Entrevista com Ministro Bernardo Cabral - Bloco 6


ENTREVISTADORA – Eu vou perguntar uma coisinha pessoal para o senhor.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Pergunte da seguinte forma: sabendo que eu não considero que existem perguntas inconvenientes; o que existe das partes que recebem perguntas são respostas inconvincentes. Eu não considero que nenhuma pergunta a mim dirigida seja inconveniente. Eu espero é que a minha resposta possa ser convincente.

ENTREVISTADORA – Não, não é nem inconveniente...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu estou só lhe dizendo isso porque, às vezes – deixe-me dizer, com toda a sinceridade; vocês têm prática disso como eu –, faz-se a pergunta, e o cara começa a enrolar, enrolar, enrolar, e não ataca a pergunta. Tem que atacá-la, senão você está perdendo o seu tempo. O que é isso? Desculpa eu lhe dizer, mas eu não vou chegar aos 86 anos para sair de uma coisa que eu sempre respeitei em mim mesmo: eu nunca tive duas versões para o mesmo fato; é sempre a única. Desse modo, pode fazer a pergunta.

ENTREVISTADORA – Não é inconveniente...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, mas se... Eu não considero nenhum inconveniente.

ENTREVISTADORA – Que histórias daquele momento o senhor contará para os seus netos como "a coisa melhor que eu já vivi na vida" ou "a coisa pior que eu já vivi na vida"?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, eu não posso dizer que a melhor coisa não tenha sido o nascimento do meu filho, dos meus netos – essa foi a melhor coisa.

A pior coisa foi... Vou dar dois exemplos, sem dar os nomes.

Eu peguei, uma vez, uma emenda de um Constituinte que dizia assim: "Art. Todos os carros oficiais são pintados da mesma cor. Parágrafo único. O ministério competente dirá qual será a cor." Eu chamei o colega e disse: "Não faça isso. Isso não tem nada de Direito Constitucional. Isso não pode entrar numa Constituinte. Isso é matéria de portaria de um ministério competente. Tire a sua emenda." "Eu tenho que dar uma resposta ao meu eleitorado." "Arranje outra resposta. Você vai ficar mal." "Por que eu vou ficar mal?" "Porque eu vou derrubar isso no Plenário. E, ao derrubar no Plenário, você vai ficar muito mal situado." Eu sei que ele não gostou da coisa. Eu sei que ele se sentiu – só estávamos nós dois – inferiorizado, mas eu fiz tudo para não inferiorizá-lo; quis só demonstrar que ele retirasse, porque, se ele fosse ao Plenário, seria um desastre, ia ser motivo de chacota.

E, quanto à outra emenda – esta foi muito pior; o cara ficou meu inimigo pelo resto da minha vida, ou adversário –, parte dela eu aceitei. Estava lá no fim e, hoje, é a primeira do art. 5º, no inciso I, que começava assim: "Todos os homens e mulheres são iguais em direitos..." Pode anotar. Vou ler para vocês verem como isto é uma coisa fantástica: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei..." E o inciso I diz assim: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Morreu ali. Por quê? Porque eu havia sido, além de professor... Eu disse para ele: "O Código Civil é de 1916. O Código Civil diz que o marido é o chefe da sociedade conjugal. O marido escolhe, se tiver uma briga contra a mulher, onde ele reside." Fiquei mostrando para ele tudo que havia. "Agora, você não pode colocar que os direitos são iguais, vírgula, à exceção da época da menstruação." (Risos.)

Vocês estão rindo, mas isso me causou dor. Causou dor explicar a um cara desses... Eu havia dito para ele ir ao Direito Civil e que eu ia aproveitar isso para botar no Texto Constitucional que a mulher não era mais objeto. E eu nunca fiz propaganda disso. Nunca! Hoje, quando essas grandes mulheres lutam... Eu já havia posto isso lá em 1987 – foi criação minha –, por causa do Direito Civil.

