Cidadanias no Brasil: diversidade e dilemas
Você, muito provavelmente, já deve ter ouvido falar (ou dito) que “O brasileiro não sabe votar” ou que “O brasileiro tem a memória curta”. Para quem nunca ouviu essas frases, elas se tornam mais comuns em períodos eleitorais, em especial quando o candidato ou candidata daquele que as pronuncia sofre uma derrota. Ditas dessa maneira, essas frases ganham um tom de desabafo, mas também soam como algo elitista, considerando que o derrotado se acha melhor (ou mais inteligente) que os outros eleitores.
Em linhas gerais, quando usadas, essas frases funcionam ainda como uma maneira de crítica ao comportamento político do povo brasileiro e passamos a nos ver como incapazes de exercer o nosso direito ao voto. Desse modo, somos acusados, por nós mesmos, de eleger alguém em troca de pequenos ganhos, dinheiro fácil ou que votamos simplesmente com a barriga, críticas essas que podem carregar um tom de aporofobia (preconceito contra pessoas em situação de pobreza ou de miséria), dependendo da situação. Esses são exemplos (e há vários outros) de julgamentos que realizamos à nossa própria cidadania.
Diante desse quadro, a Coordenação de Arquivo do Senado Federal (COARQ) te convida a conhecer um pouco da nossa história cidadã e a data não podia ser mais propícia, considerando os 40 anos da Redemocratização de 1985. A COARQ busca, assim, trazer alguns momentos de um fenômeno histórico dinâmico e complexo, mas que nos ajudarão a refletir sobre a nossa relação com o Estado, desde a Independência até os dias atuais.
O nosso intuito, aqui, é pensar acerca desse autopreconceito e demonstrar ao final que os brasileiros são um povo disposto a lutar por melhores condições sociais e que, durante esse trajeto, buscamos, sim, uma maior participação política.
Como veremos nesta publicação, as cidadanias brasileiras se manifestaram e se expressaram de diferentes maneiras e geraram, também, muitos dos dilemas que enfrentamos atualmente.
O mito da Independência do Brasil
Um dos pontos mais difíceis de se voltar ao passado é determinar um ponto de partida. Decidimos, aqui, escolher a Independência como sendo o início da nossa relação com o Estado, pois o mito que se gerou em torno do 07 de setembro de 1822 explica em parte o motivo de nós, brasileiros, acharmos que somos um povo que não se interessa muito por política.
Comecemos pela imagem que representa a Independência do Brasil, pois, com certeza, ela já foi vista em algum lugar. Estamos falando daquele quadro pintado por Pedro Américo (1843-1905), em que ele retrata um Dom Pedro I imponente, que, montado em um cavalo, ergue a espada com sua mão direita, declarando “Independência ou Morte” às margens do Rio Ipiranga. Provavelmente você já deve ter visto esse quadro ou ao menos ouvido falar dessa história.
Não vamos entrar em muitos detalhes sobre esse episódio, porque esse não é o nosso objetivo. Todavia é importante destacar que Pedro Américo não era vivo em 1822. Dom Pedro I também não estava sentado em um cavalo quando declarou a nossa Independência, mas em uma mula e, no dia, também sentia uma forte indigestão. Em relação ao grito provavelmente ele não tenha ocorrido. Por fim o quadro foi encomendado para fazer parte do Museu do Ipiranga, em São Paulo, muitos anos depois da Independência.
Mas por que, então, nos é transmitida essa história? Porque esta é justamente uma das funções dos mitos e das tradições nacionais: ao relatar a origem de um acontecimento, eles dão sentido a uma realidade idealizada.
A nossa realidade é que, anos após a Independência, era necessário criar um sentimento de pertencimento no qual os brasileiros se sentissem unidos por compartilhar o mesmo governo e território. Nesse processo, história, memória e um pouco de fantasia se confundem em prol da criação de um Estado Nacional.
