O Arquivo do Senado Federal não vai para Brasília?
Em comemoração aos 65 anos da fundação de Brasília, a Coordenação de Arquivo do Senado Federal (COARQ) gostaria de contar uma história pouco conhecida sobre a criação da nova capital: a transferência, ou melhor, a não transferência do Arquivo do Senado para Brasília. A princípio, tudo indicava que a estrutura senatorial do Palácio Monroe iria de maneira completa para o novo Distrito Federal, mas, poucos meses antes, um grupo de senadores - formado por Filinto Müller, Cunha Melo, Freitas Cavalcanti, Gilberto Marinho, Mathias Olympio e Herobaldo Vieira - decidiu que o “Arquivo Morto”, expressão utilizada por eles, deveria permanecer no Rio de Janeiro. Mas por quê?
O nosso principal objetivo é responder a essa questão, no entanto, antes de entrar diretamente no assunto, é importante destacar que a trajetória do Arquivo do Senado se inicia com a própria criação da instituição. Diferentemente de outros setores, que foram sendo criados ao longo do tempo, o Arquivo já estava presente no projeto constitucional de 1823. Inserido no artigo 119, o Arquivo foi idealizado como um dos guardiões do processo legislativo, já que “Referendada a Lei pelo Secretario competente, e Sellada com o Sello do Estado, guardar-se-ha hum dos Originais no Archivo Publico, o outro igual assignado pelo Imperador, e Referendado pelo Secretario competente será remettido ao Senado, em cujo Archivo se guardará”. ¹
Apesar do fechamento da Assembleia Constituinte de 1823, no episódio conhecido como “Noite da Agonia”, o Arquivo permaneceu na Constituição outorgada de 1824, mudando apenas de lugar. Do artigo 119 ele foi para o 68, com a seguinte redação: “Se o Imperador adoptar o Projecto da Assemblea Geral, Se exprimirá assim = O Imperador Consente = Com o que fica sancionado, e nos termos de ser promulgado como Ley do Império; e hum dos dous Autografos, depois de assinados pelo Imperador, será remettido para o Archivo da Câmara, que o enviou; e o outro servirá para porelle se fazer a Promulgação da Ley pela respectiva Secretaria d’Estado, aonde será guardado”.²
Essa manutenção revela que nossos legisladores sabiam da importância do Arquivo do Senado e, de 1824 até hoje, ele testemunhou outros fatos da nossa história: a título de curiosidade, no século XIX, o Arquivo quase teve parte dos seus documentos transferidos à Câmara dos Deputados e ao Arquivo Público do Império; por pouco, também não perdeu um dos seus funcionários, durante a Guerra do Paraguai (1864-1870); e esse serviço, em especial, sofreu com ataques ocorridos na Guerra da Armada (1891-1894).
Esses acontecimentos, porém, não são o foco desta publicação e serão contadas em um outro momento. Como mencionado, o nosso objetivo é entender por que alguns senadores lutaram pela permanência do Arquivo do Senado Federal no Palácio Monroe, mesmo com a aprovação da Lei nº 3.273, de 21 de outubro de 1957, que havia fixado a data de transferência da nova capital. Diante desse cenário, portanto, o nosso primeiro objetivo, aqui, é procurar compreender o porquê dessa preocupação. Em seguida, iremos demonstrar que a questão com o Arquivo do Senado Federal envolvia alterações que a sociedade brasileira vivia à época e uma relação especial com o documento arquivístico.
O sonho (que não era) de JK
Antes de falar sobre a mudança do Arquivo do Senado, é importante lembrar que a transferência da capital não foi uma invenção de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976). Na realidade, JK, como era mais conhecido, somente concretizou uma disposição que já se encontrava prevista desde a Constituição de 1891. Conforme o artigo 3º dessa Carta Magna, ficava “pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital federal”. O parágrafo único ainda estabelecia que “Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a constituir um Estado”
Embora prevista na nossa primeira Constituição republicana, a interiorização da capital era um assunto debatido há vários séculos. Entre 1549 e 1763, a capital brasileira era Salvador, mas essa escolha foi uma decorrência “natural” de a cidade estar localizada no centro da extração do pau-brasil e da produção de açúcar. O que pesou, assim, foi a questão econômica. Com o tempo, porém, essa localização começou a ser questionada, já que, com o período das Grandes Navegações (entre os séculos XV e XVII), percebeu-se que Salvador era suscetível a ataques inimigos – um medo que foi concretizado com a invasão holandesa às terras soteropolitanas, em 1624.