Eu tinha sido aluno de um professor catedrático de Direito Civil que era o cara mais completo que eu vi, um catedrático brilhante. Na primeira prova mensal dele, eu tirei dez. E tirei dez durante todo o curso, do segundo ao quinto.

 

Quando eu terminei o Direito Civil, ele me convidou para ser assistente dele e eu disse: "Não, sou muito novo, não tenho..." E foi sempre assim, uma admiração enorme. Então, eu sabia o que estava dizendo. Eu disse: "Nessa parte final, você vai cair num ridículo atroz." "Por quê?" Porque todo mundo sabe que você não precisa fazer essa situação, doutor! Era para ser direito e obrigações. A mulher não tem a obrigação da menstruação, assim como tu não tens – eu tinha que dizer. "Eu não vou tirar isso!" Então, você se prepare que vai ser um espetáculo ridículo no Plenário. Agora se você perguntar: "Ele retirou?" Retirou! Ele retirou, mas nunca mais falou comigo, porque ele disse que tinha obrigação com o pessoal dele lá – a mesma coisa.

ENTREVISTADORA – Ministro, continuando. As pessoas diziam sobre a sua habilidade de negociador. O senhor ouvia a esquerda, ouvia a direita, ouvia todos os grupos, mas que, ao final, o senhor fazia o que o senhor queria. É verdade isso?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, eu não diria "o que eu queria", o que eu pude foi ouvir um lado e o outro e colocar o que era mais sensato na minha opinião; mas não me impor, senão eu não ouviria ninguém. Se eu quisesse impor na redação... Eu tinha esse direito, como Relator, e nunca o fiz. Sempre ouvi. Quem melhor define isso a meu respeito é o Ives Gandra Martins.

O Ives disse: "Se não houvesse a habilidade de negociação do Bernardo em conciliar o que era melhor para o texto, não teríamos essa Constituição." Falou assim mesmo. E, realmente, eu nunca impus, eu apenas fazia isso que ele dizia, eu conversava com a pessoa. Não ponha isso, porque você... E, quando não havia necessidade de conversar, eu conversei muito. Olha, não é brincadeira examinar 52 mil emendas.

Vejam como acontece hoje. Vai à Câmara uma emenda, discutem a vida inteira, não saem nunca disso. Eu tive na minha mão, nesta mão aqui. Agora, se não existisse o Prodasen para eu cruzar, não haveria como. Foi o computador que ajudou muito, porque havia coisas que eram superpostas, outras que diziam a mesma coisa, então era difícil, mas você tinha que peneirar isso. Geralmente, eu era sempre contrário quando queriam pôr direitos que não poderiam estar na Constituição, mas nunca impus a minha vontade, não. Eu fiz tudo para ser um colaborador, um contribuidor, retirando o melhor.

Agora, não é fácil ser conciliador. Não é fácil, porque, quando cada pessoa tem na sua mente a determinação de que aquilo é que é o certo, você não consegue tirar, isso é do ser humano.

ENTREVISTADORA – Ministro.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Quer ver? Deixa eu só contar... Depois eu conto essa história tirando daqui.

ENTREVISTADORA – Desculpe interrompê-lo.

Conte a sua história.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Então, vou contar essa história.

O meu pai tinha um sitiozinho, em 1950, num lugar chamado Careiro. Eram duas horas de Manaus, tinha que ser de barco, não havia luz elétrica, àquela altura não havia rádio nem televisão. Meu irmão nasceu em 1949, então foi nos anos 50 mais ou menos. E apareceram, naquela região, para pesquisar a vida dos pescadores, do ribeirinho, pois a Amazônia estava tendo um nome internacional, três caras que compunham isso. Eu não sei de onde eram, se eram da Organização Mundial de Saúde, de educação. Não sei o que era, mas era coisa mundial.