Para esta publicação, o mais relevante é que o mito do 7 de setembro ajudou a camuflar que a nossa Independência foi um processo marcado por inúmeros conflitos. Primeiramente, o país se encontrava dividido. Um exemplo disso é que os "termos utilizados pelos habitantes do Brasil à época (...) mostram que essa identidade comum era ainda muito frágil entre as partes, (...) tanto assim que eles ora se diziam “brasileiros”, ora “brasílicos”, ora “brasilienses”. Era frequente também o uso de “portugueses da América” ou “americanos”: os habitantes do Brasil, principalmente os brancos, viam-se como “portugueses”, como um subgrupo dentro desse grupo maior"
Em segundo lugar, a Independência não durou apenas um dia e, sim, vários anos. Se pensarmos em alguns acontecimentos do Brasil Colônia (1500-1822), tanto a Inconfidência (ou Conjuração) Mineira (1789-1792) quanto a Revolução Pernambucana (1817) já lutavam para se separar da Coroa Portuguesa. Ademais, entre 1821 e 1823, havia vários projetos políticos sendo debatidos e eclodiram inúmeras guerras em nosso território, ganhando destaque as que ocorreram nos estados da Bahia, do Ceará, do Piauí, de Pernambuco, do Maranhão e do Pará.
A Independência, assim, era uma opção entre várias escolhas que se apresentavam: alguns, por exemplo, lutavam para ter acordos comerciais mais vantajosos, como era o caso de algumas províncias do Norte e do Nordeste. Outros, mais ao Sudeste e ao Sul, não queriam perder os títulos obtidos com a vinda da Coroa Portuguesa em 1808 e, por isso, permaneceram ao lado de Dom Pedro I. Este, em dezembro de 1822, prometera também “liberdade aos escravizados que se alistassem nas tropas brasileiras”2, fazendo com que muitos cativos pegassem em armas, demonstrando que a Independência se transformou em uma oportunidade de se obter a alforria.
Entre 1822 e 1823, pelo menos 60 mil militares se envolveram. Infelizmente “os números sobre as baixas da guerra são imprecisos, mas teriam girado em torno de 3 a 5 mil mortos, além de milhares de feridos e prisioneiros” nesse período. É importante destacar ainda que a nossa emancipação política não apaziguou totalmente os ânimos: em 1828 perdemos a Guerra da Cisplatina (1825–1828) e, já em 1831, Dom Pedro I renuncia e retorna a Portugal.
Analisando esse processo mais a fundo, o mito em torno do 7 de setembro dificultou, portanto, a percepção de que o nosso país foi se formando, mediante disputas políticas diversas que retratavam as várias formas de encarar as realidades dessa época. Ao falarmos de cidadania no Brasil, então, o primeiro passo é não pensar no singular, mas, sim, em um processo plural e dinâmico, ou seja, em cidadanias brasileiras.
Votos e resistências no Brasil Império
Quando pensamos em cidadania, “automaticamente” o voto vem à nossa mente. Sobre isso, gostaríamos de chamar atenção para dois pontos. O primeiro é que o voto não é sinônimo de democracia. Houve, por exemplo, eleições praticamente ininterruptas entre 1822 e 1930 em nosso país, mas isso não quer dizer que elas foram democráticas, ao longo desse período. Vamos utilizar o Brasil Império (1822-1889) para exemplificar essa situação.
Segundo a Constituição de 1824, a eleição brasileira era indireta e dividida em dois turnos. No primeiro, os votantes, homens com mais de 25 anos e renda mínima de 100 mil-réis, escolhiam os eleitores. Em um segundo turno, esses eleitores, que tinham uma renda mínima de 200 mil-réis e que ocupavam os cargos mais altos do Estado, seriam os responsáveis por eleger deputados e senadores. O cargo de deputado tinha um mandato de quatro anos, enquanto os de senadores eram vitalícios e escolhidos pelo Imperador, após a formação de uma lista tríplice.
Dentro desse cenário eleitoral, mulheres e escravizados estavam fora, isso é, a maior parte da população brasileira não votava. Outro detalhe é que, apesar de o voto ser por renda (censitário), muitas pessoas votavam, já que a renda de 100 mil-réis não era um valor tão exorbitante assim para a época. Assim, os votantes tinham uma grande importância dentro desse jogo político, porque, além de fazerem parte do primeiro turno eleitoral, vereadores e juízes de paz também eram escolhidos por eles nos municípios. As eleições imperiais, então, eram um momento-chave da nossa política e, por isso, marcadas por inúmeras fraudes e violências.
