Toda loucura tem sua biografia

Da Redação | 09/12/2014, 00h00

Larissa Bortoni

 

A revolução no sistema de tratamento dos doentes mentais não aconteceu da noite para o dia. É resultado de um processo iniciado no fim da década de 1970, com o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Na época, a questão psiquiátrica era regida por um decreto de 1934.

 

O decreto determinava que “o psicopata ou indivíduo suspeito que atentassem contra a própria vida ou a do alheio, perturbassem a ordem ou ofendessem a moral pública” deveriam ser recolhidos. A internação poderia acontecer por ordem da Justiça ou da autoridade policial. Poderia também ser resultado do pedido do próprio paciente, de parente, tutor ou algum interessado das relações do paciente. Qualquer um podia internar o outro.

 

Como resultado, a internação era muitas vezes feita sem critério e, pior, podia servir como punição aos que não se adequavam à moral vigente. Assim é a história do Hospital Colônia, em Barbacena (MG), criado em 1903 pelo governo mineiro. Entre 1930 e 1980, 60 mil pessoas morreram no lugar. A informação é da jornalista Daniela Arbex, autora do livro Holocausto Brasileiro, que resgata a história do hospital.

 

Essas pessoas morreram de fome, frio, eletrochoque, abandono, tristeza. Daniela diz que os indivíduos chegavam ao Colônia para morrer. Abandonados pela família e pelo poder público. Nos períodos de maior frio, havia registro de 16 mortos por dia. Todos doidos? Não. A jornalista estima que, de cada dez pacientes, sete não sofriam de doenças mentais.

 

Trem de doido

 

O hospital foi destino de todo tipo de indesejável social. Não só de Minas, mas de todo o país. As pessoas eram enviadas a Barbacena em vagões de carga — o “trem de doido”, que fazia uma viagem sem volta. Daniela compara com o que aconteceu com os judeus levados aos campos de concentração nazistas:

 

— Há pessoas que viveram 30 anos lá, 40 anos, 50 anos sem receber uma visita da família. Acabou sendo depósito de gente.

 

Eram pessoas sem documentos. Negros. Pobres. Meninas que tinham perdido a virgindade antes do casamento. Gente que incomodava outras com mais poder. Maridos que silenciavam a mulher para ficar com a amante.

 

O Hospital Colônia continua aberto. Após a sociedade saber o que acontecia, a tragédia ganhou traços mais suaves. Os responsáveis pelas denúncias foram o cineasta Helvécio Ratton, com o documentário Em Nome da Razão, e o jornalista Hiram Firmino, do Estado de Minas, que publicou reportagens sobre o hospital. Rebatizado de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, adequou-se à Lei Antimanicomial.

 

Foi nesse contexto que o então deputado federal Paulo Delgado, de Minas, apresentou o projeto para regulamentar os direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios. Isso em 1989. O projeto precisou de 12 anos para ser aprovado. Delgado crê que o principal entrave foi cultural. A sociedade demorou a entender que os loucos não ficariam soltos nas ruas. E houve lobby dos negócios privados ligados aos manicômios.

 

Ele diz que a preocupação era dar cidadania ao doente mental. A lei, continua, não é contrária aos remédios, mesmo porque são o que permite o tratamento em liberdade. A lei não determina o fim da internação compulsória. O que pretende é uma terapia multidisciplinar que assegure resultados mais satisfatórios.

 

— Todo mundo tem um ponto de luz e é esse ponto de luz que você tem que procurar, porque é por ali que pode entrar o remédio, que pode entrar a escuta do sofrimento, que pode entrar a reinserção social.

 

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Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)