Modelo de desenvolvimento prejudica conservação dos recursos hídricos, avaliam especialistas

Da Redação | 22/03/2021, 19h29

Um dos principais impactos que o Brasil vai sofrer com o aquecimento global é a redução da disponibilidade de água. Sem uma mudança estrutural no modelo de desenvolvimento, não vai ser possível reduzir a emissão de poluentes de forma sustentável e ter uma gestão eficiente dos recursos hídricos. O alerta foi feito nesta segunda-feira (22) em um webinar promovido pela Comissão de Meio Ambiente (CMA) para celebrar o Dia Mundial da Água, comemorado anualmente nesta data.

Proposto pelo senador Jacques Wagner (PT-BA), que preside a comissão, o debate reuniu especialistas que apontaram os principais desafios da gestão de recursos hídricos no Brasil.

Ameaças

Bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG), membro da Comissão Episcopal Especial para Ecologia Integral e Mineração da Confederência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Vicente Ferreira foi enfático ao apontar como a destruição provocada pela atividade mineradora como ameaça aos rios do país. Além de mencionar a destruição da bacia do rio Doce e do rio Paraopeba, provocada pelo rompimento de barragens da mineradora Vale em Mariana (MG) e Brumadinho (MG), ele afirmou que a forma de exploração mineral em atividade é extremamente destrutivo do lençol freático e das nascentes, e profundamente comprometedor da questão hídrica. 

— O que nos preocupa é que, depois dos crimes ambientais, as leis ainda estão sendo mais flexibilizadas no que tange ao meio ambiente. A mineração se torna mais agressiva. E a gente lança esse apelo para que se olhe a relação entre os empreendimentos minerários e a questão relativa à água. A mineração consome muita água em seu processo, polui muito e tudo isso vai trazendo danificações nos territórios, sobretudo nas comunidades menores, quilombolas, indígenas, e ainda as regiões metropolitanas das grandes cidades.

Dom Vicente Ferreira destacou ainda que a atuação das mineradoras, que parece estar acima da lei, compromete a segurança hídrica presente e futura em todas as regiões do país.

— As mineradoras são muito poderosíssimas, as questões legais não são respeitadas. É preciso sempre escutar os atingidos, as lideranças que vivem a dureza de ter o recurso hídrico, mas tê-lo contaminado e, cotidianamente, sendo ameaçado, sem responsabilidade por parte de quem ameaça. O processo de reparação é violento, passa por cima de muitas coisas, o drama da questão ambiental hoje no país é muito grave. Temos o país que tem mais água potável no mundo, mas estamos caminhando aceleradamente para trazer muitos problemas para a população num futuro muito próximo.

Bem comum 

Coordenadora geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara disse que o Dia Mundial da Água deveria ser comemorado em todo o mundo, mas que, infelizmente, passa despercebido pela maioria das pessoas. Ela disse ainda que é preciso acabar com a visão mercantilista sobre um bem comum como a água, fundamental para a sobrevivência de todos os seres vivos, “porque é duro constatar que muitas pessoas não têm água nem para beber e, agora, nesse período da pandemia, vivendo o pior março de nossa história”.

— Enquanto a orientação principal da OMS é lavar as mãos, nós ainda temos milhões de pessoas que não têm água nem para beber, muito menos para lavar as mãos. Essa história do lucro acima da vida, a destruição em detrimento da preservação, são os motivos que levam muita gente a não ter agua. É a contaminação pelo agronegócio, pelo minério das grandes mineradoras, a tentativa de legalizar mineração nos territórios indígenas, que já causou a perda de muitas vidas. A culpa de tanta destruição é do comportamento humano e dos acordos econômicos que põem em risco um bem comum e a vida no planeta. E quando a gente tenta um projeto de lei que garanta agua potável para as famílias, temos a negativa do presidente do país de não garantir agua potável para indígenas e quilombolas — afirmou Sônia Guajajara, referindo-se ao PL 1.142/2020, que deu origem à Lei 14.021, de 2020,  sancionada com vetos pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Entre os dispositivos vetados, está o que previa acesso das aldeias a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos para o combate à pandemia de covid-19.

Saneamento básico 

Coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), Cícero Félix dos Santos ressaltou que a água é um bem vital de direito público previsto na Constituição, e não uma mercadoria.

— Nesse momento de pandemia, é preciso garantir o saneamento básico no Brasil como investimento público, um direito de todos e dever do Estado, das cidades e do meio rural. Esse avançar do mundo rural significa estar também de olho nas mudanças climáticas, no enfrentamento às mudanças climáticas ou combate ao processo de desertificação que ocorre no Nordeste e outras regiões brasileiras. Não dá para falar em cuidar das águas sem cuidar dos biomas. O semiárido, conhecido como a região da seca, tem 26 milhões de pessoas, ou 12 por cento da população brasileira, e mais de 1.200 municípios — afirmou Santos.

