Especialistas e governo divergem sobre extinção de fundos setoriais na CCJ
Da Redação | 11/02/2020, 16h51
Garantir ao Congresso e ao Executivo mais flexibilidade para alocar dinheiro nas políticas públicas prioritárias é a proposta de emenda à Constituição da Desvinculação dos Fundos (PEC 187/2019), analisada por senadores, economistas, representantes de fundos, pesquisadores e empresários na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na manhã desta terça-feira (11). Segundo o governo, a PEC “empodera” o Congresso para elaborar o Orçamento e moderniza a destinação dos recursos pelo Executivo.
A proposta faz parte do pacote de medidas Mais Brasil e autoriza o governo a usar para outras finalidades o dinheiro hoje retido em fundos infraconstitucionais, ou seja, que não previstos pela Constituição. A justificativa do governo é que os fundos concentram recursos em atividades ou projetos de áreas específicas, o que significa “amarrar” receitas a determinadas finalidades. Com isso, segundo o governo, o dinheiro fica engessado e muitas vezes acaba parado nos fundos, enquanto outras áreas sofrem com a falta de recursos.
Na audiência pública, o governo estava representado pelo secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Geraldo Julião Junior. Ele explicou que “as prioridades foram dadas no passado e engessaram de tal forma o uso dos recursos que hoje é quase impossível o Estado decidir priorizar setores”.
— A PEC não está extinguindo nem excluindo qualquer política pública. O que queremos é que o Congresso esteja mais livre para decidir onde colocar os recursos quando for elaborar o Orçamento. Não se deve pré-alocar de maneira perene recursos de políticas públicas de modo que isso não possa ser revisto — esclareceu.
De acordo com Julião Junior, a PEC é parte de um processo de revisão do estatuto fiscal que envolve também as emendas constitucionais (EC) 86, 100, 102 e 105.
— Chama atenção o medo que as pessoas que falaram aqui têm da capacidade do Congresso Nacional de alocar os recursos. O Executivo não tem esse medo. Temos certeza que as prioridades que o Congresso eleger serão as prioridades nacionais — ressaltou.
Economistas
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, calculou que, retirados os fundos não afetados pela PEC — como os previstos na Constituição, por exemplo —, eles detêm cerca de R$ 60 bilhões de fluxo anual, sendo que a metade corresponde ao Fundo Nacional da Educação.
Segundo Salto, medidas de ajuste que efetivamente contenham o gasto obrigatório são o caminho para restaurar o equilíbrio fiscal. Ao avaliar como positiva a PEC dos Fundos ele comentou que ela permite um encontro de contas entre o Tesouro e o Banco Central, além de racionalizar e flexibilizar a gestão dos recursos públicos.
Os efeitos fiscais, contudo, ele diz que não virão agora.
— Vamos esperar e avaliar como será o cenário sem os fundos. Pode ajudar a gestão fiscal e melhorar os fluxos fiscais ao longo do tempo, mas não é algo imediato — analisou.
Salto rejeitou, contudo, a ideia de que a PEC reduzirá a dívida pública em R$ 200 bilhões, como prega o governo. Isso porque o uso dos recursos dos fundos guardados na conta única aumentaria imediatamente a liquidez. Para cumprir a meta Selic, o Banco Central teria de “enxugar” as operações compromissadas, que são o segundo maior item da dívida brasileira.
Diante disso, ele levantou três hipóteses e questionamentos. A primeira delas é se o fim do fundo representa o fim do gasto. Se isso acontecer, a PEC não terá o efeito fiscal esperado, mas o grau de flexibilidade para remanejar o recurso vai ser positivo.
A segunda questão é que os recursos antes carimbados e não gastos iam para a conta única. Agora sem o carimbo, como seria empregado o dinheiro? Serão gastos em investimentos, despesas discricionárias, custeio, gastos obrigatórios?
— Se forem gastos, piora o resultado. Se não forem, será nulo — enfatizou.
Em terceiro lugar: se o carimbo for tirado e o gasto virar obrigatório — como de pessoal, por exemplo —, não vai haver uma redução só porque foi tirado o carimbo (ou seja, o fundo deixa de existir, a despesa não).
O outro economista presente à audiência pública foi mais pessimista que Salto. Professor da Universidade de Brasília, José Luis da Costa Oreiro sustentou que a PEC “destrói sem criar”, visão compartilhada pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE).
Oreiro cobrou do governo uma definição e os dados sobre quais fundos seriam extintos caso seja aprovada a PEC.
— A PEC 187 não estabelece nenhum parâmetro para modernizar e aperfeiçoar os mecanismos de gestão orçamentária e financeira, resumindo-se a destruir a institucionalidade existente — sentenciou.
Para ele, a desvinculação de receitas, por si só, não aumenta a arrecadação de impostos e nem diminui a despesa primária, tendo impacto nulo sobre o resultado primário e, portanto, sobre a evolução da dívida pública.
— A simples desvinculação de receitas e despesas não abre espaço fiscal no Orçamento da União, estados e municípios. Além disso, em função da emenda constitucional do Teto dos Gastos [EC 95, de 2016] para que uma rubrica do Orçamento possa aumentar, alguma outra rubrica precisa ser reduzida — explicou.
O economista defendeu a análise criteriosa e individualizada de cada um dos 248 fundos públicos infraconstitucionais atuais, mas reconheceu que provavelmente a imensa maioria será extinta sem avaliação individualizada dos custos e benefícios de cada fundo e da conveniência de cada um deles.