Um exemplo de fraude eram os fósforos. Fósforo podia ser o representante do votante, quando este não podia se alistar por algum motivo; ou era alguém contratado para se passar pelo votante que havia falecido. Em algumas situações, o fósforo representava diferentes pessoas e votava mais de uma vez numa mesma eleição. Em outros casos, bem cômicos, o fósforo disputava com o votante real e conseguia vencê-lo, ao convencer o público de que ele era a pessoa verdadeira.
Acerca da violência, durante o período eleitoral, uma figura importante era o capanga. Contratado por chefes locais, ele era o responsável por garantir que o candidato escolhido pelas autoridades vencesse a eleição, logo amedrontava, ameaçava e impedia que possíveis adversários comparecessem. Era comum, por exemplo, bandos armados saírem às ruas no dia das eleições, impedindo que muitos votassem por medo de sofrerem algum tipo de retaliação ou humilhação.
Um detalhe interessante é que as fraudes, os tumultos e as violências não eram registrados nas atas eleitorais, por isso as eleições desse período ficaram conhecidas como “bico de pena”. Seguindo essa linha, a pena era a garantidora da “regularidade” de todo esse processo, afirmando que tudo havia ocorrido de acordo com as legislações da época.
Diante do que foi falado, gostaríamos de destacar, assim, que o voto, por mais que seja uma mesma ação, possui vários significados: ele pode, sim, ser sinônimo de um dever e de um direito, fruto de um sentimento de participação política. Porém, tanto no Brasil Império como na Primeira República, esse exercício era mais um ato de medo, obediência, lealdade e gratidão do que qualquer outra coisa. Sentimentos esses que também estão presentes nos dias de hoje.
Como mencionado, o voto no Brasil Império não abarcava a maior parte da nossa população, dado que escravizados e mulheres estavam fora desse jogo político. Logo, quando tratamos da sociedade brasileira, devemos pensar em outras formas de cidadania. Laélia de Alcântara (1923-2005), a primeira senadora negra deste país, destacou, por exemplo, que os quilombos, as fugas, as rebeliões e até mesmo crimes cometidos contra senhores e feitores devem ser vistos como atos de resistência, durante esse período. Ainda mais se nos lembramos de que as elites da época tinham medo que uma grande insurgência negra ocorresse no país, aos moldes do que ocorreu na Revolução Haitiana (1791-1804).
Analisadas dessa maneira, as capoeiras, as cantigas, as músicas e as irmandades religiosas à época não devem ser analisadas apenas como ações culturais ou simples manifestações de escravizados, mas também como forma de se fazer política.
O próprio suicídio, algo recorrente nos cativeiros, deve ser visto como uma ação cidadã, pois, nesse caso, ele é um ato de recusa em fazer parte de uma sociedade extremamente desigual na qual punições, como o açoite, a amputação de membros e as mutilações eram a regra. Dessa forma, muitos preferiam tirar a própria vida a ter que enfrentar maus tratos que incluíam ainda “cortar uma orelha do escravo fugido para que fosse identificado ou seccionar o tendão de Aquiles para impedi-lo de fugir, castrações, amputações de seios, extração de olhos, fratura de dentes e desfiguração da face”6.
Diante desse quadro, ao falarmos de cidadanias no Brasil, o segundo passo é não as associar diretamente à eleição e ao voto, pois eles são uma forma de exercício cidadão, mas não os únicos. Em um país que se construiu com base na escravidão, devemos relacionar a nossa cidadania também a diferentes formas de encarar e de resistir a essa realidade.
Getúlio Vargas: o pai dos pobres?
No dia 03 de novembro de 1930, Getúlio Vargas assumiu o poder, após um bem-sucedido golpe de Estado. Rompendo com a “política do café com leite”, sua chegada significou também uma série de medidas que mudaram para sempre a história do país, já que, no mesmo ano, o novo presidente criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública. Em 1932, fundou também a Justiça Eleitoral e, pressionado, convocou uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração de uma nova Constituição, promulgada em 1934.
