Entrevista completa Senadora Lídice da Mata


LÍDICE DA MATA

Texto do depoimento gravado pela senadora Lídice da Mata no gabinete parlamentar no Senado Federal pela equipe do Serviço de Arquivo Histórico (SEAHIS) da Coordenação de Arquivo (COARQ). Na Costituinte, Lídice exerceu seu primeiro mandato de deputada federal.

Degravado e revisado pelos analistas de Registro e Redação Parlamentar (taquígrafos) da Secretaria de Registro e Redação Parlamentar (SERERP) da Secretaria Geral da Mesa (SGM).

 

ENTREVISTADORA – Em 9 de julho de 2018, registramos o depoimento da Senadora Lídice da Mata sobre a sua participação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, parte do projeto História Oral, comemorativo dos 30 anos da Constituição.

Participam da gravação os servidores Virginia Malheiros, Tânia Fusco, Ricardo Movits, Rafael Silva e Amaral Neto.

Senadora, até a Constituinte de 1987/1988, só uma mulher havia participado da elaboração de um Texto Constitucional, a Carlota Pereira de Queiroz, em 1934. Em 1987, entre 166 candidatas, 26 foram as eleitas Deputadas Federais, representando 16 Estados. No seu caso, como foi abrir esse caminho na política até chegar à Constituinte?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Eu diria que foi um caminho até rápido, mas essa foi a característica de quase todas aquelas que foram eleitas naquele período. Nós saímos de uma ditadura militar. Então, os movimentos que integraram a luta contra a ditadura militar eram compostos de pessoas da sociedade civil como nós, como eu, que fui estudante, líder estudantil, eleita Vereadora em Salvador. No meu mandato de seis anos, no quarto ano, eu fui eleita Deputada Federal constituinte. Outras nunca tinham sido sequer candidatas a qualquer cargo público, não tinham sido vereadoras, não tinham sido deputadas. Elas vieram diretamente, se candidataram através do desejo de participar daquele momento, representando também o desejo das mulheres de ter a sua presença. Nós fizemos uma campanha intensa, uma campanha que foi marcada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no Brasil inteiro, que convocava: "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher." Assim, foram mobilizadas as forças nos Estados, e nós elegemos mulheres de 16 Estados com perfis diferenciados, com ideologias diversas, principalmente, eu diria, com uma busca única de representação da mulher.

ENTREVISTADORA – Senadora, com esse mix de várias ideologias, várias posições, como é que vocês conseguiram criar a Bancada do batom? E como é que vocês atuaram como Bancada do batom?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – A Bancada do batom surgiu como decorrência de duas coisas. O movimento de mulheres já existia antes da Constituinte, na luta contra a ditadura, e houve a nossa conquista, já realizada durante a campanha de Tancredo, que foi a conquista do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. O conselho foi para nós a união de todos os movimentos e a concentração de esforços. Algumas entidades feministas que foram responsáveis por esse processo de luta também conosco, com os partidos políticos, com os movimentos independentes chamados autônomos de mulheres, que se articulavam em torno do Conselho da Mulher, tiveram uma participação destacada na formação daquilo que se chamou a Bancada do batom. Foi a partir do conselho, com duas ou três entidades, que já foram organizadas para fomentar e para subsidiar a participação das mulheres na Constituinte, é que nós constituímos essa Bancada do batom.

ENTREVISTADORA – De muito sucesso, porque, segundo levantamento do próprio Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 80% das reivindicações das mulheres foram aprovadas, resultando em conquistas fundamentais. Eu posso citar algumas delas para a senhora lembrar?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Sim, claro.

ENTREVISTADORA – Igualdade jurídica; ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos; igualdade de direitos e responsabilidades na família; definição do princípio de não discriminação por sexo e raça, raça ou etnia; proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho; definição dos direitos no campo da reprodução. O que faltou ou, especificamente, o que a Bancada do batom não conseguiu assentar na Constituição?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Algumas coisas faltaram, é natural. A própria Bancada chamada Bancada do batom disse que 80% ou 90% do que nós trouxemos foram atendidos. Então, ficou uma parte que não foi atendida, é óbvio que ficaria. Nós consideramos que nós fomos plenamente vitoriosas e tivemos uma organização das mais destacadas dos movimentos sociais no Brasil. Por isso, celebram-se tanto a participação na Constituinte e as conquistas da Constituinte.

A própria ideia de uma Bancada do batom já foi uma reposta ao tom jocoso como nós fomos tratadas no processo eleitoral e no momento em que nós constituímos 26 Deputadas Federais constituintes. Foi a imprensa que nos caracterizou como Bancada do batom. E nós tomamos para nós, achamos bom e transformamos isso numa coisa positiva.