Diante desse cenário, o Secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal (1699-1782), transferiu, em 1763, a capital da Bahia para o Rio de Janeiro, alegando motivos de segurança. Nem todos, porém, foram a favor dessa mudança, visto que a capital permaneceria no litoral. Durante a Inconfidência (ou Conjuração) Mineira de 1789, por exemplo, os envolvidos lutaram pela transferência da capital para São João Del Rei. Para os inconfidentes, não fazia sentido o centro político do país (Rio de Janeiro) estar distante do centro econômico (Minas Gerais). Esse ponto, é claro, refletia a expansão econômica ligada à descoberta de metais preciosos na região.
Com a morte de Tiradentes (1746-1792) e dos outros envolvidos no conflito, a ideia de interiorizar a capital perdeu força, voltando à tona somente com Hipólito José da Costa (1774-1823). O fundador do jornal Correio Braziliense, a partir de 1808, começa a escrever uma série de artigos defendendo uma nova transferência da capital, alegando novamente a falta de segurança do nosso litoral. Uma das suas inspirações eram os Estados Unidos e ele defendia, assim como havia ocorrido com os norte-americanos, que a nova capital levasse o nome daquele que governava o país na época da sua fundação.
No caso estadunidense, a capital passou a se chamar Washington, nome que carrega até hoje. No caso brasileiro, a capital deveria levar o nome do Rei regente, Dom João VI. Outros pontos levantados por Hipólito José da Costa é que a interiorização ajudaria na comunicação regional, na ocupação territorial e na expansão econômica, fatores que, mais de um século depois, também seriam destacados por JK.
Durante o nosso processo de Independência, a questão da mudança da capital continuava em voga. Após o 7 de setembro de 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) propõe a “instalação da capital na recém-criada comarca de Paracatu dos Príncipes (MG), com o nome de Brasília ou Petrópolis”4. Em decorrência do fechamento da Assembleia Constituinte em 1823, porém, essa ideia não vai para frente mais uma vez.
Ao longo do século XIX, ocorreram outras tentativas de transferência. Em 1839, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), um dos fundadores da historiografia brasileira, passou a defender que a capital fosse alterada para São João Del Rei, em Minas Gerais, assim como desejavam os inconfidentes. Todavia, em 1877, Varnhagen muda de ideia: após uma viagem a Goiás, escolhe Vila Formosa da Imperatriz, atual Formosa (GO), como sendo a localização ideal para a futura sede.
Com a Proclamação República de 1889, a ideia de se transferir a capital ganha um novo fôlego e se torna matéria constitucional em 1891, demonstrando que essa questão permeou, de certo modo, o imaginário dos brasileiros durante o século XIX. No ano seguinte, então, é criada a Comissão Exploradora do Planalto Central, mais conhecida como “Missão Cruls”, dado o nome do cientista belga e diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, Luiz Cruls, chefe da incursão.
Cruls e sua equipe, composta por “astrônomos, médicos, botânicos, geólogos, farmacêuticos, militares, engenheiros”, realizam um levantamento geológico, botânico, hidrológico, mineralógico e climático da área que seria o novo Distrito Federal. Entre 1894 e 1895, além de novas incursões, elaboram um documento que ficou conhecido como “Relatório Cruls”, uma das bases para o empreendimento que seria concretizado anos depois por JK.
Com base na Constituição de 1891 e no “Relatório Crus”, o Senado Federal, então, elabora o Requerimento nº 189 de 1905, no qual autoriza o Poder Executivo a finalmente transferir a capital, mas ele não vai adiante. Um ano depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Senador Justo Chermont apresenta novamente uma iniciativa nesse sentido, o Projeto de Lei nº 82 de 1919, mas, assim como a proposta anterior, essa também não teve continuidade.