Consultora e especialista em recursos hídricos, Patrícia Boson ressaltou a questão da governabilidade. Ela disse que no Brasil não há órgãos gestores capacitados para lidar com questão da água, sendo que muitos não dispõem de equipe ou recursos para funcionar. É preciso reforçar a governabilidade, e isso só se faz reforçando os organismos encarregados de lidar com a questão, afirmou.

Pesquisadora do Observatório do Clima, consultora legislativa da Câmara dos Deputados e ex-presidente do Ibama, Suely Araújo defendeu o monitoramento dos contratos feitos sob a égide do novo marco legal do saneamento o tempo todo, visto que os recursos costumam ser direcionados apenas para os locais onde o serviço  for rentável.

Representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Andréa Neiva disse que a água deve ser vista como um direito universal à disposição de todos. Ela criticou a privatização da oferta de água e salientou que 36 milhões de pessoas não tem saneamento básico no Brasil.

— Somos a parte mais afetada pelas decisões políticas e econômicas, nos vemos diante de situações que aprofundam ainda mais a violação de nossos direitos. As medidas de ajuste nos marcos legais e a privatização significam a morte dos povos indígenas. A água, hoje, é instrumento de especulação — afirmou.

Mudanças climáticas

Professor associado e chefe do Departamento de Engenharia e Biossistemas da Unesp, Rodrigo Lilla Manzione destacou que as mudanças climáticas já podem ser sentidas e estão afetando a produção de alimentos, como o milho e o trigo.

— As adaptações ocorrem, mas não na velocidade necessária, precisam ser potencializadas. Os produtores em pequenas escalas vão precisar de suporte, assistência técnica e a gente precisa investir nisso. O Brasil expandiu a rede de monitoramento climático, mas a manutenção desses equipamentos não está prevista no orçamento do governo. Não adianta levar cisternas para o semiárido sem assistência. É preciso cumprir a lei, somos ótimos em fazer leis, mas na hora de aplica-las ficamos um pouco para trás — afirmou.

Diretor regional na The Nature Conservancy (TNC), Fernando Veiga disse que a proteção das fontes de água e das florestas é a tecnologia mais eficiente para a sobrevivência dos recursos hídricos.

— A floresta tem papel muito grande e a gente tem o desafio de manutenção desses ecossistemas — afirmou.

Doutora em Economia da Mudança Climática e pesquisadora da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Camila Gramkow disse que é preciso pensar na água no contexto das políticas de recuperação no contexto da pandemia. Ela apontou a insustentabilidade dos estilos de desenvolvimento atuais, que podem ser transformados em investimentos sustentáveis, e disse que a inação agrava os problemas estruturais do desenvolvimento. A crise ambiental pode ser considerada a crise das crises, porque agrava a crise da fome, a crise da desigualdade, a crise da pobreza, afirmou.

Agrotóxicos 

Durante o debate, o senador Jacques Wagner (PT-BA) disse que o surgimento de doenças e outros males que afligem a Humanidade pode estar relacionado a concepção de um modelo de crescimento econômico nocivo que tem a usura como principal elemento, e não leva em conta o equilíbrio dos recursos ambientais.

— Querem acumular mais, ganhar mais, deixando para trás um rastro de destruição e de mortos. A elite brasileira nunca está à frente do tempo, mas atrás do tempo, não há concepção de desenvolvimento — afirmou.

O senador Fabiano Contarato destacou que o Brasil carrega consigo uma responsabilidade ecológica, social e econômica, visto que o país detém 12% do volume de água doce do mundo.

— O atual governo, em um ano, autorizou quase mil tipos de agrotóxicos diferentes que vão fazer com que sejam contaminados os risos e os mares. A herbicida da água brasileira é 300 vezes vezes mais forte do que a tolerada pela União Europeia. Como é que fica essa nossa responsabilidade? Um dia de funcionamento da floresta amazônica significa equivale a 20 bilhões de toneladas de chuva, que vão fazer no Norte, no Nordeste, no Sul, no Sudeste, que vai chover nos mares, vai controlar a salinidade. Para fazer o que a floresta faz, nós precisaríamos de 150 mil Itaipus, e para fazer o que as Itaipus fariam levaríamos 150 anos — afirmou.

O senador Confúcio Moura (MDB-RO) destacou a grandeza dos recursos hídricos amazônicos, e apontou as mudanças havidas nos últimos 45 anos na região, a exemplo da seca de rios, riachos e pastagens.

— A destruição da Amazônia prejudica o Brasil e o mundo no equilíbrio do aquecimento global. Os rios amazônicos são as estradas por onde circulam as pessoas e as riquezas. As comunidades e populações indígenas dependem desses rios para a sobrevivência — afirmou.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)