Eu cito, por exemplo, algo que nós não conquistamos e que só conquistamos muito recentemente: o direito dos empregados domésticos ou das empregadas domésticas, já que 90% dos empregados domésticos no Brasil são mulheres. Essa foi uma reivindicação desde o processo constituinte. E nós não conseguimos avançar. Conseguimos estabelecer apenas uma parte dos direitos, mas não o conjunto dos direitos que todos os trabalhadores têm no nosso País e que consolidaram através da Constituição de 1988. Então, nós consolidamos, só muito recentemente, a ideia de uma jornada de trabalho da empregada doméstica. Eu pessoalmente fui relatora da PEC do emprego doméstico aqui, no Senado Federal, quando consolidamos essa ideia – e foi uma votação muito rápida e vitoriosa no Senado Federal, que demonstrou a sua adesão ao progresso trabalhista do emprego doméstico no Brasil, quando nós votamos a isonomia de todos os direitos dos trabalhadores brasileiros, também estendendo-a às empregadas domésticas ou ao emprego doméstico no Brasil.

ENTREVISTADORA – A senhora citou um caso em que o direito da mulher está relacionado a uma questão econômica, que veio a se resolver agora, definitivamente, mas, naturalmente, grande parte dessas questões estava mais relacionada a uma questão cultural.

A senhora diria que as maiores dificuldades, as maiores negociações – o que demandou mais negociação durante a Constituinte, até na sensibilização da Bancada masculina, os colegas constituintes homens – estavam mais relacionadas a questões culturais, econômicas. Em que âmbito foi a maior luta, Senadora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Olha, eu não saberia dizer em qual especificamente, porque as questões da economia decorrem do racismo, ou, melhor dizendo, do machismo institucional no Brasil e do machismo que culturalmente nós carregamos.

Eu falei em racismo porque eu me lembrei da questão do emprego doméstico. O emprego doméstico não está vinculado apenas a uma questão cultural, ele está vinculado a uma questão racial. O emprego doméstico no Brasil dá continuidade a uma situação praticamente da escravidão da mulher negra no Brasil. E por isso nós tivemos tantas dificuldades para conseguir garantir a efetivação de direitos para essa categoria, que ainda hoje luta muito para efetivar aquilo que a lei já lhe deu.

No que diz respeito às mulheres no geral, as dificuldades foram de todas as ordens, desde o machismo que aparecia quando nós mulheres viemos para cá, e a imprensa começou a nos tratar de maneira singular, de maneira a destacar aspectos das características de cada uma. Então, uma era a musa da Constituinte; a outra usava um enfeite regional que a caracterizasse; a outra é porque tirava o sapato e, no momento de uma votação, mostravam uma Deputada que estivesse com um pé fora do sapato descansando, como dezenas de homens fazem, mas não sai no jornal, e aparecia foto no jornal.

Então, nós começamos a ser tratadas pela superfície. A presença da mulher era como se nós fôssemos...

ENTREVISTADORA – As esposas e ex-esposas...

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – ... como se nós fôssemos o enfeite da mesa da Constituinte. Existiam muitos casais constituintes, é verdade, Senadores constituintes com mulheres constituintes. Havia até um caso de dois Deputados, um casal de Deputados de Rondônia, se não me engano, os dois Deputados, ex-governador e sua esposa, os dois foram Deputados Federais constituintes.

Então, houve diversos arranjos familiares, digamos assim, mas principalmente a presença da mulher era exótica naquele momento constituinte. Nós não tínhamos banheiro no plenário, não tínhamos gabinetes com banheiros... Então, a nossa luta, a primeira luta da nossa presença feminina na Constituinte foi por coisas muito preliminares ao debate político.

Depois, nós nos reunimos para compor a nossa agenda. E, a partir daí, nós demos uma lição de competência, mas primeiro de assiduidade. A presença das mulheres nos debates constituintes é muito alta. A participação nos debates também é muito intensa, de maneira que o nosso resultado não foi consequência de uma concessão dos homens, mas foi uma conquista real da participação das mulheres Deputadas naquele momento histórico, no Brasil.

Naquele ato, nós participamos de todos os debates; dos debates que diziam respeito à organização familiar, que todos consideravam que eram "questões das mulheres" – entre aspas; ou da reprodução, os direitos reprodutivos; da saúde, da educação. Nós participamos também da discussão sobre reforma tributária, da discussão sobre economia, da discussão sobre propriedade da terra, da discussão sobre propriedade privada, da discussão da segurança nacional, do sistema político, eleitoral.

Então, nós não aceitamos que nos restringissem àquele ambiente que uma parte dos homens queriam, ou mesmo da sociedade conservadora queria, que era nos limitarmos a tratar do que os homens consideram que sejam as nossas questões.

ENTREVISTADORA – Vou lhe fazer mais uma pergunta a respeito de uma posição que a senhora teve na Constituinte: a senhora votou a favor do aborto. Por que, Senadora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Porque naquele momento histórico, eu acho que era um importante debate a ser assumido pela sociedade brasileira. Aliás, debate que ainda não se resolveu. Recentemente, na Argentina, o Congresso votou pela liberação do aborto. Mas é principalmente pela discussão do direito de a mulher analisar as condições de ter um filho. Ninguém defende aborto como contraceptivo. O que se tem que analisar, nas condições do Brasil, é: quantas mulheres morrem de aborto, por ano, neste País? Em que condições elas praticam aborto? De que maneira o Estado pode interferir para que isso não mais se realize?