Em 1922, Epitácio Pessoa (1865-1942), Presidente do Brasil à época, aproveita o Centenário da nossa Independência e assina o Decreto nº 4.494, em que lança a Pedra Fundamental no interior do Planalto Central. Essa solenidade deveria marcar o início das obras públicas para construção da nova capital, mas não é isso que ocorre. O presidente seguinte, Artur Bernardes (1875-1955), não leva a decisão de Pessoa à frente.
A transferência, assim, perde novamente força e é deixada de lado também pela ocorrência das greves trabalhistas, dos movimentos tenentistas, da crise de 1929 e das insatisfações com o sistema político da Primeira República (1889-1930). A morte de João Pessoa (1838-1930), assassinado a tiros na confeitaria “Glória” no Recife, desencadeia uma série de conflitos que levam Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder pela primeira vez, impedindo mais uma vez a mudança da capital.
Os anos iniciais do governo varguista são tensos, em especial pela não convocação de uma Assembleia Constituinte, e a ideia de uma nova capital parece cada vez mais distante. Esse cenário, todavia, começa a mudar em 1933: os debates constitucionais finalmente são iniciados e os legisladores resgatam a ideia de se mudar a capital. Desse modo, os constituintes inserem na Constituição de 1934 que “Será transferida a Capital da União para um ponto central do Brasil. O Presidente da Republica, logo que esta Constituição entrar em vigor, nomeará uma commissão que, sob instrucções do Governo, procederá a estudos de varias localidades adequadas á installação da Capital. Concluidos taes estudos, serão presentes á Camara dos Deputados, que escolherá o local e tomará, sem perda de tempo, as providencias necessarias á mudança. Effectuada esta, o actual Districto Federal passará a constituir um Estado”
O governo democrático de Vargas, entretanto, não dura muito tempo: com a elaboração de um documento falso criado pelo próprio governo, conhecido como “Plano Cohen”, é implementado o Estado Novo (1937-1945), um período de ditadura em que ocorrem cassações, censuras e deportações (a mais conhecida foi a de Olga Benário). Fecha-se também o Congresso Nacional e é outorgada uma nova Constituição, a de 1937, que não prevê a transferência da capital.
Durante 8 anos, então, o Brasil é governado por uma Carta de inspiração fascista. A “Polaca”, como ficou conhecida a Constituição de 1937, estabelecia ainda que o Poder Executivo expedisse decretos-leis, fazendo o papel do Legislativo. Entretanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) se aproximando, o Estado Novo vai se tornando cada vez mais obsoleto e Getúlio Vargas sofre um contragolpe, sendo retirado do poder. Em 1946, assim, o Brasil vivencia novamente um período de experiência democrática. Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) se torna Presidente e, na sua gestão, uma nova Carta Magna é promulgada. A Constituição de 1946, assim como a Carta de 1934, retoma a ideia da transferência e prevê que:
“A Capital da União será transferida para o planalto central do País.
- 1 º - Promulgado este Ato, o Presidente da República, dentro em sessenta dias, nomeará uma Comissão de técnicos de reconhecido valor para proceder ao estudo da localização da nova Capital.
- 2 º - O estudo previsto no parágrafo antecedente será encaminhado ao Congresso Nacional, que deliberará a respeito, em lei especial, e estabelecerá o prazo para o início da delimitação da área a ser incorporada ao domínio da União.
- 3 º - Findos os trabalhos demarcatórios, o Congresso Nacional resolverá sobre a data da mudança da Capital.
- 4 º - Efetuada a transferência, o atual Distrito Federal passará a constituir o Estado da Guanabara”
Dada essa nova previsão constitucional, é criada a Comissão Poli Coelho, que, ratificando o “Relatório Cruls”, sugere a ampliação da área do novo Distrito Federal, ao abarcar o estado de Tocantins. Essa sugestão ocorreu, porque já se previam crises hídricas na área anteriormente delimitada. Em 1953, o Congresso Nacional aprova, então, o “Relatório Poli Coelho”, com a promulgação da Lei nº 1.803. Getúlio Vargas, que havia voltado ao poder em 1951, cria a Comissão de Planejamento e Coordenação da Mudança da Capital Federal, mas, com o seu suicídio em 1954, a transferência da capital teve que ser encabeçada por Café Filho (1889-1970).
