Leis e políticas ainda precisam sair do papel

05/03/2018 09h30

Na discussão sobre programas para autores de violência contra as mulheres, especialistas disseram que o Brasil precisa se esmerar na aplicação das leis e na avaliação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Esta foi uma das mensagens da 51ª Pauta Feminina, realizada nesta 5ª feira, 1º de março, na Ala Alexandre Costa, Plenário 9, com o objetivo de conhecer e discutir “Ações do Serviço Público para Enfrentar Violências e Feminicídio: o atendimento de autores de violência”.

Realizada pela Procuradoria Especial da Mulher do Senado, pela Secretaria da Mulher da Câmara e outros parceiros, atividade reuniu 8 especialistas e foi dividida em duas mesas mediadas pela deputada federal Jô Moraes (PCdoB-MG) e pela presidenta do Fórum de Mulheres do Mercosul, Emília Fernandes, que foi a primeira senadora eleita pelo Rio Grande Sul e também a primeira ministra da pasta de Mulheres.

Pesquisa

Coordenador do Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), Henrique Marques Ribeiro fez um histórico do OMV, criado em 2016. Ele fez referência a resultados de pesquisa em profundidade realizada pelo Observatório com 19 pessoas atuantes em órgãos de enfrentamento à violência doméstica e familiar nas cidades de Feira de Santana (BA), Goiânia (GO), Palmas (TO), Santa maria (RS) e Lavras (MG), bem como uma síntese de alguns dados da pesquisa nacional que o DataSenado realiza desde 2005.

De acordo com a última enquete do instituto de pesquisa do Senado, em 2017, mais mulheres dizem ter sofrido violência doméstica provocada por um homem, mais vítimas foram agredidas por um ex- (marido, companheiro, namorado), mas menos mulheres tiveram atitude de procurar denunciar. Como o intervalo de tempo praticamente coincide o período de vigência da Lei Maria da Penha (LMP), os dados podem sugerir que as mulheres têm se frustrado com a aplicação da LMP e a atuação do Estado.

Para Henrique, nenhuma interpretação pode ser definitiva sem uma avaliação melhor do marco legislativo – no qual se inclui a própria LMP – e das políticas públicas implementadas a partir dela. “Esse esforço depende de muita interlocução entre os agentes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que têm muito conhecimento sobre sua área específica acumulado”, disse.

Agressores

Fabrício Guimarães, doutor em psicologia clínica e cultura, e psicólogo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, fez um histórico do início tardio dos atendimentos a autores de violência, adotados por último pelo Brasil na América Latina. Em geral iniciados em serviços que atendiam exclusivamente as mulheres, os serviços voltados para os agressores esbarram também na ideia de que “se o dinheiro é pouco, melhor gastá-lo com a vítima do que o desperdiçar com agressores”.

O juiz do TJDFT Ben-Hur Ferreira destacou virtudes da Lei Maria da Penha , como ideia de que a violência é um fenômeno multidimensional que precisa ser enfrentado por uma equipe multidisciplinar. Ele comparou a LMP uma ferramenta, cujo uso depende de quem a manipula. Recorrendo a polêmica recente sobre uma música funk, ele destacou que é preciso desconstruir estereótipos culturais muito arraigados, presentes não só na música mas inculcados desde as fábulas infantis.

“O beijo do príncipe na Bela Adormecida hoje poderia ser plenamente enquadrado como estupro de vulnerável”, disse o juiz Ben-Hur, lembrando vários aspectos das fábulas que, em sua opinião, ensinam as mulheres a sofrer, a ser submetidas e a violentar-se, “para fazer seu pé se encaixar no sapatinho de cristal”.

Integralidade

Thiago Pierobom, promotor de Justiça do MPDFT, alertou que “não estamos aplicando a LMP na sua integralidade”. Inovadora por privilegiar a proteção integral das mulheres – em prevenção, proteção e responsabilização do agressor –, a LMP é um dos marcos do esforço de modificar uma realidade que faz 50% das mortes de mulheres serem associadas à violência doméstica e familiar. “Mesmo os 5% de homens que são vítimas de violência doméstica e familiar, são frequentemente vítimas de outros homens”, disse Thiago.