Na verdade, eu atuei como negociadora para que nós mantivéssemos, no texto constituinte, aquilo que já era previsto antes, porque o que existiu foi um movimento pela liberação, onde nós analisamos, na nossa Bancada, que não tinha... Inclusive com muitos homens à frente desse movimento, homens constituintes. E nós analisamos, na nossa Bancada de mulheres, que deveríamos tomar a frente da negociação, porque achávamos que efetivamente seria derrotada esta bandeira na Constituinte, e eu fui uma daquelas que defendeu em plenário o acordo feito para que não mudássemos apenas os três casos de acordo que já eram permitidos na Constituição e que continuaram a sê-lo: no caso do risco da vida da mulher, no caso do risco da vida do nascituro e no caso de estupro.

Esses são três casos para os quais o debate constituinte foi muito rico. É uma pena... Talvez vocês possam retomar as imagens daquele momento, porque pessoas de diversas origens político-partidárias foram convalidar esse acordo e defendê-lo, para que nós mantivéssemos uma legislação que minimamente permitisse que as mulheres que estão nessa situação tivessem direito à interrupção da gravidez.

ENTREVISTADORA – Senadora, ela falou dos votos que a senhora deu. São muitos os que a senhora deu a favor e os que a senhora deu contra. Algum deles a senhora repetiria, tanto a favor como contra?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Ah, certamente.

ENTREVISTADORA – Por exemplo.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Eu continuo votando contra a pena de morte, em qualquer circunstância que ela aparecer aqui. Eu votei a favor, por exemplo, da lei que impedia que o Brasil mantivesse relações internacionais com países que praticam apartheid, portanto, com países que claramente têm posição racista. Eu votei a favor de que o Brasil não mantivesse relações diplomáticas com esses países.

Então, eu manteria muitos votos meus da Constituinte e outros que eventualmente hoje já não se adequam à realidade. Eu teria que modificar.

ENTREVISTADORA – Estatização do sistema financeiro, por exemplo. Caberia hoje pensar nisso?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Se fosse outro sistema político, sim. No atual momento me parece bastante distante da nossa possibilidade de conquistar. Mas eu continuo, por exemplo, defendendo que o subsolo brasileiro é da Nação brasileira. O petróleo, todas as riquezas minerais deste País pertencem ao País e por ele devem ser exploradas, por ele devem ser controladas.

ENTREVISTADORA – A senhora votou pela limitação ao direito de propriedade. Como se aplicaria isso? E a senhora manteria essa posição hoje?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – A limitação do direito à propriedade já existe hoje na própria Constituição. A lei, a Constituição diz que a propriedade deve ter também uma função social. Então, na medida em que obrigatoriamente tenha uma função social, ela é tolerada, defendida. Na medida em que se afaste de qualquer função social, seja uma propriedade rural ou urbana improdutiva, sem nenhum tipo de uso, na necessidade, que o Estado possa requerer aquela terra para o uso coletivo, seja no campo, com assentamentos para trabalhadores, seja nas cidades, numa reforma urbana, para servir à sociedade e à comunidade.

ENTREVISTADORA – Vou entrar na medida provisória. Ela é apontada por muitos como um dos grandes traumas armados pela Constituição. Ela reduz a importância do Congresso ou torna o Presidente refém dos humores do Congresso. E a senhora tem uma história particular em relação à medida provisória.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – A nossa Bancada, a Bancada do PCdoB à época, colocou uma emenda, na verdade um destaque para que nós retirássemos a expressão da medida provisória da Constituição brasileira. Por quê? Porque ela era uma figura típica, uma ferramenta típica do regime parlamentarista.

Nós votamos pelo parlamentarismo, mas à medida em que o parlamentarismo perdeu, quando era versus presidencialismo, eu apresentei um destaque para que ela fosse retirada. E o Ministro Jobim, à época Constituinte, que era o Relator da matéria, venceu. Nós tivemos pouquíssimos votos. Mas hoje eu tenho cada dia mais a certeza de que nós estávamos corretos porque a medida provisória hoje é um grande instrumento de diminuição do protagonismo do Poder Legislativo em nosso País.

ENTREVISTADORA – A Carta de 88 facilita ou dificulta e relação entre os três Poderes da República?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Olha, ela não foi feita para dificultar, ela foi feita para equilibrar. Agora, ela não pode ser responsável por tudo. Nós temos um sistema político complexo e muito próprio. Então, num parlamentarismo, está muito clara a função do parlamento, o exercício do poder pelo parlamento; no presidencialismo, essa relação entre o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário parece clara na lei, mas é difícil o equilíbrio no exercício do cotidiano. Um exemplo, no presidencialismo no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, o presidente não é eleito necessariamente tendo a bancada do seu partido como majoritária, é o que se costuma hoje chamar aqui de presidencialismo de coalizão. Então, ele é resultante de uma eleição onde o centro do voto está no presidente da República ou na presidente, na figura do Poder Executivo, e ele até transfere esses votos para o Poder Legislativo no período eleitoral, mas não necessariamente garante uma maioria imediata do seu partido naquela formação parlamentar.

