Entrevista Cássio Cunha Lima - Bloco 3

ENTREVISTADORA – Qual o momento de maior emoção do senhor na Constituinte?

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Olha, foram vários momentos emocionantes, mas, se eu for buscar aqui na memória o mais emocionante, é a promulgação, o discurso que o Dr. Ulysses fez da Constituição cidadã. O Dr. Ulysses era um grande frasista. Ele tinha capacidade de ler uma peça escrita com a naturalidade de quem está falando de improviso e construía frases de muito impacto. E ali, naquele plenário, havia a sensação de dever cumprido, aquela esperança de um Brasil novo, de um tempo novo – eu estou falando e estou aqui arrepiado com a lembrança daquele instante –, com o Plenário cantando o Hino Nacional. Era o fim de um ciclo autoritário que o Brasil tinha vivido, a esperança de que o País iria avançar. Avançamos. Há muita crítica ao texto da Constituição. Eu mesmo sou um dos que hoje, 30 anos depois, faço algumas críticas, mas foi o resultado do pacto político de um país que saía de um regime de exceção, de uma ditadura, que sonhava com liberdades, que sonhava com o desenvolvimento, com justiça social e que terminou colocando na Constituição tantos direitos, tantas vinculações, que hoje é preciso um reexame sobre isso. Trinta anos depois, é preciso a gente reexaminar um pouco isso.

Mas foi, indiscutivelmente, o momento de maior emoção. Há vários outros instantes! Há vários outros instantes memoráveis, que podem ser lembrados. Eu acho que quando tivemos... Havia muito lobby, tanto é que os setores da sociedade que tiveram capacidade de se organizar mais conquistaram mais na Constituinte, mas o legítimo lobby, por exemplo, dos índios foi muito bacana, porque os índios do Brasil todo se reuniram, vieram a caráter, em traje de guerra – se fosse preciso –, para reivindicar os seus direitos. E a Constituição foi muito atenta a essas reivindicações que foram apresentadas.

Houve muitos movimentos corporativos. As corporações que tiveram capacidade de se organizar mais conquistaram mais. Mas, de forma geral, o texto da Constituição tem uma preocupação com a cidadania, tem uma preocupação com o cidadão. Não se preocupou muito com o outro lado dos gastos. Teve um viés de despesa muito forte. Esta é uma crítica que se faz: a Constituição fez um conjunto, um enumerado de direitos difusos, individuais, coletivos etc., mas não se preocupou muito com o lado da receita, tanto é que o próprio Governo Federal deu um drible no Constituinte quando hoje não divide as contribuições. Foram criadas as contribuições, que não eram nem taxa nem imposto. Hoje a União arrecada para si só o resultado das contribuições.

Mas o fato é que o resultado da nossa Constituição era um Estado muito grande. Eu hoje tenho uma visão muito mais liberal. Acho que o Estado, muitas vezes, atrapalha mais a vida do cidadão do que ajuda. O Estado, quando fica gigantesco, como é o nosso, é um ônus para a sociedade. Ao invés de ser uma ferramenta de justiça, uma ferramenta de paz e de igualdade, pelo contrário, ele passa a ser um elemento de reprodução de um modelo que está errado, porque acredito muito mais na força do cidadão, da cidadã, do homem, da mulher, do indivíduo para resolver os seus problemas do que no Estado.

ENTREVISTADORA – O senhor fala isso baseado na sua experiência? O senhor foi prefeito três vezes, não é? E foi, depois, governador. O senhor poderia apontar para a gente onde o senhor esbarrou em coisas da Constituição nesse momento de que o senhor falou, a favor e contra?

ENTREVISTADORA – Complementando, o que se constata hoje? Essa partilha de recursos, a partir da Constituição, é muito criticada entre Governo Federal, Estados e Municípios. A divisão de despesa e responsabilidades também é criticada. E existe a permanente demanda por reforma tributária.

Essa sua experiência, que a Tânia menciona, no Executivo – foi por três vezes prefeito e foi governador – lhe traz, então, essa crítica de uma maneira mais forte? O senhor acha que realmente é necessário fazer uma reforma tributária para equalizar melhor essa questão da partilha e das responsabilidades entre os Executivos?

SENADOR CÁSSIO CUNHA LIMA (Bloco Social Democrata/PSDB - PB) – Sim, é preciso. Eu acho que temos de lembrar primeiro o seguinte: o Município passa a ser ente federado a partir da Constituição de 1988. Antes da Constituição de 1988, nós tínhamos a União e os Estados; os Municípios não eram entes federados. Então, todo movimento que o Constituinte fez em 1988, na Constituição de 1988, era de fortalecimento desse novo ente federado, que eram os Municípios, onde a vida acontece. É o velho bordão: o que existe na vida real das pessoas é o Município. E o fato é que, depois do arranjo e do desenho feito, o layout errou, porque criou a contribuição, que ficou sob o controle exclusivo do Governo Federal, e hoje a arrecadação do bolo tributário do Brasil está fortemente concentrado no Governo Federal. E os Municípios, sobretudo os Municípios de pequeno porte, que não têm uma grande atividade econômica, vivem à míngua, vivem com uma incapacidade plena de fazer investimentos e de resolver os seus problemas.