De acordo com Oreiro, dos 241 fundos infraconstitucionais sujeitos a extinção, foram divulgados os patrimônios financeiros de 43 fundos, somando um valor de R$ 212,9 bilhões. Considerados os 24 fundos com patrimônio superior a R$ 300 milhões, eles concentram 93% dos recursos.
Pesquisa e inovação
O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) está entre os mais mencionados na audiência. Ele financia ações de inovação e desenvolvimento científico e tecnológico, como a infraestrutura dos laboratórios das universidades públicas, por exemplo.
Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), defendeu a manutenção da estrutura dos 16 fundos setoriais que sustentam hoje a maior parte dos recursos do FNDCT.
— Eles buscam no setor privado o investimento necessário em pesquisa e desenvolvimento. Infelizmente, nos últimos anos esse dinheiro tem sido desviado para outras finalidades ou retido como reserva de contingência, prejudicando enormemente a ciência, a tecnologia e a inovação brasileiras.
Segundo Moreira, desde 2016 instituições federais como CNPq, FNDCT e Capes têm tido o orçamento cada vez menor. No caso do FNDCT, cerca de R$ 25 bilhões foram contingenciados de 2006 a 2020. Ele destacou que isso impacta diretamente os pesquisadores brasileiros, uma vez que dois terços do fomento no CNPq têm origem no fundo.
— Os jovens brasileiros têm um grande potencial em pesquisa, mas se não tivermos infraestrutura adequada estaremos os levando a fazer pesquisa na China, na Europa e nos Estados Unidos. Os 24 parques tecnológicos brasileiros receberam recursos do fundo e uma descontinuidade disso seria 'catastrófica' para a área de inovação. É preciso descontingenciar os recursos do fundo, e não extingui-lo — frisou.
Na mesma linha, a diretora de inovação da Confederação Nacional da Indústria, Gianna Sagazio, defendeu que fundos como o FNDCT “devam ser melhorados, jamais extintos”.
Ela sustentou que numa consulta da CNI a 1,3 mil empresas na semana passada, a maioria dos empresários foi contrária ao fim dos fundos setoriais de apoio à pesquisa e inovação.
— Os recursos do FNDCT foram fundamentais para estruturar os principais parques tecnológicos, instalar incubadoras de empresas e núcleos de inovações tecnológicas — reconheceu.
O Brasil perdeu 19 posições no Índice Global de Inovação na última década e, em 2019, caiu mais duas posições, estando na 66ª posição no ranking que envolve 129 países.
— Esses índices são incoerentes com o fato de o Brasil ser a nona maior economia do mundo. É fundamental aumentar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento — alertou Gianna.
Como comparativo, ela disse que em 2017 os EUA investiram, em pesquisa e desenvolvimento, cerca de US$ 543 bilhões. A China investiu US$ 496 bilhões, a Alemanha, US$ 132 bilhões e o Brasil, US$ 41 bilhões.
Fundo Social
Já consultor aposentado da Câmara dos Deputados Paulo Cesar Lima, ex-funcionário da Petrobras na Bacia de Campos, explicou o funcionamento do Fundo Social, ligado à exploração do petróleo.
Ele relembrou a importância da Lei 12.858, de 2013 (que destinou para as áreas de educação e saúde parcela da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural).
— Ao receber dinheiro do regime de concessão, com royalites e a participação especial da União, o fundo somou recursos que chegaram a R$ 48,7 bilhões até outubro do ano passado — afirmou.
O fundo sustenta ações de educação, cultura, esporte, saúde pública, ciência e tecnologia, meio ambiente e mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Lima criticou a extinção de fundos ao dizer que modernidade é ter um fundo soberano associado a uma riqueza governamental, como é o petróleo para o país.
Outros fundos
A audiência pública desta manhã na CCJ teve outros fundos avaliados. Entre eles, o Fundo Nacional de Segurança Pública, cujo orçamento é de R$ 1,8 bilhão, com empenho de R$ 702 milhões, segundo a representante do Forum Brasileiro da Segurança Pública, Isabel Figueiredo.
Ela afirmou que embora a segurança pública tenha sido cerne do discurso de campanha do atual governo, o montante de investimento na área é “vergonhoso".
— Se com a vinculação da receita já não há muito apoio, contrariando o discurso de que é uma área prioritária, imagina sem — desabafou.
Outro fundo ameaçado de extinção é o do audiovisual (FSA), ligado ao Fundo Nacional de Cultura. Na audiência, o FSA foi defendido por Leonardo Edde, presidente do Sindicato Interestadual da Industria Audiovisual.
Edde comentou na audiência que a criação do fundo setorial, associada à criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e à Lei do audiovisual, possibilitou a retomada do crescimento do setor: o fundo opera desde 2007/2008 e, a partir de 2012, a indústria audiovisual brasileira teve salto de quase 10% ao ano.
— O fundo setorial opera com fontes de receita da sua própria atividade. Não é com dinheiro do Orçamento, nem de impostos pagos pelo cidadão — ressaltou.
A manutenção vem, na verdade, da taxa Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional). Ela é uma espécie de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre a produção, a veiculação, o licenciamento e a distribuição de obras audiovisuais com finalidade comercial. E é ela que compõe o fundo, hoje com rendimento médio de R$ 700 milhões por ano.
— Ele é um fundo de defesa da indústria brasileira — defendeu. Edde contou, ainda, que os investimentos do fundo vão para produção de cinema (35%), produção de TV (32%), distribuição e desenvolvimento de cinema (10%), entre outras rubricas.
No encontro, o senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ) também defendeu a manutenção da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), cujo objetivo é apoiar financeiramente projetos de elaboração de tecnologia, inovação e P&D (pesquisa e desenvolvimento).
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
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