Então, ele vai ser resultado de coligação que se faça no processo eleitoral ou, como tem sido a prática, posteriormente ao processo eleitoral. E aí, fala-se: "Então, em muitos momentos, o Poder Executivo fica refém do Poder Legislativo." Não fica refém, é que o Poder Executivo necessariamente não é um poder autoritário, muitas das questões têm que passar pelo poder do Congresso Nacional, é para isso que se elege. Em outros países, o Congresso Nacional exerce diretamente o poder do Executivo, ele dá o primeiro-ministro que governa o país e ele constitui os Ministérios. No presidencialismo, ele tem tarefas também muito importantes. É que, no fundo, o Brasil herdou uma herança de poderes autoritários, tem uma experiência muito grande de poderes autoritários. Nós temos pouco período de democracia.

Então, o Executivo senta na cadeira e começa a ter – digamos assim – saudade do tempo que não viveu, do tempo do autoritarismo, do tempo ditatorial nas diversas fases do Poder Executivo no Brasil e fica achando que o Poder Legislativo lhe dificulta. O poder é isso, não é que ele dificulte, o poder é essa integração de relações do Poder Legislativo com o Poder Executivo mais intensa e Poder Judiciário também num grau um pouco menor, mas também muito intensamente articulada.

ENTREVISTADORA – A senhora foi prefeita, está há muitos anos na política acompanhando o exercício do poder nos três âmbitos, naturalmente, e diria que existe um desequilíbrio na aplicação da verba da arrecadação tributária? Ou seja, na implementação das políticas de Estado, no atendimento das necessidades da sociedade, na questão tributária, na questão da distribuição da verba, existe um desequilíbrio, existe uma permanente demanda de reforma tributária, Senadora.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Claro.

ENTREVISTADORA – Esse foi um problema criado pela Constituinte?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Eu não diria que foi criado pela Constituinte.

A Constituinte até avançou, porque deu poder aos Municípios brasileiros, deu novas atribuições, devolveu antigas atribuições aos Municípios brasileiros que passaram a ser sujeitos de direito como entes federativos, mas não lhes deu recursos.

Já existia esse problema? Já existia. Há muitos anos o poder arrecadatório do Brasil é concentrado em Brasília ou no Poder federal. Nos últimos anos, da Constituinte para cá, a Constituição, digamos assim, em relação aos Municípios, talvez tenha consolidado isso. É verdade que a Constituição brasileira não se dedicou a fazer uma ampla reforma tributária, ela fez uma média, pequena reforma tributária. Essa é uma necessidade dos dias atuais. E nós não podíamos fazer tudo, até porque algumas leis necessitam de uma participação maior dos Estados federados, de um debate mais profundo com os Estados federados. Há uma grande desigualdade econômica de desenvolvimento entre os Estados do Sul, Sudeste e os Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste no Brasil. Há vinte anos, isso decorria de uma história determinada, e esperávamos que a Constituição pudesse fazer com que as forças da economia rearrumassem isso, e isso não foi possível.

Então, é preciso fazer, sim, uma reforma tributária que possa dar mais capacidade de o Estado brasileiro distribuir a riqueza para os Estados e Municípios e para as regiões de maneira mais justa.

ENTREVISTADORA – Como prefeita, depois da Constituinte, foi especialmente difícil para a senhora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Não necessariamente por conta da Constituinte. Talvez a Constituinte tenha consolidado algumas questões na área administrativa. Eu tive a experiência, como prefeita, que nunca havia sido, de experimentar seus limites.

Por exemplo, a exigência de contratação por concurso público para todas as funções do Poder Executivo ao longo do tempo vem-se mostrando limitada. Não quer dizer que eu defenda que não haja concurso público para as contratações, mas é muito difícil você fazer concurso público para gari, por exemplo. O que difere? É uma função muito prática para o exercício de um concurso teórico. A partir daí se passou a exigir que o gari tivesse nível médio de ensino, de estudo.

Quando eu fui prefeita, por exemplo, nós descobrimos – e denunciamos – um número grande de falsos atestados de segundo grau dentro da prefeitura, justamente na limpeza urbana, na empresa de limpeza urbana. Ora, isso demonstrava duas coisas: que a lei não estava muito adequada à realidade social até do País e à realidade social daquela função.

Mas é claro que eu sou uma defensora dos concursos públicos, inclusive fiz concursos públicos para todas as funções quando fui prefeita, principalmente para aquelas que considero carreiras bem típicas do Estado, como Procuradoria do Município, médicos, educadores, auditores fiscais, enfim, para todos esses eu pude fazer concursos públicos.

ENTREVISTADORA – Senadora, a senhora abordou uma dificuldade advinda da lei na questão dos concursos públicos em relação à sua administração como prefeita. A senhora tem outros pontos que poderia destacar onde a lei mais atrapalhou do que ajudou, ou não?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Não; eu não acho que a lei mais atrapalhou do que ajudou. Eu acho que o Brasil precisava, naquele momento, de uma Constituição que desse o rumo de um Estado organizado, de um Estado profissionalizado. O grande problema é que nós ainda não conseguimos a profissionalização necessária e desejada para o Estado brasileiro. Esse é um ponto.

O outro diz respeito, digamos assim, a culturas que o Estado brasileiro sempre teve e que a Constituição, ao consolidar, por exemplo, a obrigatoriedade dos concursos públicos... Isso foi extraordinário no País, isso deu oportunidades a muita gente que não tinha a indicação dos políticos.