Apesar dos avanços, Getúlio Vargas, insatisfeito com as eleições presidenciais marcadas para 1938, deflagrou um novo golpe de Estado ao apoiar o Plano Cohen, documento elaborado pelo próprio governo que destacava a organização de uma conspiração comunista. O êxito desse novo golpe não foi por acaso: além de fazer uso de um antissemitismo moderno que começava a se espalhar pelo país (Cohen era um sobrenome judeu muito comum à época), alguns anos antes, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) havia tentado tomar o poder no episódio que se tornou conhecido como “Intentona Comunista”.
Assim, mediante esse Plano, o Estado Novo (1937-1945) é fundado e, com ele, começa uma nova agenda de reformas: são criados o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco e a Fábrica Nacional de Motores (FNM). No campo legal, entre outras normas, publica-se também a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Em linhas gerais, a CLT complementava outra medida criada também durante o Estado Novo: a Justiça do Trabalho. Tratado como “caso de polícia” na Primeira República, o operário muda de cena e passa, com essas duas medidas, a ter um espaço e uma legislação para se proteger e reivindicar seus direitos. Entretanto o principal meio de luta trabalhista, a greve, estava proibido. Outro detalhe é que a norma só protegia os empregados urbanos, deixando os trabalhadores rurais à mercê dos seus patrões no campo.
Diante desse cenário, os empregados se encontravam em uma situação controversa durante o Estado Novo: ao mesmo tempo que havia meios legais de proteção, eles não podiam fazer greve e tinham suas demandas filtradas pelos chamados “pelegos”, líderes sindicais que funcionavam como intermediadores entre as demandas operárias e o Estado. A expressão "pelego" origina-se da pele de carneiro usada para tornar os assentos dos cavaleiros mais confortáveis. Nesse contexto, o pelego era o responsável por “amortecer” as tensões dessa relação.
Apesar desse quadro contraditório, Getúlio Vargas foi apelidado de “pai dos pobres”, sendo considerado um protetor dos trabalhadores. Todavia esse apelido ajudou, assim como no mito da Independência, a camuflar uma realidade bastante diversa e marcada por várias lutas.
Logo no início da República, as classes trabalhadoras já vinham se organizando. Em 1890, foi fundada “A Voz do Povo”, um dos primeiros jornais operários do Brasil. No início do século XX, trabalhadores das fábricas de tecidos do Rio de Janeiro, capital federal à época, declararam greve e se uniram pela redução da jornada de trabalho e por aumento salarial. Em 1907, congressos operários em São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Recife também foram organizados em torno dessas pautas e partidos com viés trabalhista também surgiam, demonstrando a emergência da classe.
A pressão em algumas regiões era tão grande que foram decretadas normas proibindo greves, como a Lei Adolfo Gordo, que propunha a expulsão de estrangeiros envolvidos em paralisações. Curiosamente, Adolfo Gordo, já no Congresso Nacional, propôs anos depois uma lei que buscava proteger os empregados envolvidos em acidentes de trabalho, demonstrando que a luta da classe não parou, mas, sim, continuou.
Nessa linha, músicas e peças de teatros com críticas às condições dos trabalhadores também passam a ser produzidas e se acentuam com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e as Revoluções Russas (1917). Dessa forma, eclodem inúmeras greves em 1917 que exigiam melhores salários, redução de jornada e proibição de trabalho para menores de 14 anos. Incluídas nessas pautas, estavam também as lutas por férias e por previdência.
Perante esse cenário, o que se percebe é que Getúlio Vargas reorganizou antigas demandas trabalhistas, dando a impressão de que haviam sido presentes concedidos por ele. Além da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e da Justiça Trabalhista, já citados, são fundados também o Departamento Nacional do Trabalho e a carteira de trabalho. Regulamentaram-se o ofício para menores de 18 anos e o trabalho feminino, sendo este proibido no período noturno. Outra medida importante implementada é a equidade salarial entre homens e mulheres.
Para esta publicação, todavia, o mais importante é destacar que medidas estatais dificilmente ocorrem sem a participação e a luta popular, por mais que elas sejam implementadas ao longo de ditaduras, como foi o caso de algumas iniciativas trabalhistas de Getúlio Vargas. Infelizmente, no Brasil, temos o costume de achar que o povo é apático, pois encontramos dificuldades de enxergar que o nosso comportamento faz, sim, a diferença, mesmo quando cooptado pelos governos.