Um dos primeiros atos dessa Comissão foi contratar a empresa do norte-americano Donald J. Belcher, que, diferentemente das explorações anteriores, elaborou uma fotoanálise e uma fotointerpretação da área, indicando os cinco melhores sítios que poderiam abarcar a nova capital. O Sítio Castanho é o escolhido e, em abril de 1955, é finalmente assinado um decreto instituindo a nova área do futuro Distrito Federal.
A meta (que não estava) prevista de JK
O período compreendido entre 1946 e 1964 é interpretado muitas vezes como um período de experiência democrática, haja vista que se trata de um intervalo entre duas ditaduras: a do Estado Novo (1937-1945) e a do regime civil-militar (1964-1985). Todavia, quando analisamos mais de perto alguns fatos que caracterizam essa época, percebemos que, apesar de democrático, esse período foi de grande tensão para a história do nosso país.
O contragolpe que retirou Getúlio Vargas do poder em 1945 mergulhou o Brasil em uma crise: embora ditador, Vargas gozava de grande popularidade, em razão das medidas sociais que havia tomado desde 1930. Após sua deposição, o movimento queremista, originário do slogan “Queremos Getúlio”, começa a defender a sua permanência na Presidência. Vargas, entretanto, é impedido de se candidatar ao cargo mais alto do Poder Executivo, mas seu capital político era tão grande que ajudou Eurico Gaspar Dutra a se tornar Presidente e, na mesma eleição, elegeu-se deputado e senador por mais de um estado.
Perante esse cenário, Dutra não possui uma administração inicial fácil. Ao se aliar com os Estados Unidos, o novo Presidente, influenciado pelo clima de Guerra Fria (1947-1991), rompe relações com a União Soviética e fecha o Partido Comunista Brasileiro (PCB), cassando mandatos dos seus políticos. Em 1951, após uma passagem apagada pelo Senado Federal, mas gozando de popularidade, Getúlio Vargas retorna à Presidência da República, mas não suporta as pressões internas e externas e tira a própria vida no dia 24 de agosto de 1954. Ao se suicidar com o disparo de um revólver calibre 32, em seu quarto no Palácio do Catete, Vargas instaura uma nova crise no país.
O povo, indignado, sai às ruas em busca de respostas, eclodindo inúmeras revoltas populares pelo Brasil. Sua morte, além da grande comoção popular, abre espaço também para um novo nome: Juscelino Kubitschek (1902-1976). JK, todavia, não era visto com bons olhos pelo substituto de Vargas, Café Filho, nem por Carlos Lacerda (1914-1977), um dos principais opositores de Getúlio e de seu herdeiro político, João Goulart (1919-1976), mais conhecido como Jango. A pedido de JK, Jango aceita o pedido e os dois formam uma chapa para concorrer à Presidência. Tal união desagrada parte das Forças Armadas, tendo em vista que JK e Jango também haviam recebido apoio do PCB, que havia retornado à legalidade.
JK e Jango vencem as eleições de 1955, mas a vitória desagrada parte do seio militar. Entre eles, destaca-se o coronel Jurandyr Mamede, que, após o resultado, realiza um forte discurso criticando as eleições desse ano. Para ele, a vitória de JK e de Jango havia sido injusta, considerando que nenhum candidato alcançara a maioria dos votos. Após as falas de Mamede, o General Henrique Lott, então Ministro da Guerra, procura o Vice-Presidente Café Filho para punir o coronel por insubordinação, mas descobre que o mandatário havia sofrido um acidente cardiovascular.
