "Vamos pôr abaixo a Constituição!"

ENTREVISTADORA – A senhora acha temerário, então, pensar numa reforma política?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Temerário não! É necessário! A reforma política, sim! Eu não concordo...

ENTREVISTADORA – Desculpa! Eu queria dizer revisão constitucional mais ampla.

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Mais ampla? Tenho medo, porque, quando se fala em mudança constitucional mais ampla, fala-se em mexer em tudo.

A OAB e muitos constitucionalistas disseram recentemente que não pode haver uma Constituinte exclusiva para se fazer reforma política, porque você estaria limitando o poder constitucional. Pode ser que a sociedade brasileira, depois de um plebiscito sobre essa necessidade, pudesse dizer: "Não, nós queremos e vamos limitar aqui." Mas você precisaria botar quais os limites de atribuição desse Constituinte. Por quê? Porque a reforma política tem de ser feita com um equilíbrio entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Ela tem de ser, na minha opinião, promovida pelo Poder Executivo, que deve apresentar uma proposta, para que o Poder Legislativo debata e construa a sua proposta. Não é fácil fazer isso. No primeiro ano de governo, será difícil fazer isso. Imagine alguém querer fazer isso no meio ou no fim do Governo! Jamais será feita!

Recentemente, eu me pronunciei sobre os 30% da invasão, digamos assim, do protagonismo jurídico que o Tribunal Superior Eleitoral fez em relação ao fundo eleitoral. Eu aplaudi e continuo aplaudindo, porque esperar que este Congresso, de maioria de homens machistas, abra mão do seu poder de usar 100% do fundo partidário nas suas próprias campanhas seria ingenuidade da nossa parte! Nós sabemos que somos 10% do Parlamento brasileiro e que, pela experiência que já temos de atuação parlamentar, jamais o Parlamento votaria uma medida dessa sem que houvesse uma provocação inicial do Poder Judiciário. Agora, com a interpretação do Poder Judiciário a respeito da Lei de Cotas, poderemos consolidar isso e, aí, sim, um próximo Congresso terá mais dificuldade de retirar esse direito das mulheres.

ENTREVISTADORA – Esclarecendo, Senadora: como ficou a regra? Dez por cento...

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – A regra atual, definida pelo Tribunal Superior Eleitoral, é de que do fundo eleitoral devem ser usados 30% dos recursos para a campanha das mulheres.

ENTREVISTADORA – Senadora, a gente vai entrar agora em uma parte mais de memória afetiva mesmo. Eu não posso deixar de mencionar que a senhora teve um raríssimo 9,5 de Diap pela sua atuação na Constituinte. A senhora apresentou 196 emendas e teve só 31 reprovadas – 20 integralmente e 11 parcialmente –, digo, aprovadas. Desculpe. Só 31 aprovadas. Em todas as questões de gênero a senhora atuou, e foram praticamente todas vencedoras.

Eu agora queria que a senhora falasse um pouquinho da memória afetiva da Constituinte. Naquele cenário de lutas e mudanças, a senhora se lembra de algum momento mais tenso ou mais alegre ou um melhor momento?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Muitos momentos foram muito tensos.

ENTREVISTADORA – Por exemplo?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Muitos momentos. Por exemplo, quando se constituiu o Centrão e quando se discutiu a ordem econômica. Houve momentos em que o plenário, ou melhor, as galerias foram invadidas por representantes conservadores, que queriam impor a sua posição; em outros momentos, por movimentos sindicais mais à esquerda, que também queriam impor a sua posição. Isso é o processo democrático e fazia parte daquele momento. Mas eram momentos tensos; não se pode dizer que não eram tensos. Eram muito tensos, muito tensos! No grande acordo que foi feito sobre a propriedade da terra, a reforma agrária, o Conselho de Reforma Agrária, houve momentos muito tensos.

Em muitas situações, depois, no Processo Constituinte, como eu falava, havia muitas emendas para que a gente conseguisse chegar a acordos, e foram feitos acordos improvisados no plenário. Destacava-se uma parte da redação de uma emenda, uma parte da redação de outra, uma parte da redação de uma terceira, para juntar e fazer uma frase inteira que resultasse em um acordo de maioria – não era de unanimidade, mas de maioria. Esse é o grande mérito da Constituição, porque ali o Plenário do Congresso funcionou com a sua verdadeira função, que é a de negociação dos interesses da sociedade. E houve um momento em que todos sentiram uma necessidade de construir textos que pudessem ser aprovados pela maioria.

É claro que o texto não significava que teria unanimidade, mas muitas vezes houve unanimidade e muitas vezes, claro, se está na Constituição, obteve a maioria dos votos.