Ao invés de enfatizarmos, assim, o nosso papel nessas lutas, temos a mania de dizer que o Brasil sempre está à procura de um “salvador da pátria”, quando, na prática, o que ocorre é justamente o contrário. Dessa forma, analisar com mais cuidado as histórias das nossas cidadanias, ou seja, examinar as nossas trajetórias de baixo para cima é o terceiro passo proposto, no intuito de que nos demos conta, quem sabe, do nosso valor político.
Redemocratização e a transição para a Nova República
Considerando os 40 anos da Redemocratização, decidimos trazer mais detalhes do período compreendido entre 1985 e 1990. Os momentos anteriores, portanto, foram uma forma de introduzir e contextualizar as mudanças trazidas pelo governo democrático, após a ditadura civil-militar (1964-1985). Outro detalhe é que, em homenagem ao dia 15 de março de 1985, iremos trazer também imagens e documentos custodiados pela COARQ, com o objetivo de ilustrar alguns momentos-chave da transição para a Nova República.
Desde o início da década de 1970, a ditadura já começava a dar sinais de desgaste. O fim do milagre econômico (1968-1973), os casos de corrupção e o aumento da desigualdade começavam a diminuir o fôlego do regime. Já prevendo o seu fim, Ernesto Geisel (1907-1996) inicia um processo de distensão lenta e gradual. Dando continuidade a essa medida, João Baptista Figueiredo (1918-1999), seu sucessor, impõe uma legislação que permite a formação de novos partidos políticos e assina também a Lei da Anistia em 1979, concedendo perdão a todos os envolvidos nesse regime de exceção, inclusive agentes estatais.
Movimentos populares, então, começaram a ganhar mais força e inúmeras greves eclodiram no país, passando a fazer parte do cotidiano brasileiro, ao longo da década de 1980. Essas paralisações, importante destacar, rompiam com práticas pelegas do passado varguista. É nesse clima que o Deputado Federal Dante de Oliveira (1952-1986) propõe, em 1983, uma emenda constitucional, visando à eleição direta para o cargo de Presidente da República. Dada a pressão, a proposta se transforma no movimento conhecido como “Diretas Já” e ganha as ruas com gritos de "Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil”. Para muitos, as Diretas são consideradas a maior mobilização popular do país.
Apesar de todo o ímpeto das ruas, o Congresso Nacional barrou a iniciativa: como se tratava de uma emenda constitucional, eram necessários dois terços da Câmara dos Deputados, ou seja, 320 votos. Faltaram, porém, 22 para que o projeto fosse enviado ao Senado Federal. Dessa maneira, os opositores saíram vitoriosos, dado que os 65 votos contrários e as 3 abstenções impediram o andamento da medida. Diante desse quadro, o dia 25 de abril de 1984, que se iniciou como um dia festivo, terminava em um clima de luto.
Não obstante a frustração, o movimento não havia sido à toa. Tancredo Neves (1910-1985) aparece como uma escolha que gozava de apoio popular, ainda que o vice escolhido para a sua chapa, José Sarney, tivesse apoiado a ditadura e fosse eleito senador, mais de uma vez, pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação do governo militar. Após muitas disputas internas, no dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito Presidente da República de forma indireta por um Colégio Eleitoral, tendo como vice José Sarney.
O quadro de otimismo, entretanto, não dura muito tempo. Dois meses após ser eleito, Tancredo Neves é internado no Hospital de Base de Brasília, com suspeita de apendicite. Uma semana antes, ela já havia apresentado fortes dores abdominais e uma dor intensa, com febre e mãos e pés gelados. O que agravava ainda mais a situação médica era o quadro político: Tancredo sabia que o seu quadro clínico estava sendo acompanhado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem do governo, e, com medo de um novo golpe militar, recusava-se a fazer uma cirurgia antes de tomar posse.
Dentro desse cenário, uma saída que começava a ser discutida era que Tancredo e Sarney renunciassem e que Ulysses Guimarães (1916-1992), Presidente da Câmara dos Deputados à época, se tornasse o novo Chefe do Executivo. Entretanto, como essa medida não estava prevista, seria necessária a aprovação de uma nova Emenda Constitucional. Como defensor da Constituição, Ulysses Guimarães, porém, segue o estabelecido na Carta de 1967 e defende que o vice deveria tomar posse, decisão essa que havia sido corroborada durante uma conversa com Tancredo Neves, mesmo internado.