O promotor de justiça assinalou que é preciso considerar que as mulheres negras são vítimas de violência doméstica e familiar em proporção muito maior (66,7%) à sua presença  na população (51%). A desconstrução dos estereótipos de raça e de gênero também passa pelos homens. “Se os homens são parte do problema, têm que ser parte da solução”, porque “a masculinidade construída na sociedade ocidental tira a humanidade do homem”, disse.

Professora de sociologia da Universidade de Brasília, Lourdes Bandeira salientou a necessidade de alterar um sistema que naturaliza e tolera a violência contra as mulheres. “O racismo e o sexismo estão no DNA da sociedade. Não tem como discutir violência contra a mulher sem enfrentar a questão do racismo institucional”. Para ela, há um “legado histórico patriarcal, patrimonial e patrilinear que não está desestruturado e reforça a dificuldade de aplicar políticas como aquelas preconizadas na LMP”. Isso se agrava “porque quem socializa hoje as populações vulneráveis é a mídia”.

França

Veronique Durand, doutora em antropologia, pesquisadora internacional da violência contra as mulheres e organizadora – ao lado de Sarita Amado – do recém lançado livro Veias Feministas: Desafios e Pespectivas para as Mulheres do Século 21 , apresentou sua experiência com o projeto Halte Violences, desenvolvido na França. O projeto iniciou com a percepção de que “um mesmo homem ‘mandou’ três mulheres para o mesmo abrigo”.

Segundo Veronique, é comum que as próprias mulheres peçam que os homens sejam, acompanhados. Para ela, “o feminicídio muitas vezes acontece como uma reincidência”. Trabalhando com base em ideias de Roland Contanceau, Veronique considera importante interromper os mecanismos de repetiçãoe reprodução social da violência, que fazem com que as crianças abusadas sejam potenciais agressores no futuro.

Provid

Psicólogo e sargento integrante do Policiamento de Prevenção Orientada à Violência doméstica (Provid/PMDF), Marcelo Porto Dias fez uma apresentação da iniciativa criada em 1993, no 8º Batalhão da Ceilândia, para visitar regularmente as casas de mulheres que passaram por situação de violência doméstica.

Inicialmente denominada Educação para a cidadania e Segurança (EDUCS), a ideia implementada em Ceilândia foi reformatada como Policiamento Orientado ao Problema (POP) e gerou o programa de Prevenção Orientada à Violência Doméstica, hoje presente em várias Regiões Administrativas.

O sargento Marcelo defendeu a necessidade de mudar o paradigma de combater a violência com a violência. “Temos que atuar de forma ativa e não só reativa”, disse. “Muitas vezes a medida protetiva é só um papel que não protege efetivamente aquela mulher que foi incentivada, inclusive por muitas campanhas do Estado, a procurar a ajuda do Estado”.

Nafavd

Raíssa Rossiter, subsecretária de Políticas para as Mulheres da Secretaria  Adjunta de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do Governo de Brasília, falou sobe a experiência dos Núcleos de Atendimento às Famílias e aos Autores de Violência Doméstica (Nafavd), que oferecem um serviço multidisciplinar de acompanhamento a agressores.

Criados pioneiramente em 2003, hoje os núcleos estão presentes em 9 pontos do distrito Federal e envolvem 36 dos 144 servidores da Subsecretaria de Política para Mulheres. Raíssa também exibiu trechos de documentário lançado em dezembro de 2017 sobre a história do Nafavd, realizado por iniciativa de Jean Costa, um de seus servidores, e disponível no Youtube

Cerca de 60 pessoas prestigiaram a Pauta Feminina, entre as quais: Gorete Pereira, deputada estadual de Sergipe, que anunciou a criação da Procuradoria Especial da Mulher na Assembleia Legislativa; Mara Dall’Negro, coordenadora do Fórum de Mulheres do Mercosul; Kiriti Chakma, embaixada de Bangladesh; Isabella Tomás, embaixada da Áustria; Cecília Sá Cavalcante, embaixada da Suécia; Ilana Trombka, diretora-Geral do Senado; e Tania Fontenele, Instituto de Pesquisa Aplicada da Mulher.