ENTREVISTADORA – E a senhora se lembra de algum momento especialmente gratificante, algum momento, assim, daqueles de lavar a alma?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Ah, claro, muitos. Eu lembro um momento que foi muito emocionante para todas nós, quando aprovamos o direito à paternidade, pois nós, as mulheres, estávamos achando que perderíamos, e fizemos uma grande articulação para que fosse defendido por um homem.

ENTREVISTADORA – A licença-paternidade?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – A licença-paternidade – direito à paternidade, não –, o direito à licença-paternidade de cinco dias, e foi feita uma belíssima defesa pelo...

ENTREVISTADORA – Alceni.

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – ...Alceni Guerra, que era pediatra, se não me engano, e foi um momento muito feliz para as mulheres.

Nós tivemos vitórias emocionantes. A ideia dos seis meses de licença-maternidade foi uma conquista extraordinária, uma conquista política extremamente importante para a mulher trabalhadora. A vida se repete no Parlamento. Eu me lembro de que os jornais, as representações empresariais, todos diziam que nunca mais haveria emprego para a mulher no Brasil, porque, com seis meses de licença-maternidade, qual seria o patrão que iria conviver com isso? E era isso, era aquilo, era uma pressão política, um lobby fortíssimo, e, 30 anos depois, só cresceu o mercado de trabalho feminino. Só cresceu.

Pode-se dizer que há áreas em que a mulher em idade jovem, ainda em idade de engravidar, não é contratada? Pode haver. Na área privada pode haver, mas o que se abriu de oportunidade de trabalho no mercado para a mulher! E isso não impediu, o que é mais importante... Isso porque se dizia que ia impedir o acesso da mulher ao trabalho, e nós provamos que não. Nós crescemos na nossa inserção no mercado de trabalho e crescemos na qualidade da inserção da mão de obra feminina. Nós saímos da ocupação dos postos de trabalho secundários, como, no caso, a ocupação do emprego doméstico ou de empregos provisórios para a consolidação de carreiras na área pública, mas também na área privada.

Então, essa coisa do mercado tem que ser sempre vista, porque não pode significar o impedimento de conquistas de direitos que são inadiáveis às populações.

ENTREVISTADORA – Por exemplo, tem algum ainda que é inadiável e que a senhora pensa que se tem de conseguir? Alguma coisa que ainda não foi assentada e que...

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Muita coisa no que diz respeito aos direitos da mulher ainda estão só na lei, só na Carta Constitucional. Nós não conseguimos, por exemplo, que a mulher ganhe o mesmo salário para funções iguais, embora esteja na nossa Carta Constitucional. Seria preciso um nível de fiscalização nas delegacias de trabalho dos salários, etc., e ainda não alcançamos essa excelência.

Recentemente houve um projeto, numa comissão aqui, que buscava estabelecer uma espécie de lista positiva das empresas que mantivessem o mesmo salário para funções iguais. Os Senadores não aceitaram. É difícil vencer o machismo. E o machismo vem sempre com outro pretexto. Uma hora é o pretexto de que o mercado não suporta. O que o mercado não suporta? Que a mulher se integre? Por que não pode ser premiada uma empresa que tenha uma relação não machista de trabalho?

Então, na verdade, é o medo, são as amarras do machismo jogando para baixo a libertação e o crescimento da mulher no mercado de trabalho brasileiro. Isso no que diz respeito ao mercado de trabalho. Nem vou falar dos outros assuntos.

ENTREVISTADORA – Senadora, a entrevista está ótima, mas a gente vai chegar ao fim.

Há alguma coisa que a senhora queira ainda mencionar? Senão, eu vou fazer a última pergunta.

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Não, não me lembro também.

ENTREVISTADORA – A sua participação na Constituição – a senhora que tem uma história no Legislativo e no Executivo –, de alguma forma, mudou a sua vida tanto como cidadã quanto como política?

SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA) – Mudou profundamente. Quando cheguei à Constituinte, eu tinha 30 anos de idade, tinha saído do movimento estudantil, da luta contra a ditadura e feito o meu primeiro mandato de Vereadora em Salvador. Um dos principais movimentos que me deram muita alegria na Constituinte foi nós conquistarmos o direito ao voto aos 16 anos. Aquilo fazia parte daquela luta que nós havíamos travado para motivar a participação da juventude da minha época e da posterior à minha. Então, mudou profundamente. Mudou profundamente até porque mudou o Estado brasileiro e, especialmente, mudou a posição da mulher no Brasil. A mulher, pela primeira vez, teve a sua condição de cidadã reconhecida no mesmo tamanho da do homem. Infelizmente, ainda só na Constituição, mas, claro, isso abre totalmente o ambiente institucional para uma nova prática e uma nova cultura, uma cultura civilizatória diferente.