Mulheres negras acusam 'feminicídio de Estado' em audiência

09/08/2018 11h40

A Lei Maria da Penha não dá conta de responder à violência cometida contra as mulheres negras brasileiras.  Esta foi uma das conclusões críticas do debate sobre “Respostas ao Enfrentamento do Feminicídio das Mulheres Negras”, realizado como edição especial do Projeto Pauta Feminina, nesta 4ª feira, dia 8 de agosto, no Plenário 10 do Anexo 2 da Câmara dos Deputados, em iniciativa conjunta da Procuradoria Especial da Mulher do Senado e da Secretaria da Mulher da Câmara.

Cerca de 60 pessoas participaram da audiência mediada pela deputada Zenaide Maia (PHS-RN), 3ª secretária da Comissão dos Direitos da Mulher. Andreza Winckler Colatto, secretária Nacional de Políticas para Mulheres (SPM), disse que só este ano o Disque 180 registrou 73.000 denúncias de violência contra a mulher e a secretaria é sensível aos dados que documentam uma realidade que mostra as mulheres negras como maioria da população feminina, mas também na população carcerária entre as vítimas da violência.

Subcidadania

Rodrigo Barbosa da Silva, diretor do Departamento de Igualdade Racial da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da igualdade Racial disse que o Ministério de Direitos Humanos e a Seppir estão realizando esta semana, um seminário que reúne “mulheres estratégicas”, de vários ministérios, com o objetivo de elaborar um Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Negras. Para ele, é preciso considerar que a construção histórica do feminicídio está na raiz de um processo de desumanização e subcidadania, pelo qual “a mulher negra é sempre colocada em segundo plano”.

Cheila Marina de Lima, da Coordenação Geral de Violência de doenças e agravos Não Transmissíveis”, foi taxativa ao reconhecer que “não estamos conseguindo dar resposta a este tema. As mulheres negras estão morrendo e não há uma tendência de estabilização de mortes”. Segundo ela, o estado tem os dados sobre endereço, cor de pele, escolaridade e idade das mulheres que morrem, mas carece de os transformar em ação eficaz na saúde, na proteção e na responsabilização.

Segundo Cheila, o Brasil produz periodicamente relatórios, como Saúde Brasil 2015/2016, que mostram como as mulheres estão morrendo. Cruzamentos de dados de notificação de violência com outras variáveis, como mortes por causa violenta ou gravidez na adolescência dão indicação de várias situações em que “as mulheres negras passaram por serviços de saúde, o estado não conseguiu dar respostas e elas morreram”. Segundo ela, “uma mulher negra, em geral, tem duas vezes mais chance de morrer”.

AntônioRacismo

Para Antonio Teixeira Lima Junior, do Instituo de Pesquisas Econômicas e Aplicadas, quando se fala em raça, sempre se deve pensar na relação racial entre raças diferentes. “Não se trata de saber por que as mulheres negras morrem mais, mas por que morrem mais que as mulheres brancas”.  Para ela, é preciso considerar a brancura como fator explicativo.

Para compreender porque a violência contra as mulheres negras aumentou e a violência contra mulheres negras diminuiu, ele sugere que o racismo negligenciou a rua como espaço em que a violência contra a mulher também se exerce; o protagonismo das mulheres negras – como Marielle Franco – em contexto de crescimento da violência urbana; a política de drogas do Brasil, responsável por círculos viciosos fizeram explodir o encarceramento de mulheres negras; e o desprezo ao corpo negro.

“Não podemos esquecer a morte de Cláudia Ferreira da Silva, que cuidava de quatro filhos e de quatro sobrinhos e morreu numa manhã de domingo, depois de ter sido baleada e de ter o corpo negligentemente arrastado por muitos quilómetros. Naquele dia, Claudia foi a expressão desse corpo negro coletivo que morre todos os dias”, disse Antonio.

Feminicídio de Estado

Soraia da Rosa Mendes, coordenadora nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, disse que as mulheres negras são vítimas sistemáticas de uma série de mitos, como os de que tem um corpo mais forte. “Por trás disso, da ideia de um corpo mais resistente, está a ideia de um corpo mais destinado à violência”.

Para ela, “a Lei Maria da Penha representa uma grande conquista, mas não é suficiente para as mulheres negras”. Depois de ler trechos da Convenção da ONU contra o Genocídio, ela disse que “há uma ação sistemática do Estado Brasileiro contra a reprodução da vida das mulheres negras, que nos autoriza a falar em um feminicídio de Estado”.

IlkaViolência obstétrica

Ilka Teodoro, diretora jurídica da Associação Artemis contra a Violência Doméstica e Obstétrica, ratificou a percepção de que “a morte de mulheres negras extrapola e muito a questão da violência doméstica”. De acordo com a advogada, a violência obstétrica é aquela que incide nos atendimentos referentes ao pré-natal, ao parto e ao puerpério. Em todas as fases as mulheres negras recebem menos atenção; têm menos tempo nas consulta do pré-natal; não recebem atenção especial a doenças de mais incidência entre elas, como pressão alta e anemia falciforme; e têm menos acesso a métodos de analgesia.

Referindo-se às recentes audiências do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto, a advogada também registrou que as mulheres negras são as maiores vítimas de procedimentos clandestinos. Ela lembrou também que a mortalidade materna de mulheres negras impediu o Brasil de cumprir metas internacionais; que as mulheres negras lideram as mortes por causas evitáveis; que foram as mais atingidas pela epidemia do Zika Vírus; e que as meninas negras são as maioria entre vítimas de estupro vulnerável , em  gravidez precoce e  no casamento infantil como única alternativa de vida.

Segundo a advogada, ” nos últimos anos, o Estado só avançou na coleta de dados, porque antes nem tínhamos dados com recorte racial. Mas é preciso fazer mais. Assim como o STF foi provocado a fazer durante as audiências sobre a descriminalização do aborto, precisamos centralizar o racismo na forma como produzimos nossas leis”.

finalAutodefesa

O debate foi prestigiado pela presença de muitas autoridades, como a primeira dama e colaboradora do Governo de Brasília, Márcia Rollemberg; Emilia Fernandes, presidente do Fórum de Mulheres do Mercosul – Brasil; e Érica Paes, especialista em Defesa pessoal para Mulheres, faixa preta de Jiu-jitsu, 5º grau, que agora é assessora da SPM, onde coordena o projeto “Eu sei me defender”, que provocou polêmica.

“Estou tendo a oportunidade de levar para o país um programa que eu desenvolvi de prevenção e enfrentamento a violência contra mulheres. A gente ensina, neste trabalho, as mulheres a reconhecer um agressor em potencial, a se antecipar à ação de agressores, e também, caso tudo falhe, a ter possibilidade de defesa diante de um risco iminente de violência.

Para Ilka Teodoro, advogada, diretora Jurídica da Artemis, “a defesa pessoal é importante, mas esse dever de proteção das mulheres, essa responsabilidade não pode ser jogada para nós”, concluiu.

ProMul Senado (Reprodução autorizada mediante citação da ProMul Senado)

Fotos: Zeca Ribeiro/Comissão da Mulher