Chegaram ao primeiro ribeirinho, que estava lá, sentadinho na sua rede. O chefe deles disse: "Nós estamos aqui fazendo uma pesquisa [mas um pouco arrogante, não sabem tratar com pessoa humilde], vamos fazer um teste aqui, vamos fazer três perguntas." "Pois não, doutor, diga lá." Ele disse: "O senhor sabe como é o nome do Ministro da Guerra?" Àquela altura, o nome... Aí, o ribeirinho: "Não, senhor. Eu sou um simples pescador, só entendo da minha pesca e tal, vivo dela." Ele disse: "O senhor é ignorante. Não saber o nome do cara que cuida da segurança do País..."

E foi fazer outra pergunta, a segunda. "O senhor tem direito a mais duas, senão o senhor vai ser reprovado. Qual é o nome do Ministro da Fazenda?" Coitado: "Não sei, não, senhor. O senhor me desculpe. Olhe, eu sou um pobre ignorante." Coitado, ficou todo... Aí, o cara passou-lhe uma assim: "O senhor é um ignorante mesmo. Vou lhe fazer a última pergunta e vou-me embora: como é o nome do Ministro da Educação? Essa o senhor tem que saber." "Ah, doutor, não sei, não. Aqui não tem nada, não falo com ninguém, fico com minha mulher, meus filhos, vou fazer a minha pescaria. Sou realmente um homem sem nenhuma cultura." "O senhor não é sem cultura, não. O senhor é um grande ignorante." E foi saindo.

Foi saindo, aí o pobre do pescador, coitado: "Doutor, doutor..." Essa é uma história verídica, meu pai me contava. "Doutor, desculpe eu lhe fazer... Mas o senhor me fez três perguntas, eu estou tão acanhado. Eu posso lhe fazer três perguntas também?" "Pois não." "O senhor sabe o que é um acari-bodó?" Acari-bodó é um peixe da região. O cara é um pescador, não é? "Não sei." "O senhor sabe o que é uma pirapitinga?" "Não, não me interessa saber. Então, faça a última pergunta para eu ficar com a minha consciência em paz." "O senhor deve conhecer o curimatã..." É outro peixe que é cheio de espinhos. "Não sei, não quero saber." Quando ele falou isso: "Pois é, doutor, cada um com a sua ignorância."

Eu não posso responder tudo aqui para você porque cada um com a sua ignorância. Então, esses caras, quando dizem que eu era um ditador, não é, não... Não é nada que entrar, não. Eu botei só para vocês ouvirem. Não, porque senão muita gente vai botar a carapuça, tem gente que vai botar a carapuça.

Por exemplo, você quer ver? Eu não entendo nada disso que ele faz, mas ele faz muito bem. Mas algumas coisas eu posso fazer e que ele não faz. Então, por que eu não vou reconhecer o mérito dele? Porque cada um com a sua ignorância.

ENTREVISTADORA – Ministro, nós não falamos das questões...

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Eu pensei que ela fosse acabar... Cada vez é a última, é a última... Não, não chegamos à última, não...

ENTREVISTADORA – Já, já a gente termina. É porque nós não falamos das questões de economia e temos uma curiosidade. Nós temos aqui a missão de fazer com que o senhor conte para a história, para as pessoas que vão assistir o senhor pela internet, pesquisadores, os brasileiros de um modo geral: quem foi, ou que setores da área econômica mais lhe pressionaram? Dá para contar?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Olha, é interessante, essa pergunta é boa e se ajusta à história que eu acabei de lhe contar.

Eu tinha alguns economistas que tomavam conta da sua área. Na área econômica eram dois constituintes, duas pessoas renomadas: uma era o Dornelles, que foi Ministro da Fazenda, e o outra era o José Serra. A esses dois se deve o que há na Constituinte. Se ruim ou mal, a eles se deve. Eu apenas aproveitei o trabalho que eles fizeram – cada um com a sua ignorância, não é –, e coloquei lá. Mas eu não fui pressionado. Se eles foram, eu não sei, aí vocês têm que perguntar a eles, mas a mim não chegou nenhum tipo de pressão.