Então, eu tive, de fato, a experiência de três mandatos de Prefeito de Campina Grande, fui duas vezes Governador da Paraíba.

E se constata que o nível de vinculação orçamentária, que está previsto na Constituição, mostra uma distorção com um país de características continentais como o Brasil tem. Há, por exemplo, 25% de obrigatoriedade de aplicação na educação. Só que há alguns Estados ou cidades em que 25% é pouco, em que tem de ser mais do que 25%, e há algumas cidades, alguns Municípios, em que 25% é muito, porque são cidades que arrecadam de forma extraordinária. Vou dar um exemplo: em algumas cidades do Estado do Rio de Janeiro, com o auge do petróleo, com o recebimento de royalties, os prefeitos, para cumprir a meta dos 25% mínimos em educação, tinham de trocar piso da escola todo ano, tinham de inventar despesa porque eles não atingiriam os 25% de educação pelo volume de receita que a cidade tinha.

Então, acho que, quando você engessa isso... É outra crítica que eu faço à nossa Constituição, uma Constituição que se apresenta como de uma República federativa – está lá "República Federativa do Brasil" –, mas que funciona como um Estado unitário, porque nada menos federativo e republicano – republicano não, o republicano eu tiro – do que um Sistema Único de Saúde. Um Sistema Único de Saúde é próprio de Estado unitário, um Sistema Único de Assistência Social é próprio de Estado unitário, e não de Estado federado. Um Sistema Único de Segurança Pública, como se defende hoje, também é de Estado unitário. Então, o Brasil tem leiaute, desenho e custo de federado e funciona como Estado unitário. Isso custa uma fortuna.

Se você for olhar para o papel e a autonomia das câmaras municipais de vereadores, quando você espreme, o poder de legislar dos vereadores fica muito limitado. Se você brincar, nas pequenas cidades, fica limitado a honrarias, denominação de nome de rua, medalhas de honra ao mérito, títulos de cidadania. Nas assembleias legislativas, tirando o papel de regular o orçamento próprio do Estado, o poder de legislar também é muito pequeno, como está ficando pequeno o poder de legislar do próprio Congresso Nacional com o fenômeno da medida provisória. A medida provisória surgiu na Constituição de 1988 para substituir o famigerado decreto-lei, que era um instrumento que a ditadura militar usava para legislar. Só que o que era para corrigir um problema agravou o problema, porque a medida provisória vem sendo utilizada de forma abusiva por todos os Presidentes da República, sufoca o Poder Legislativo, impede o seu pleno funcionamento e distorce por completo a representação.

Então, na nossa Constituição, há um modelo que, na prática, não funciona. Pensou-se numa República federativa, e se trabalha com um Estado unitário. Isso vale para o Poder Legislativo. Isso vale para o Poder Judiciário. Pouco vale hoje uma decisão de primeiro grau no Brasil. Estamos vendo, inclusive, todo esse debate na atualidade, porque a decisão de primeiro grau tem de ser confirmada em segundo grau e, muitas vezes, tem de chegar à última instância. Isso custa caríssimo para o povo brasileiro. Isso custa tempo em forma de morosidade, de ineficiência, de impunidade e custa recursos públicos, que faltam para o que é essencial para o funcionamento da sociedade.

O Brasil, em algum momento, vai ter de parar de imitar modelos estrangeiros, porque a gente, em dado momento, quer imitar o modelo americano; em outro momento, quer imitar o modelo europeu; não cria algo genuíno e faz com que fique um monstrengo. É como se nós tivéssemos – vou fazer uma comparação exagerada – uma fábrica de carro que começa com a colocação do pneu, quando, numa fábrica moderna, o último item a se colocar no carro, depois que ele está todo pronto e montado, é o pneu. Aqui, não. Aqui a gente coloca logo o pneu e depois vai tentar montar o resto do carro em cima do chassi.

Então, há muita coisa para ser rediscutida, muita coisa para ser repactuada, e uma delas, sem dúvida, diz respeito à questão tributária, porque, da forma como está, o Brasil não vai resolver seus problemas.

É inconcebível que um prefeito de Lagoa Seca, na Paraíba, para citar apenas um exemplo, tenha de vir a Brasília para conseguir oferecer transporte escolar para seus estudantes e merenda para os seus alunos. Não faz sentido o grau de concentração que se faz no Governo Federal para serviços que são essencialíssimos no dia a dia das pessoas e que poderiam ser prestados diretamente pelas municipalidades.

O grau de concentração é enorme. Isso vale – estou citando apenas o exemplo da merenda e do transporte escolar – para todas as outras formas de funcionamento dos serviços que nós deveríamos entender como aquilo que é essencial em educação, em saúde, em segurança, naturalmente – e os itens de educação incluem cultura etc. –, deixando o restante para a sociedade poder resolver. É uma questão de convicção, de doutrina deste Estado monstrengo que nós temos, com um custo bilionário.

O Senado custa bilhões, a Câmara dos Deputados custa bilhões, o Poder Judiciário custa bilhões, o Poder Legislativo custa bilhões, em todos os níveis, e falta creche para o povo, falta escola de qualidade para a população. Então, isso tudo está reproduzido na nossa Constituição, e vamos ter de rever isso.