Foi duro você... Eu me lembro de que lá no Estado, na Bahia, num determinado momento, houve um escândalo porque, feito um concurso público, saiu no Diário Oficial, por descuido, a lista de indicações para contratação. Então, havia uma burla. Chegava-se a falar de burla em concursos como o exame vestibular à época. É possível hoje ainda existir? Talvez seja possível, mas é muito mais difícil, pois se consolidou uma ideia, uma cultura de que o servidor público entra através do concurso público.

Agora, há também, com 30 anos de Estado pós–Constituinte, momentos em que você vê a necessidade de contratações para determinadas funções que não estavam previstas ou que não existiam. Eu posso dizer uma: quando fui prefeita, inovei com um programa de assistência a crianças e adolescentes na minha cidade, onde criei a chamada Fundação Cidade Mãe, que atendia, de um lado, propiciando qualificação profissional e assistência, no contraturno da escola, a crianças de 7 a 17 anos de idade nos bairros populares; e, de outro, atendia meninos que estavam nas ruas. Assim, nós tínhamos, para atuar com esses meninos que estavam nas ruas, a necessidade de um profissional que não existia na carreira da prefeitura, que era o que nós chamávamos de "educadores de rua". Esses educadores eram um misto de assistentes sociais, ou não, de pessoas que foram preparadas especialmente para isso e de militantes da luta dos direitos da criança que se qualificaram para isso.

Ou seja, o Estado foi chamado a novas tarefas pós Constituinte, com os direitos que se abriram na Constituinte, foi chamado a ter ações outras que não necessariamente aquele velho Estado tinha condição de atender. Então, novas profissões vieram dali, e foi necessário fazer novos tipos de contratos que pudessem fazer com que isso existisse, com que esse funcionário existisse na prefeitura, e assim por diante. Como hoje também nós temos muita coisa com as novas tecnologias que não estão previstas qualificadamente nas carreiras pensadas antes.

ENTREVISTADORA – Neste ano, a gente tem um Judiciário no protagonismo. Eu pergunto: a Constituição empoderou e fortaleceu demais o Judiciário? Ou assentou bem o equilíbrio pretendido entre os três Poderes? Estou retomando a pergunta anterior.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Olha, eu acho que assentou. O protagonismo do Judiciário não advém da Constituição, na minha opinião; ele advém dos excessos de alguns agentes públicos que abusam do poder que a Constituição lhes dá. A Constituição não lhes dá o poder para fazer coisas de que eles se sentem investidos a fazer. O que é errado é que os nossos órgãos de controle não estão agindo devidamente para impedir isso, e não que a Constituição esteja errada.

É certo que alguns segmentos do Judiciário muitas vezes, como organismos, se manifestam de forma muito corporativa e dão essa sensação de que eles têm o poder que não tinham antes. O Ministério Público é um caso típico porque foi quem mais recebeu da Constituição Federal a delegação para ter uma nova função, para se constituir dentro de uma nova função. E há muitas reclamações de prefeitos de que há procuradores e promotores que muitas vezes se colocam mais numa posição de exercer o lugar do prefeito do que de zelar pela Constituição, pela lei, pelo direito coletivo, e assim por diante. Ora, mas esses são conflitos do processo de ajuste da existência desses poderes, que, volto a dizer, precisam também ser fiscalizados e chamados à razão.

ENTREVISTADORA – Isso decorre talvez, na sua opinião, de um enfraquecimento do Executivo e do Legislativo, Senadora?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Eu acho que o enfraquecimento do Legislativo não decorre... No caso da medida provisória...

ENTREVISTADORA – O empoderamento do Judiciário...

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – ... que só é uma ferramenta do Poder central, não é das assembleias legislativas e nem das câmaras municipais, há realmente uma diminuição de poder, de intervenção, de protagonismo do Poder Legislativo frente ao Poder Executivo.

Agora, a Constituição coloca o grande desafio do equilíbrio de poderes, o grande desafio. Então, eu vejo ministros que hoje são Deputados e que antes não eram – eventualmente são Deputados ou Senadores –, que se sentam na cadeira do Poder Executivo e, no dia seguinte, se acham muito poderosos, querem mandar uma lei que não tenha nenhum reparo do Poder Legislativo. Ora, isso não existe! Então, não adianta idealizar situações, é preciso entender como o poder se organiza. Em vez de ficar fazendo projeto de lei esperando que não seja modificado, vá à luta, mobilize suas bancadas, apresente o projeto de lei antes de ir para o Parlamento à bancada do seu partido, discuta, faça com que essa bancada interfira, leve à bancada do partido maior que apoia o seu Presidente para o debate; então, construa a possibilidade.

O problema é que, como há muito consolidado no Brasil o poder do Poder Executivo, ninguém quer ter esse trabalho. E aí, claro, o Legislativo, realmente, aí sim, perde sua função, se transforma num apêndice repetidor da vontade do Poder Executivo e nada mais.

ENTREVISTADORA – Para mudar isso é preciso reforma na Constituição ou no comportamento?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Na Constituição, talvez, naquilo que possa ser alterado para mudar o sistema eleitoral deste País e o sistema político do Brasil.