ENTREVISTADORA – Está certo.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Você imagina...

ENTREVISTADORA – Há alguma coisa que o senhor acha que foi marcante naquele período que a gente não tenha tratado aqui e que o senhor gostaria de falar?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, não. Acho que vocês... E é verdade, estou dizendo isso porque o que vocês fizeram é só para quem tem muita experiência. É claro que a Tânia e você viveram isso, sentiram isso, vocês sabem como foi. Você imagine, Virgínia, se você pegasse duas moças que saíram agora da faculdade de jornalismo e viessem aqui me entrevistar. Não teriam como, não teriam experiência. Vocês perguntaram o que queriam, o que não queriam, o que não deveriam, o que deveriam, o que poderiam. Quer dizer, porque têm experiência daquilo, uma resposta puxa a outra. A moça hoje que vem – não comigo, porque eu estou fora disso, não recebo –, ela vem com um papel já pronto, direitinho. Ela não sabe sair daquela pergunta. Você me perguntou, ela me perguntou, porque vocês viveram isso, viveram aquilo.

A experiência é uma coisa que você só adquire com a idade. Com o tempo, a idade te ajuda, com a tua experiência, a ter sabedoria. Quando você é moço,18 anos, 20 anos, é a mocidade. À mocidade, a ela cabe o direito de enamorar – vou fazer aqui um paradoxo –, mas só a idade madura lhe dá o privilégio de saber amar as coisas, dentre isso a profissão de vocês. É isso. Então, é com isso que eu tenho que contribuir para que vocês tenham tido a sua missão cumprida.

ENTREVISTADORA – Eu só quero agradecer.

ENTREVISTADORA – Não, antes de você agradecer, ele contou para a gente, mas a gente não gravou. Com uma carreira tão brilhante no cenário político nacional, por que o senhor abandonou a vida pública?

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Não, eu respondi sim. Pode não ter sido gravado.

ENTREVISTADORA – Pois é. Eu estou pedindo para o senhor falar para a gente gravar.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Mas se vocês dissessem que eu tinha dito, eu respeitaria, é claro. Eu já lhe disse: eu não tinha mais condições de poder acompanhar o que eu notei que ia se tornando a política. Estou fora da política há 16 anos, e, onde você está, já vieram outras pessoas da minha terra dizendo que o Amazonas não tem, hoje nós não temos nenhum amazonense na representação política; todos são de fora do Estado. E eu disse que não voltaria mais à política porque hoje a política tomou outro rumo, e eu disse a vocês qual é o rumo.

Hoje você tem que ter aquelas três coisas que são muito fortes para vencer uma batalha política, que são: dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. E isso eu não tenho. Se eu tivesse, eu não estaria aqui.

Outro dia um amigo meu chegou aqui e disse: "Poxa, Bernardo, mas que coisa bonita a tua vida pública, eu gostaria de ter tudo isso." Ele é um homem sério, mas é muito rico. E eu disse a ele: "Tu não tens isso, mas isso é a herança que eu vou deixar para os meus netos e netas, e tu vais deixar uma herança de milhões e milhões." Eu não sei o que vale mais, só isso.

ENTREVISTADORA – Ministro, a gente queria agradecer, e eu queria lhe dizer que foi um privilégio, como profissional, ter acompanhado o seu trabalho em 1987 e em 1988, um privilégio mesmo.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Muito obrigado, Virgínia.

ENTREVISTADORA – E um privilégio hoje ouvir a sua avaliação e ouvir o senhor rememorar isso tudo.

Muito obrigada de coração.

MINISTRO BERNARDO CABRAL – Obrigado. Ainda bem que a idade não excluiu alguma coisa que eu guardei, as lembranças, porque, com o tempo, as coisas vão ficando esmaecidas. Não só os papéis, não só a escrita, você também esmaece, a não ser quando você tem pessoas que, no convívio, também não esmaeceram.