Dadas as circunstâncias, a Mesa Diretora do Senado decide que Sarney tomaria posse interinamente, até que Tancredo melhorasse, mas essa recuperação nunca ocorreu. No dia 15 de março de 1985, então, tem fim a Ditadura Civil-Militar no Brasil, com a posse de José Sarney. Menos de um mês depois, no dia 21 de abril, Tancredo Neves viria a falecer, comovendo o país. Curiosamente, após 20 anos de um regime de exceção, o primeiro Presidente da República civil seria um antigo apoiador do governo militar e teria pela frente o desafio de governar democraticamente o país.
Dada a sua ligação com os militares, José Sarney inicia o seu governo sob desconfiança, mas, aos poucos, vai mudando essa impressão. Cumprindo algumas promessas de Tancredo Neves e com o aval de Ulysses Guimarães, começa a sua administração reforçando o seu compromisso democrático e põe em prática algumas medidas importantes: a primeira delas é a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte.
Link para o documento na íntegra: https://atom.senado.leg.br/index.php/msg-48-de-1985-1
Link para o documento na íntegra: https://atom.senado.leg.br/index.php/msg-49-de-1985-1
Nessa linha, dentro do “Emendão”, põe fim a alguns resquícios ditatoriais: mediante essa iniciativa, o Brasil voltaria a ter eleições diretas para os cargos de Presidente da República e para os prefeitos dos municípios considerados áreas de segurança nacional. Além disso, os analfabetos teriam direito ao voto e alguns partidos, postos na clandestinidade, seriam legalizados, sendo facilitada também a criação de novas agremiações.
Dando continuidade a essas medidas, no dia 28 de fevereiro de 1986, Sarney surpreende a todos e, ao decretar feriado bancário, lança também o Plano Cruzado, seu primeiro programa econômico e que rapidamente se demonstrou um verdadeiro sucesso, visto que as taxas de inflação e de desemprego caem e a população brasileira passa a gozar de um maior poder de consumo e de crédito. Esse poder se acentua também com o aumento do salário mínimo e o abono salarial. A popularidade de Sarney, então, dispara e seu passado autoritário começa a ser deixado de lado.
Porém havia uma pedra no sapato do Plano Cruzado: o congelamento dos preços. Essa medida não podia ser estendida por muito tempo e seu prolongamento já vinha recebendo críticas. Entretanto as eleições de 1986 também estavam se aproximando e qualquer alteração econômica poderia mudar o resultado eleitoral previsto. A euforia com o novo programa econômico, assim, se somou à necessidade de apoio no Congresso Nacional e os preços ficaram congelados até novembro desse ano. Tal medida, porém, mudou os rumos da economia brasileira.
O resultado das eleições foi o esperado, considerando a vitória dos aliados do governo, mas dias depois é lançado o Plano Cruzado II, que aumentava os impostos e as tarifas públicas. Os juros também subiram e os preços das mercadorias dispararam, em alguns casos, com valores reajustados em 100%. Produtos básicos começam a faltar nas prateleiras, o poder de compra da população brasileira, que havia aumentado recentemente, cai de maneira abrupta e o povo se sente traído. A popularidade do então Presidente, que era bem alta alguns meses antes, despenca e José Sarney se vê em uma situação cada vez mais delicada.
Com a situação econômica se deteriorando, o Plano Cruzado II perde força e, em maio de 1987, é lançado o Plano Bresser-Pereira. O programa econômico carregava o nome do novo Ministro da Fazenda, entretanto a solução proposta era antiga: entre as soluções, uma saída implementada foi novamente o congelamento dos preços. Como um todo, as iniciativas não correspondem às expectativas e a inflação, a recessão e o desemprego aumentam. Em janeiro de 1989, em uma última tentativa de estabilizar a economia brasileira, é lançado o Plano Verão (também conhecido como “Cruzado Novo”), porém ele também não surte o efeito esperado.
