Larissa Bortoni: trabalho generoso a serviço da comunicação pública

07/03/2019 13h24

06/03/2019, 21h19 - ATUALIZADO EM 06/03/2019, 22h07

Como aquelas crianças que preferem o fundo da sala de aula, para de lá comandarem a bagunça, Larissa Bortoni (1968-2019) escolheu sentar no fundo da redação da Rádio Senado. E para começar a trabalhar, passava lentamente pelos corredores e já anunciava a pauta – a sua pauta. Questões familiares, os problemas do país, o assunto que cobriria naquele dia, a próxima viagem que faria, tudo cabia na lista de assuntos que ela ia apresentando, sempre com um toque de generosidade, com pressa de resolver os problemas, fossem de trabalho, do Brasil, de um colega ou de alguém que precisasse e houvesse cruzado o seu caminho.

Filha de Clécio Dias, ativista político morto quando ela ainda era uma criança, Larissa viveu inconformada em relação às mazelas sociais brasileiras; e inquieta, sempre inventando um jeito de denunciá-las e dar voz a quem nunca é ouvido. A lista é enorme: doentes psiquiátricos, homossexuais, mulheres vítimas de violência, ciganos, adolescentes grávidas e meninas encarceradas. Quem costuma se preocupar com essa gente? A Larissa se preocupava e fazia a redação se mobilizar.

Desde 2005, Larissa ganhou onze prêmios de jornalismo, sempre por reportagens de forte cunho social e de defesa dos direitos humanos, dez deles feitas com um ou mais colegas. A última, que conta as histórias dos autistas adultos, é reveladora do olhar aguçado da jornalista para ver o que a gente não costuma perceber e descobrir uma história que precisa ser contada, um problema a ser solucionado.

Concursada do Senado desde 1998, Larissa sempre se dedicou à cobertura diária das atividades legislativas, ajudando a sociedade a entender o que se passa no Parlamento. As reportagens especiais eram o jeito que ela encontrava de trazer os problemas do mundo para dentro da instituição e de levar o nome do Senado a todos os cantos do Brasil.

Em 2013, Larissa investigou a situação do atendimento psiquiátrico no país. No conteúdo, o trabalho chamava atenção para a tragédia dos manicômios e os possíveis avanços da legislação. Na forma, apontava para o futuro da comunicação. ‘Toda loucura deve ser protegida’ foi feita para plataformas de texto, áudio e vídeo e acabou por se tornar um embrião das infomatérias que o Portal de Notícias publica atualmente.

Larissa tinha orgulho de ser Bortoni. A mãe, Stella, conseguiu criar três crianças e ainda se tornar uma das maiores referências em linguística do Brasil. O exemplo de que é possível amar, criar a prole, trabalhar no que gosta e ainda cuidar dos outros viveu em cada dia dos seus 50 anos.

Talvez por ter tido uma infância difícil, Larissa tenha teimado em sempre ser criança. Uma hora estava sentada no chão com os filhos dos amigos, disputando com eles um pedaço de chocolate; logo depois levantava e brigava com a molecada, com medo de que alguém danificasse a casa que ela cuidava e decorava com tanto zelo.

Uma criança adulta. Era assim com os filhos, André e Lucas, de quem cuidava e por quem era cuidada. Era assim com os amigos, aos quais mandava deixar de ‘bobice’; mas dos quais vivia ouvindo conselhos para cuidar da saúde ou diminuir o ritmo de trabalho. A vontade de se manter jovem se manifestava também nos jeans e tênis surrados e na empolgação no trabalho, que adorava fazer com os estagiários da Rádio.

Uma mulher que não se dobrava ao poder do machismo, inventou de morrer no mês da mulher e deixou como última reportagem especial um trabalho sobre a trajetória do feminismo brasileiro. A reportagem será concluída por seus colegas, na mesma redação que ela encheu de frases engraçadas, de perguntas curiosas e quase infantis, e de protestos contra as iniquidades do mundo.

Em dezembro de 2018, Larissa abriu a sua casa para a confraternização dos colegas da Rádio Senado. Lá estava ela toda alegre e rabugenta naquele espaço decorado pelo enorme acervo de artesanato que ela mesmo produzia e oferecia aos amigos. Na mesma casa onde morreria, três meses depois, no dia 4 de março, após sofrer um mal súbito, nos deixando perplexos, num primeiro momento, e agora, arrasados.

Larissa Bortoni não acreditava em Deus e odiava ensinamentos. Mas deixou alguns. Entre eles, o que é preciso demonstrar o amor pelos amigos com palavras e gestos. Felizmente, ela morreu sabendo que era amada.​

 

Marco Reis, diretor da Rádio Senado