ENTREVISTADORA – A senhora está falando em reforma política?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Em reforma política.

Para fazer uma reforma política para valer, é preciso mudar um pouco a Constituição. Há aspectos da Constituição que dificultam isso. Então, eu acho que nós... E, olhe, já se fizeram muitas mudanças desnecessárias na Constituição brasileira, outras mudanças que atentam contra o direito do povo brasileiro e poucas mudanças no aperfeiçoamento do sistema democrático do Brasil.

ENTREVISTADORA – O que faria a diferença, Senadora, sob esse aspecto de reforma política e de aperfeiçoamento do sistema democrático?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Eu acho que muita coisa. Por exemplo, não é possível... Nós temos ainda uma Constituição, do ponto de vista de seu conceito, que guarda muitas referências ao sistema parlamentarista. Eu digo isso à vontade, porque eu sou muito simpática ao sistema parlamentarista, mas é preciso que nós tenhamos a definição do que queremos como Estado, como sistema político.

Quando você define que um fundo eleitoral ou um fundo partidário deva ser calculado apenas com base na proporcionalidade das cadeiras que cada partido tenha na Câmara dos Deputados, você pensa um sistema que é muito destoante do que é o sistema presidencialista, você não dá nenhum valor a um partido que tenha quatro ou cinco governadores. A campanha de um governo leva a negociações, e não necessariamente aquele governo elege para Deputado Federal uma bancada majoritária do seu partido. Ele tem que compor com outros partidos que o apoiam e, muitas vezes, o preço é dar um peso maior a um partido na bancada federal e, a outros, na bancada estadual. Então, isso não está representado nesse sistema de formação do fundo eleitoral e partidário no Brasil, basta apenas ter Deputados federais.

Então, nós estamos vivendo neste momento, agora, uma situação muito singular. Há partidos que definiram que não devem ter candidatos ao governo do Estado. Para quê? Para reservar todo dinheiro do fundo eleitoral para eleição de Deputados. Ora, isso, na minha opinião, é uma distorção de poder.  Se um partido luta para alcançar o poder, e nós não estamos num sistema parlamentarista, ele deve lutar para alcançar também espaços dos poderes regionais, com os governos do Estado, e Presidência da República. Pelo sistema atual, é bom para um partido não ter candidato ao governo nem candidato a Presidente da República, porque gasta dinheiro do fundo eleitoral, disputa no fundo, que é pequeno para as necessidades eleitorais, com os candidatos a Deputado Federal e estadual – coitado! – que não existe nessa relação.

Então eu penso que a lei eleitoral que nós temos no momento distorce profundamente o sistema eleitoral brasileiro.

ENTREVISTADORA – Uma das questões que são recorrentes é a da cláusula de barreira, para se tentar uma redução no número de partidos. A senhora acha que essa é uma distorção que faz diferença no processo de aperfeiçoamento?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Olha, eu, digamos assim, me rendo a essa necessidade. Eu defendo o que está na Constituição, a liberdade de organização partidária. Todo e qualquer segmento da população pode criar um partido político. Essa é uma liberdade básica da organização partidária no Brasil e nos países de tradição democrática. Agora, as regras para participar da eleição são outra coisa, não dizem respeito, necessariamente, à liberdade de organização partidária. Dizem respeito a acesso ao fundo eleitoral, acesso a tempo de televisão, o que é também coisa singularíssima do Brasil, porque em outros sistemas democráticos não necessariamente você tem tempo de televisão e de rádio. Eu defendo que tenha, mas é, digamos assim, uma situação singular no Brasil que nós temos que resguardar. E, ao resguardar, não podemos permitir que essa conquista democrática da sociedade brasileira possa ser sugada para se transformar numa moeda de mercado, de transação entre partidos políticos, quase numa compra de pequenas legendas para obter três, quatro, cinco, dez segundos a mais ou um minuto a mais que seja. A legislação tem que ter capacidade de fazer isso e, por isso, há de existir restrições ao exercício pleno desse direito de organização partidária.

ENTREVISTADORA – Senadora, a Constituição cidadã envelheceu? A senhora pode apontar o que ainda é forte e o que realmente... A senhora falou algumas coisas: reforma tributária, reforma política, a questão do subsolo. Onde ela se enfraqueceu, ou melhor, precisa ser mudada?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Olha, toda Constituição que tem a característica da nossa, Constituição grande, que fala sobre muitos assuntos, necessariamente passa por mudanças. Volto a dizer: eu não concordo com todas as mudanças que aconteceram. É que a gente pensa que pode existir uma Constituição que seja acima do bem e do mal. Não é. A Constituição é resultante de uma luta de poder na sociedade, em que determinados segmentos se fazem maioria para votar aspectos ou trechos. Foi assim que foi construída a nossa.

