Pacote anticrime pode aumentar encarceramento de negros e pobres, aponta debate na CCJ
Da Redação | 08/08/2019, 14h03 - ATUALIZADO EM 09/08/2019, 11h39
Principal aposta do governo federal para combater a criminalidade, o pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, está longe de um consenso entre especialistas em direito. Em audiência nesta quinta-feira (8), a maior parte dos juristas e representantes de organizações da sociedade civil apontaram que as propostas são ineficazes no combate à violência e poderão fragilizar direitos e garantias individuais do cidadão, além de aprofundar o encarceramento em massa no país.
O Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em número de pessoas encarceradas. Em 2016, o Brasil tinha quase 700 mil presos de acordo com Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), ficando atrás apenas de Estados Unidos e China em números absolutos de população carcerária. Para a maior parte dos debatedores que participaram da audiência na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) nesta quinta, o pacote anticrime segue uma lógica repressivo-punitiva que não deu certo e que tende a aumentar o número de presidiários. Segundo Márcio Gaspar Barandier, do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), as propostas não reduzirão a criminalidade.
— Tudo isso [esse pacote anticrime] atende a uma lógica há muito superada de que seria preciso aumentar o rigor penal e o poder punitivo para se enfrentar a segurança pública e superar, ou reduzir pelo menos, a criminalidade violenta. Essa é uma fórmula fracassada desde sempre. [...] O projeto vai resultar numa elevação ainda maior na escalada do superencarceramento — afirmou.
O gerente de advocacy (defesa de causas e direitos) do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, criticou, por exemplo, a mudança na chamada excludente de ilicitude, já prevista no Código Penal, para reduzir a punição de policiais que matam suspeitos no exercício da profissão. Pela proposta, o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Angeli criticou fala do presidente Jair Bolsonaro em entrevista à jornalista Leda Nagle, publicada na segunda-feira (5), em que afirma que a ampliação da excludente de ilicitude reduziria a violência. Segundo o presidente: “os caras vão morrer na rua igual barata”. Para Angeli, as palavras de Bolsonaro foram infelizes:
— É o mesmo raciocínio que levou à criação de milícias no Rio de Janeiro — disse o representante do Sou da Paz.
A advogada e ex-membro do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, Deise Benedito, criticou a proposta de Sergio Moro de incluir mais pessoas dentro de um banco de perfis genéticos. Segundo o projeto, o banco genético brasileiro deverá reunir informações do DNA de todos os condenados em primeira instância por crimes dolosos (quando há a intenção), ou mesmo aqueles que não foram julgados. Para Deise, a medida não tem eficácia, fere o princípio da presunção de inocência e vai ampliar a perseguição contra as populações de jovens negros e pobres.
— A proposta tem caráter obrigatório, intimidador, punitivista e eugenista, totalmente em desacordo com os princípios constitucionais. Quem serão as pessoas que obrigatoriamente terão que doar seus perfis genéticos? Serão jovens negros (homens e mulheres) e indígenas — condenou.
Silvia Virginia de Souza, da Conectas Direitos Humanos, criticou a tentativa de reintroduzir, com o pacote anticrime, a figura do “criminoso habitual” no ordenamento jurídico, com o fim de endurecer o cumprimento de pena e aumentar a investigação dos que demonstram “conduta criminosa habitual reiterada ou profissional”. De acordo com Silvia, o projeto abre a possibilidade de magistrados definirem de forma totalmente discricionária e circunstancial se uma pessoa será considerada uma criminosa habitual ou não.
Silvia concorda com outros especialistas na CCJ: "O pacote dá continuidade a esse projeto de encarceramento de pessoas negras, pessoas pobres e periféricas. [...] Ninguém merece ser morto como barata. Nós, da sociedade civil, rejeitamos esse projeto".
O coordenador da 7ª câmara do Ministério Público Federal, Domingos Sávio Dresch da Silveira ressaltou que a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) não ajudou a reduzir a violência e afirmou que a lógica do encarceramento fortalece as organizações criminosas.
— O resultado é que mais soldados para o exército das facções criminosas serão recrutados, e por sua vez, produzindo e fomentando mais violência dentro da sociedade. Temos um modelo que não deu certo. Nós prendemos muito e prendemos mal — avaliou.
Vítima da violência do estado, Eronilde Nascimento teme que o pacote acentue os problemas vividos nas periferias das cidades. Fundadora do coletivo Mães de Maio do Cerrado, ela viu o companheiro, Pedro Nascimento Silva, ser assassinado em 2015, numa reintegração de posse violenta na Ocupação Parque Oeste Industrial em Goiânia (GO).
— Quando ele [o estado] mata os que eles dizem traficantes, são os da periferia. E quem fabrica essa droga? Para mim é claro que é uma política de extermínio da Juventude pobre, da juventude negra — disse.
Clamor popular
Em contrapartida, para o delegado Rafael Sampaio, da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária, o pacote anticrime atende a um clamor popular e pode ajudar a combater os problemas de segurança. Segundo ele, é desestimulante para os policiais prenderem o mesmo indivíduo reiteradamente e vê-lo ser solto em audiências de custódia.
— É imperioso recrudescermos o combate aos crimes de feminicídio, de racismo. Nessas frentes, onde se atacam minorias, todo mundo admite que devemos ter penas recrudescidas, mas, em relação a crimes gerais, há um clamor de alguns setores de que vai aumentar o número de encarceramentos e de que isso, por si só, seria uma justificativa para que não houvesse esse recrudescimento...acho que o Estado precisa mostrar sinais claros de qual caminho vai trilhar — apontou.
Também favorável ao pacote anticrime, o presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Victor Hugo de Azevedo Neto, acredita que os projetos que trazem medidas contra a corrupção, o crime organizado, e os crimes praticados com grave violência a pessoas são fundamentais para assegurar maior eficácia ao sistema de justiça criminal. Victor Hugo considera que a garantia de prisão de condenados após a segunda instância e o reforço de acordos entre as partes no processo são indispensáveis.
— Esses dois pontos são indispensáveis para que essa reforma que está sendo tentada efetivamente consiga trazer ao direito penal brasileiro um pouco mais de efetividade, um pouco mais de celeridade aos processos criminais e, portanto, que o sistema de justiça criminal brasileiro efetivamente funcione — defendeu.
O debate foi convocado para instruir o relatório de um dos projetos (PL 1.864/2019) do pacote anticrime no Senado. Dos três projetos que fazem parte do pacote, um já foi aprovado e dois aguardam votação. Os textos foram apresentados pelo Executivo à Câmara dos Deputados em fevereiro, mas para agilizar a análise da matéria, textos idênticos foram apresentados em março aos senadores. Foi a maneira encontrada pelos parlamentares de encaminhar as medidas, já que projetos do Poder Executivo devem começar a tramitar pela Câmara. As audiências na CCJ têm o objetivo de dar andamento à discussão das propostas de Moro, enquanto a Câmara priorizava a reforma da Previdência.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
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