A transição democrática, portanto, não vai saindo como planejada e um saudosismo da ditadura começa a ventilar em parte da sociedade brasileira. Porém a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, no início de 1987, traz um pouco de esperança à população brasileira, tendo em vista as mudanças na forma de se fazer política no país. Em outras palavras: estamos falando da criação das Iniciativas (ou Emendas) Populares.
Com a nova Constituinte, a população brasileira se animou, mesmo com a derrota das “Diretas Já”, e passou a se movimentar em prol de uma democracia mais participativa. A solução encontrada foi a possibilidade de qualquer cidadão conseguir elaborar uma Emenda Constitucional, mas, para tanto, era necessário mudar o regimento interno da Casa Legislativa. Inúmeras caravanas, assim, são organizadas, a fim de convencer os novos parlamentares. Com o Congresso pressionado, Fernando Henrique Cardoso, o relator do regimento, aceita a proposta e, no artigo 24, inclui a Iniciativa Popular, “desde que subscrita por 30.000 (trinta mil) ou mais eleitores brasileiros, em listas organizadas por, no mínimo, 3 (três) entidades associativas, legalmente constituídas, que se responsabilizarão pela idoneidade das assinaturas”7.
Com essa primeira vitória, faltava, todavia, apresentar as propostas. Movimentos sociais, sindicatos e associações saem pelo país para ouvir e organizar as demandas do povo e promovem, nesse sentido, inúmeros bailes, shows e noites de autógrafos em várias cidades, como uma maneira de incentivar o debate democrático. Como resultado de todo esse empreendimento, no dia 12 de agosto de 1987, em um ato público, são apresentadas 122 propostas de emendas populares à nova Assembleia Nacional Constituinte.
Uma outra medida de democracia participativa, incentivada pela Assembleia, foi a criação de um formulário “Você também é constituinte, participe!”. Nesse modelo, o cidadão poderia enviar diretamente e por escrito suas sugestões para melhorar o país. Com todas essas iniciativas, a luta contra a Ditadura Civil-Militar passa a dar mais frutos concretos e o luto pela derrota das “Diretas Já” também vai sendo superado.
Perante esse cenário, a Constituição de 1988 é promulgada no dia 06 de outubro de 1988, em uma sessão bastante comovente. Por mais que tenha sido apelidada de “Constituição Cidadã” pelo seu principal idealizador, Ulysses Guimarães, o apelido também ganhou força, pois retratava a participação do povo brasileiro na elaboração dessa Carta. Sua criação foi resultado, portanto, de um esforço conjunto do Congresso Nacional e de “movimentos pelos direitos das mulheres, dos negros, dos portadores de deficiência, dos idosos, dos indígenas, dos presidiários, das crianças e dos adolescentes, num processo compreendido como participação política ampliada”8. Processo esse que jamais deve ser esquecido.
Nova República e as redes sociais
Para finalizar esta publicação, gostaríamos de chamar atenção para um “agente político” cada vez mais presente no nosso dia a dia: as redes sociais. Todavia, para entender a sua relação com as cidadanias brasileiras, gostaríamos de utilizar alguns fatos recentes da nossa história. Durante a Redemocratização de 1985, dois fatos, até certo ponto despercebidos, já forneciam indícios de uma das maiores mobilizações populares que iriam eclodir na Nova República.
Em dezembro de 1985, após alguns anos de discussões, foi aprovada a Lei nº 7.418, que instituía o vale transporte. Complementada em 1987, a medida foi uma solução encontrada para se obter receita e incentivar o uso do transporte público que havia sido deixado de lado pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e pelo Regime Civil-Militar. Como os choques do petróleo da década de 1970 atingiram a indústria automobilística do Brasil, era necessário criar novos meios de financiamento e essa foi uma das saídas propostas.
Ao longo da Redemocratização, um outro acontecimento relacionado aos transportes foi um motim popular, ocorrido no dia 1º de julho de 1987. Após uma decisão judicial autorizando o reajuste das passagens em 49%, uma população de aproximadamente 30 mil pessoas depredaram em torno de 100 ônibus e incendiaram outros 60 no Rio de Janeiro, como forma de protesto ao aumento implementado. Dadas as circunstâncias, o juiz recuou da decisão e os preços continuaram com o mesmo valor de antes.