Quando surgiu o Centrão na Constituição, ele surgiu para garantir a propriedade da terra, para garantir que fossem delimitadas, no capítulo que trata da propriedade da terra, questões que dizem respeito à constituição da economia brasileira, que é de latifúndio, de formação do campo brasileiro. Então, os segmentos políticos brasileiros – não me interessa se bem ou mal, se isso corresponde ao que penso ou não – organizaram-se para garantir aquele privilégio. E outros segmentos se organizaram para garantir que se acabasse com esses privilégios e que se dividissem essas possibilidades. A nossa garantiu os direitos do cidadão. E, no que diz respeito aos direitos do cidadão, ao Estado democrático de direito, essa Constituição não pode ser mexida. Há muita gente querendo mexer na Constituição, porque garantir o Estado democrático de direito não necessariamente garante que o seu candidato ganhe a eleição naquele momento ou que outros segmentos seus possam ser privilegiados neste momento.

Então, a sociedade brasileira não tem o costume de perder e de ganhar. Há segmentos da sociedade brasileira que são segmentos privilegiados e que, ao longo da história, só têm a cultura e o costume de ganhar. Então, se lhe tiram um pedacinho do seu ganho, aí dizem: "Vamos pôr abaixo a Constituição!"

ENTREVISTADORA – A senhora acha temerário, então, pensar numa reforma política?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Temerário não! É necessário! A reforma política, sim! Eu não concordo...

ENTREVISTADORA – Desculpa! Eu queria dizer revisão constitucional mais ampla.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Mais ampla? Tenho medo, porque, quando se fala em mudança constitucional mais ampla, fala-se em mexer em tudo.

A OAB e muitos constitucionalistas disseram recentemente que não pode haver uma Constituinte exclusiva para se fazer reforma política, porque você estaria limitando o poder constitucional. Pode ser que a sociedade brasileira, depois de um plebiscito sobre essa necessidade, pudesse dizer: "Não, nós queremos e vamos limitar aqui." Mas você precisaria botar quais os limites de atribuição desse Constituinte. Por quê? Porque a reforma política tem de ser feita com um equilíbrio entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Ela tem de ser, na minha opinião, promovida pelo Poder Executivo, que deve apresentar uma proposta, para que o Poder Legislativo debata e construa a sua proposta. Não é fácil fazer isso. No primeiro ano de governo, será difícil fazer isso. Imagine alguém querer fazer isso no meio ou no fim do Governo! Jamais será feita!

Recentemente, eu me pronunciei sobre os 30% da invasão, digamos assim, do protagonismo jurídico que o Tribunal Superior Eleitoral fez em relação ao fundo eleitoral. Eu aplaudi e continuo aplaudindo, porque esperar que este Congresso, de maioria de homens machistas, abra mão do seu poder de usar 100% do fundo partidário nas suas próprias campanhas seria ingenuidade da nossa parte! Nós sabemos que somos 10% do Parlamento brasileiro e que, pela experiência que já temos de atuação parlamentar, jamais o Parlamento votaria uma medida dessa sem que houvesse uma provocação inicial do Poder Judiciário. Agora, com a interpretação do Poder Judiciário a respeito da Lei de Cotas, poderemos consolidar isso e, aí, sim, um próximo Congresso terá mais dificuldade de retirar esse direito das mulheres.

ENTREVISTADORA – Esclarecendo, Senadora: como ficou a regra? Dez por cento...

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – A regra atual, definida pelo Tribunal Superior Eleitoral, é de que do fundo eleitoral devem ser usados 30% dos recursos para a campanha das mulheres.

ENTREVISTADORA – Senadora, a gente vai entrar agora em uma parte mais de memória afetiva mesmo. Eu não posso deixar de mencionar que a senhora teve um raríssimo 9,5 de Diap pela sua atuação na Constituinte. A senhora apresentou 196 emendas e teve só 31 reprovadas – 20 integralmente e 11 parcialmente –, digo, aprovadas. Desculpe. Só 31 aprovadas. Em todas as questões de gênero a senhora atuou, e foram praticamente todas vencedoras.

Eu agora queria que a senhora falasse um pouquinho da memória afetiva da Constituinte. Naquele cenário de lutas e mudanças, a senhora se lembra de algum momento mais tenso ou mais alegre ou um melhor momento?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Muitos momentos foram muito tensos.

ENTREVISTADORA – Por exemplo?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Muitos momentos. Por exemplo, quando se constituiu o Centrão e quando se discutiu a ordem econômica. Houve momentos em que o plenário, ou melhor, as galerias foram invadidas por representantes conservadores, que queriam impor a sua posição; em outros momentos, por movimentos sindicais mais à esquerda, que também queriam impor a sua posição. Isso é o processo democrático e fazia parte daquele momento. Mas eram momentos tensos; não se pode dizer que não eram tensos. Eram muito tensos, muito tensos! No grande acordo que foi feito sobre a propriedade da terra, a reforma agrária, o Conselho de Reforma Agrária, houve momentos muito tensos.

Em muitas situações, depois, no Processo Constituinte, como eu falava, havia muitas emendas para que a gente conseguisse chegar a acordos, e foram feitos acordos improvisados no plenário. Destacava-se uma parte da redação de uma emenda, uma parte da redação de outra, uma parte da redação de uma terceira, para juntar e fazer uma frase inteira que resultasse em um acordo de maioria – não era de unanimidade, mas de maioria. Esse é o grande mérito da Constituição, porque ali o Plenário do Congresso funcionou com a sua verdadeira função, que é a de negociação dos interesses da sociedade. E houve um momento em que todos sentiram uma necessidade de construir textos que pudessem ser aprovados pela maioria.