O novo Chefe do Executivo era, então, Carlos Luz, Presidente da Câmara dos Deputados. Ao se reunir com o Presidente interino, Lott se sente desrespeitado, já que, para punir Mamede, era necessário que o coronel fosse devolvido ao Exército pela Presidência, mudança essa que não ocorreu. Lott, insatisfeito, pede demissão e Álvaro Fiúza de Castro se torna o novo Ministro da Guerra.
Lott, todavia, percebe a trama golpista que estava pairando no ar: na realidade, Mamede tinha o apoio de Luz e, por isso, não foi punido. Além disso, com a sua demissão do Ministério da Guerra, o Presidente interino tinha agora o caminho livre para impedir a posse de JK e de Jango e deflagrar um golpe de Estado. Vendo esse quadro se formar, Lott se antecipa e, com o apoio da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, consegue retirar Carlos Luz, colocando no poder o Vice-Presidente do Senado, Nereu Ramos.
Com o cerco se fechando, os golpistas vão atrás de Café Filho, que ainda estava se recuperando do acidente cardiovascular, porém novamente Lott se adianta e coloca tropas ao redor do Palácio do Catete, impedindo que Filho, licenciado, comparecesse ao Congresso Nacional. Aproveitando o pouco tempo, Lott se articula com a Câmara e com o Senado e impede a volta de Café Filho. Este ainda recorre ao Supremo Tribunal Federal, mas não obtém sucesso. A título de curiosidade, não se sabe até hoje se Café Filho mentiu sobre a sua saúde, a fim de permitir a deflagração de um golpe de Estado. O que se sabe é que todo esse imbróglio ocorreu em uma semana, ou seja, em sete dias o Brasil teve três Presidentes diferentes.
Diante desse cenário, os anos iniciais de JK se demonstram bastante tensos, pois, além desse clima golpista, Juscelino começa seu governo com um planejamento ousado, conhecido como “Plano de Metas”. Esse planejamento havia sido o seu carro-chefe durante as eleições e contava, de antemão, com 30 objetivos que englobavam diferentes setores, como os de energia, de transporte, de indústria, de educação e de alimentação. Seu slogan era “50 anos em 5” e tinha o objetivo de fazer o Brasil crescer meio século em um mandato presidencial, que nesse período era de 5 anos.
A criação de Brasília, porém, não estava prevista a princípio. Sua ideia surgiu durante um comício na cidade de Jataí (GO), em abril de 1955, no qual JK foi questionado se iria cumprir a Constituição de 1946. Como bom político, Juscelino responde positivamente, mas, em seguida, Antônio Soares Neto (o Toniquinho), o eleitor que o havia indagado, pergunta, então, se ele irá construir a nova capital, considerando que ela estava prevista nessa Carta. Embora seja pego de surpresa, JK responde que sim. Passado o comício, Juscelino confessa que não havia pensado em construir Brasília, mas que mudou de ideia após esse dia. Assim nasceu o 31º objetivo do Plano de Metas: Brasília, a meta-síntese.
E o Arquivo do Senado Federal?
A fim de concretizar a meta de nº 31, já em de abril de 1956, é encaminhada ao Congresso Nacional a “Mensagem de Anápolis”, que criou, mediante a Lei nº 2.874, a NOVACAP, empresa pública que seria a responsável pelo planejamento e pela execução de Brasília. Seguindo essa linha, é promulgada também a Lei nº 3.273 de 1957, que fixou o 21 de abril como a data para a mudança da capital. É importante mencionar que esse dia não foi uma escolha à toa, visto que, por ser mineiro, JK quis homenagear Tiradentes, morto no dia 21 de abril de 1792.