Tanto a lei do vale transporte como esse motim foram expressões de uma jornada longa e tortuosa em busca de transportes públicos de qualidade e que nos remetem à chegada dos primeiros bondes no país. Um dos motins mais expressivos foi a “Revolta do Vintém” (1879-1880), ocorrida também no Rio de Janeiro. O motivo foi o aumento de 20 réis (um vintém) sobre as passagens de trens que começavam a se instalar na capital federal à época, em decorrência da urbanização e da industrialização do Segundo Reinado (1840-1889). Nesses processos, o transporte custodiado foi alvo da insatisfação popular, dada a precarização das condições sociais vinda com essas mudanças.
Em linhas gerais, o que se procura destacar é que a questão do transporte não diz respeito somente à mobilidade urbana, mas estrutura também outros momentos da nossa vida. Qualquer revolta nesse sentido não se restringe ao aumento de tarifas, mas a várias outras situações que, com a subida dos impostos, pesam no bolso dos que mais precisam. O transporte público, assim, influencia no acesso à cultura, à educação e à qualidade de vida, seja no trabalho ou fora deste também, já que se associa ao tempo que será usufruído com familiares e amigos.
Um exemplo recente de manifestação que teve como estopim a questão dos transportes, mas não se limitou a eles, ocorreu em 2013. Como ficou mais conhecida, a “Revolta dos 20 centavos”, iniciou no dia 02 de junho, em São Paulo, após o governo estadual decretar o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus. Todavia o movimento não se resumiu às cidades paulistas e rapidamente se espalhou: houve manifestações em Recife, em Minas Gerais e em Porto Alegre, por exemplo, e também fora daqui, tendo em vista que Portugal, França e Alemanha também se tornaram palco dessas manifestações.
Entretanto o mais curioso é que uma pauta que era contrária ao aumento da tarifa do transporte público rapidamente se transformou em uma canalizadora de várias outras demandas: protestos contra as obras da Copa do Mundo de 2014, que ocorreria no Brasil, foram aumentando e, neles, muitos defendiam que os recursos fossem destinados à saúde, à segurança e, em especial, à educação. Os gastos das obras, portanto, foram mais um estopim, juntamente com os temas de gênero e de sexualidade que também passaram a fazer parte das insatisfações.
Apesar de bastante diversa, as manifestações de junho tiveram um denominador comum: as redes sociais. É claro que a rápida expansão desse movimento pelo Brasil e fora dele teria sido impossível sem essa nova ferramenta, porém sua importância deve ser relativizada, quando associada à questão das cidadanias. Em outras palavras: as redes sociais não são agentes políticos, considerando que elas não sonham, não se articulam e não procuram transformar as sociedades por si mesmas, ou seja, sem a participação do povo.
Assim como no mito da Independência, na ideia de uma cidadania única ou na necessidade de um “salvador da pátria”, destacar que as redes sociais são agentes políticos consiste em retirar o povo de um espaço conquistado por meio de muitas lutas que, como tentamos demonstrar ao longo desta publicação, são oriundas de realidades diversas e de formas de encarar o mundo distintas.
Analisar o passado de baixo para cima e dar vozes aos silenciados nessa trajetória são algumas saídas, para que valorizemos as nossas cidadanias, porém elas precisam de mais condições sociais que proporcionem esses reconhecimentos. O Senado Federal, atento a isso, tem procurado, mediante o programa “Jovem Senador” e o projeto “E-Cidadania”, incluir o povo dentro da tomada de decisão para um país melhor. Essas são algumas soluções encontradas, mas, dada a nossa diversidade cidadã, precisamos ainda encontrar outros mecanismos que abarquem um processo nacional tão amplo, diverso e complexo.
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Referências
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FERREIRA, José; DELGADO, Lucília. O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). 1ª ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2018.
LEAL, Bruno; CHAVES, José Inaldo. Várias faces da independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022.
PEREIRA, Jaquelline Andrade; SARAIVA, Joseana Maria. Trajetória histórico social da população deficiente:: da exclusão a inclusão social. SER Social, Brasília, v. 19, n. 40, p. 168–185, 2017. DOI: 10.26512/ser_social.v19i40.14677. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14677. Acesso em: 8 mar. 2025.