É claro que o texto não significava que teria unanimidade, mas muitas vezes houve unanimidade e muitas vezes, claro, se está na Constituição, obteve a maioria dos votos.

ENTREVISTADORA – E a senhora se lembra de algum momento especialmente gratificante, algum momento, assim, daqueles de lavar a alma?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Ah, claro, muitos. Eu lembro um momento que foi muito emocionante para todas nós, quando aprovamos o direito à paternidade, pois nós, as mulheres, estávamos achando que perderíamos, e fizemos uma grande articulação para que fosse defendido por um homem.

ENTREVISTADORA – A licença-paternidade?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – A licença-paternidade – direito à paternidade, não –, o direito à licença-paternidade de cinco dias, e foi feita uma belíssima defesa pelo...

ENTREVISTADORA – Alceni.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – ...Alceni Guerra, que era pediatra, se não me engano, e foi um momento muito feliz para as mulheres.

Nós tivemos vitórias emocionantes. A ideia dos seis meses de licença-maternidade foi uma conquista extraordinária, uma conquista política extremamente importante para a mulher trabalhadora. A vida se repete no Parlamento. Eu me lembro de que os jornais, as representações empresariais, todos diziam que nunca mais haveria emprego para a mulher no Brasil, porque, com seis meses de licença-maternidade, qual seria o patrão que iria conviver com isso? E era isso, era aquilo, era uma pressão política, um lobby fortíssimo, e, 30 anos depois, só cresceu o mercado de trabalho feminino. Só cresceu.

Pode-se dizer que há áreas em que a mulher em idade jovem, ainda em idade de engravidar, não é contratada? Pode haver. Na área privada pode haver, mas o que se abriu de oportunidade de trabalho no mercado para a mulher! E isso não impediu, o que é mais importante... Isso porque se dizia que ia impedir o acesso da mulher ao trabalho, e nós provamos que não. Nós crescemos na nossa inserção no mercado de trabalho e crescemos na qualidade da inserção da mão de obra feminina. Nós saímos da ocupação dos postos de trabalho secundários, como, no caso, a ocupação do emprego doméstico ou de empregos provisórios para a consolidação de carreiras na área pública, mas também na área privada.

Então, essa coisa do mercado tem que ser sempre vista, porque não pode significar o impedimento de conquistas de direitos que são inadiáveis às populações.

ENTREVISTADORA – Por exemplo, tem algum ainda que é inadiável e que a senhora pensa que se tem de conseguir? Alguma coisa que ainda não foi assentada e que...

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Muita coisa no que diz respeito aos direitos da mulher ainda estão só na lei, só na Carta Constitucional. Nós não conseguimos, por exemplo, que a mulher ganhe o mesmo salário para funções iguais, embora esteja na nossa Carta Constitucional. Seria preciso um nível de fiscalização nas delegacias de trabalho dos salários, etc., e ainda não alcançamos essa excelência.

Recentemente houve um projeto, numa comissão aqui, que buscava estabelecer uma espécie de lista positiva das empresas que mantivessem o mesmo salário para funções iguais. Os Senadores não aceitaram. É difícil vencer o machismo. E o machismo vem sempre com outro pretexto. Uma hora é o pretexto de que o mercado não suporta. O que o mercado não suporta? Que a mulher se integre? Por que não pode ser premiada uma empresa que tenha uma relação não machista de trabalho?

Então, na verdade, é o medo, são as amarras do machismo jogando para baixo a libertação e o crescimento da mulher no mercado de trabalho brasileiro. Isso no que diz respeito ao mercado de trabalho. Nem vou falar dos outros assuntos.

ENTREVISTADORA – Senadora, a entrevista está ótima, mas a gente vai chegar ao fim.

Há alguma coisa que a senhora queira ainda mencionar? Senão, eu vou fazer a última pergunta.

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Não, não me lembro também.

ENTREVISTADORA – A sua participação na Constituição – a senhora que tem uma história no Legislativo e no Executivo –, de alguma forma, mudou a sua vida tanto como cidadã quanto como política?

SENADORA LÍDICE DA MATA (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PSB - BA) – Mudou profundamente. Quando cheguei à Constituinte, eu tinha 30 anos de idade, tinha saído do movimento estudantil, da luta contra a ditadura e feito o meu primeiro mandato de Vereadora em Salvador. Um dos principais movimentos que me deram muita alegria na Constituinte foi nós conquistarmos o direito ao voto aos 16 anos. Aquilo fazia parte daquela luta que nós havíamos travado para motivar a participação da juventude da minha época e da posterior à minha. Então, mudou profundamente. Mudou profundamente até porque mudou o Estado brasileiro e, especialmente, mudou a posição da mulher no Brasil. A mulher, pela primeira vez, teve a sua condição de cidadã reconhecida no mesmo tamanho da do homem. Infelizmente, ainda só na Constituição, mas, claro, isso abre totalmente o ambiente institucional para uma nova prática e uma nova cultura, uma cultura civilizatória diferente.