Com a data de mudança se aproximando, o Senado Federal inicia os preparativos para a sua transferência. Nessa preparação, destaca-se o relatório “Sugestões sobre o Edifício do Senado em Brasília”, escrito pelo Diretor do Arquivo, Lauro Portela. Segundo o documento, o novo espaço deveria atender a “questões de luminosidade, umidade, equipamentos, localidade e segurança do acervo em relação à estabilidade do prédio e distribuição do espaço físico e local para exposição de documentos”
Bastante rico e detalhado, o relatório propunha também que o Arquivo ficasse localizado no 3º e no 4º piso do prédio principal do Congresso Nacional e alertava “para a necessidade de atenção à sobrecarga especial que logo se acentuaria com a significativa pressão na estrutura do prédio exercida pelo acúmulo referente a estes dois acervos”. Foi relatado ainda “sobre a intercomunicação necessária entre os dois pavimentos com escada interna e um pequeno elevador para transporte de documentos de um andar para o outro”
No relatório, um outro ponto levantado por Lauro Portela é que a documentação produzida pelo Congresso Nacional deveria ser guardada pelo Senado. Ou seja: quando o Senado Federal e a Câmara dos Deputados trabalhassem de maneira conjunta, a informação produzida por esse trabalho deveria ser guardada pelo Arquivo do Senado. Daí a preocupação do Diretor em criar diferentes salas, seja para consulta ou para exposição de documentos.
Perante esse quadro, tudo indicava que o Arquivo viria para Brasília em abril de 1960, mas não foi isso que ocorreu de imediato. Em fevereiro desse ano, é aprovado o Projeto de Resolução nº 06, que criava o Serviço de Informações, Pesquisa e Audiências e estabelecia que o Arquivo do Senado deveria ficar sob a administração do Palácio Monroe durante dois anos, prazo esse que deveria ser contado a partir da primeira sessão legislativa ocorrida em Brasília. Essa iniciativa recebeu, ainda, um parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão de Finanças, sendo aprovado também um requerimento de urgência.
O mais interessante desse projeto, porém, é a sua justificação. Para a manutenção do Arquivo no Rio de Janeiro, os senadores enfatizaram o caráter histórico da documentação. Como se pode observar, tal valor é reforçado, pois o Arquivo do Senado Federal é comparado a outras instituições culturais, como o Museu Histórico, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional e a Academia Brasileira de Letras.
De certo modo, podemos dizer que os senadores não estavam totalmente equivocados acerca do valor histórico do Arquivo do Senado, considerando que os documentos podem, sim, se tornar de guarda permanente (isto é, históricos), quando adquirem uma função distinta daquela para a qual foram originalmente criados e oferecem “aos cidadãos um senso de identidade, de história, de cultura e de memória pessoal e coletiva” 8.
Todavia não podemos esquecer que a “principal finalidade dos arquivos é servir à administração” 9. Em outras palavras: por mais que a documentação produzida seja de interesse nacional, como é o caso das informações geradas pelo Senado Federal, o documento arquivístico é naturalmente criado pelas ações da instituição à qual pertence, no intuito de ser fonte de prova de sua atividade. Assim, em um primeiro momento, a documentação só faz sentido para aquele que a produz, considerando que a informação criada é de sua proveniência e retrata as suas necessidades.
Dessa maneira, percebe-se que os senadores, ao apontarem que “não há nenhum interesse de ordem administrativa ou técnica” na documentação do Arquivo do Senado, estavam se contradizendo, pois, na realidade, qualquer documentação é originada, a partir desses interesses. Essa contradição se torna mais clara, pois no projeto os legisladores também criaram o “Serviço de Informações, Pesquisas e Audiências”, que seria o responsável por “informar sobre a tramitação das proposições em curso do Senado”, “adotar medidas para o funcionamento da Comissão dos Senadores” e “auxiliar os Senadores nos trabalhos de assistência técnica, correspondência, audiências, recepção e portaria”.
Ou seja: ao mesmo tempo que se aponta que “não há nenhum interesse de ordem administrativa ou técnica”, cria-se um setor para dar suporte técnico e administrativo ao dia a dia do Poder Legislativo. Como se sabe, o cotidiano do Poder Legislativo é bastante dinâmico, logo a informação, aqui, tem que ser rápida, clara e de fácil acesso, dado que um erro ou um atraso podem significar longas esperas, rejeições de proposições, perda de apoio para futuros projetos e, em casos mais graves, ostracismo político. Daí a proposta de criação de um setor específico.
Diante desse quadro, entende-se que a luta pela manutenção do Arquivo do Senado no Rio de Janeiro foi uma tentativa de salvar o Palácio Monroe. Ocupado pelo Senado Federal desde 1925, a instituição “atribuía ao prédio um enorme simbolismo democrático” 10. A transferência do Senado significava, assim, a perda da áurea de um prédio que, aos poucos, foi sendo visto como uma aberração por determinadas pessoas e correntes arquitetônicas.
Em meados do século XX, por exemplo, não se cogitava ainda a sua destruição, mas, no final de 1954, o presidente Café Filho lançou um edital de concurso para a construção de uma nova sede do Senado Federal, revelando que o Palácio Monroe, antes intocado, estava com os dias contados. Dessa forma, o “arquivo morto” pode ter sido uma das últimas tentativas de o Palácio permanecer vivo.
Perante o que foi abordado, é importante realçar que a criação de um Arquivo está ligada à eficiência governamental. A urbanização, a industrialização e o crescimento demográfico, por exemplo, são fatores que aumentam a produção de documentos e exigem da Administração Pública um trabalho de gestão documental cada vez mais técnico. A título de curiosidade, entre 1940 e 1980, no Brasil “o número de moradores nas cidades saltou de 13 milhões para mais de 80 milhões de pessoas” 11. Todos esses processos se intensificaram com a vinda da capital para Brasília, tendo em vista a mudança e a criação de uma nova burocracia estatal. O Arquivo, portanto, tinha um papel estratégico dentro de todo esse quadro.
Não se sabe ao certo quando o Arquivo do Senado Federal foi transferido para Brasília, o que nos leva a pensar em algumas razões que podem ter motivado essa mudança. Primeiramente, a transferência pode estar relacionada à pressão de se destruir o Palácio Monroe. Como mencionado, aos poucos o intocado Palácio foi sendo visto como uma aberração arquitetônica e um obstáculo à urbanização da cidade do Rio de Janeiro, logo a sua desocupação facilitaria uma futura demolição que também começava a ser cogitada na antiga capital.
Em segundo lugar, a manutenção de um espaço físico sempre envolve gastos, cálculo esse que aumenta quando ele é pouco utilizado. Dessa forma, por mais que o Palácio Monroe mantivesse algumas funções do Senado, sendo apelidado inclusive de “Senadinho”, após a transferência para Brasília, a sua desocupação pode ter sido também uma forma de a Casa economizar.
Por fim, podemos pensar que essa mudança foi motivada, porque, aos poucos, o Senado foi se dando conta de que a documentação guardada no Rio de Janeiro era essencial para o dia a dia legislativo em Brasília e, dadas as tecnologias da época, essa comunicação era difícil. Desse modo, o valor histórico teve que ser deixado de lado, em um primeiro momento, por razões inerentes à própria natureza do documento de arquivo.
Como mencionado, o documento arquivístico é uma consequência natural das atividades de uma instituição e funciona como fonte de prova dessas ações. Vista desse modo, a informação arquivística faz mais sentido quando é mantida próxima daquele que a produziu. Por mais que isso não apareça de maneira clara nos nossos registros, esse pode ter sido um dos motivos para a transferência definitiva do Arquivo do Senado Federal para Brasília.
Pesquisa e elaboração do texto: Alexandre Alves de Sousa Moreira e Suelen Dal Osto Bidinoto
Revisão: Tuane Pontes da Silva
Edição de Imagens: Pablo Natan Souza Machado
Referências Bibliográficas
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6. DRUMMOND, Carlos Eduardo. Tempos modernos: o Rio metrópole, a exposição de 1922 e a incrível história do palácio que desapareceu durante a ditadura militar. 1ª ed. - Rio de Janeiro: Litteris, 2024, p.236.;
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8. PAES, Marilena Leite. Arquivo: Teoria e Prática. 3. ed. Rev. amp. - Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p.20;
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10. Relatório elaborado pela Secretaria de Gestão de Informação e Documentação em parceria com a Universidade de Brasília, 2020, p.56;
11. URANI, Jefferson Colaboração: VERAS, Reginaldo. Distrito Federal + RIDE: história, geografia e sociedade. Brasília, Alumnus, 2018, p.18.