Cintia Sasse e Ricardo Westin

O Congresso aprovou em 2006 uma das leis mais ousadas do mundo na proteção das mulheres contra a violência doméstica. Os senadores e deputados, porém, não deram a missão por cumprida. Nos últimos meses, percorreram o Brasil para verificar os resultados práticos da Lei Maria da Penha. A investigação, recém-concluída, revela uma realidade estarrecedora: o rigor previsto na lei não é cumprido à risca pelo poder público e, como resultado, brasileiras continuam sendo brutalmente espancadas e mortas por seus companheiros.

 

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Mulher vítima de violência refugiada com a filha numa casa-abrigo pública do DF: Lei Maria da Penha completa sete anos Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

O presidente do Senado, Renan Calheiros, entregará hoje à presidente Dilma Rousseff uma cópia do relatório final da CPI da Violência contra a Mulher — um documento de mais de mil páginas que condensa os 16 meses de investigação. Dilma estará no Congresso às 11h, convidada para a sessão solene pelos sete anos da Lei Maria da Penha.

 

Além disso, 7 dos 13 projetos apresentados pela CPI para aperfeiçoar a legislação constam da pauta de votações do Plenário do Senado.

A Lei Maria da Penha prevê a criação de delegacias, promotorias, defensorias públicas e juizados dedicados exclusivamente à violência doméstica. Esses serviços, porém, são escassos.

A CPI descobriu que cada estado tem, em média, só 19 delegacias da mulher. Na delegacia da mulher de Manaus, por exemplo, a CPI contou 4.500 inquéritos engavetados. Faltam agentes para tocá-los. Em razão do acúmulo, crimes caducam sem chegar à Justiça. Em Boa Vista, a delegacia da mulher não tem telefone.

No Brasil, boa parte dos casos de violência doméstica precisa ser denunciada em distritos policiais comuns, onde os oficiais não têm treinamento para acolher a mulher violentada. Por vezes, o depoimento é marcado para dias mais tarde — o que é considerado arriscado, já que podem voltar a ser atacadas.

 

Norma ignorada


A mulher agredida tampouco encontra amparo adequado na Justiça. O número de juizados de violência doméstica é ainda mais baixo que o de delegacias. A CPI encontrou em cada estado, em média, três juizados. Estão concentrados nas capitais. E contam com pouquíssimos juízes e funcionários. Isso tem duas consequências desastrosas. A primeira é que os processos se acumulam e as sentenças são proferidas tarde demais. Em Minas Gerais, os três juizados contabilizam juntos 58 mil processos. A segunda é que muitos casos têm de ser julgados por varas criminais comuns, que nem sempre estão preparadas para as mulheres violentadas. Há juízes que interpretam equivocadamente a Lei Maria da Penha ou a ignoram. Em 2007, o juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), escreveu numa sentença que a lei era um “conjunto de regras diabólicas” e “o mundo é e deve continuar sendo de prevalência masculina”.

— Algumas mulheres preferem ficar caladas e não denunciar seus agressores porque não confiam na rede de atendimento, acreditam que não serão protegidas. Em muitos casos, elas têm razão — diz a senadora Ana Rita (PT-ES), a relatora da CPI mista. A presidente foi a deputada Jô Moraes (PCdoB-MG).

De tempos em tempos, casos de violência contra a mulher ganham o país. Em 2000, o jornalista Pimenta Neves matou a ex-namorada Sandra Gomide, também jornalista. Em 2005, o cantor e apresentador Netinho de Paula agrediu a companheira — ela disse que foi socada no rosto; ele, que a esbofeteou. Em 2008, o ator Dado Dolabella atacou a atriz Luana Piovani, então sua namorada. Em 2010, o goleiro Bruno foi acusado de encomendar a morte da ex-amante Eliza Samudio — ele foi condenado.

Trata-se de uma “arraigadíssima tradição patriarcal”, segundo a historiadora Mary del Priore:

— Na Colônia, no Império e até nos primórdios da República, a função jurídica da mulher era ser subserviente ao marido. Da mesma forma que era dono da fazenda e dos escravos, o homem era dono da mulher. Se ela não obedecia, sofria as sanções.

A vida do Brasil colonial era regida pelas Ordenações ­Filipinas, código legal que, entre outros pontos, assegurava ao marido o direito de matar a mulher caso a flagrasse em adultério. Podia matá-la por mera suspeita de traição.

Na República, as leis continuaram reproduzindo a ideia de que o homem era superior. O Código Civil de 1916 dava à mulher casada o status de “incapaz”. Só podia trabalhar se tivesse autorização do marido.

— O Brasil de hoje não é o do passado, mas o controle do homem sobre a mulher persiste na memória social — explica a antropóloga Lia Zanotta, da Universidade de Brasília (UnB).

Não existe um perfil típico do agressor nem da agredida. A violência doméstica não tem classe social. Ocorre nos bairros nobres e nas favelas. Não tem escolaridade. Humilha tanto as pós-graduadas quanto as que mal assinam o nome. Não tem raça. Fere brancas, negras, orientais e índias.

 

Porte de arma


Ciente de que a mulher que rompe o silêncio corre risco, a Lei Maria da Penha estabelece medidas de proteção. Denunciado, o agressor pode perder o porte de arma, ter de sair de casa, ser obrigado a manter-se a certa distância da companheira ou ser preso preventivamente. Enquanto isso, corre o processo que poderá levá-lo à condenação. Para lesão corporal, a pena chega a três anos de prisão.

— Pense numa mulher que teve o braço quebrado pelo namorado e em outra que teve o braço quebrado pelo vizinho. A situação da primeira é bem mais grave. Muitas vezes, ela e o agressor vivem sob o mesmo teto. E têm ligação emocional. A tendência é que as agressões se repitam e fiquem mais brutais. Se a mulher não procurar ajuda, a situação se transformará numa espiral da qual ela não conseguirá escapar ou da qual só sairá morta — diz Ana Teresa Iamarino, uma das diretoras da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República.

Os homicídios de mulheres no Brasil (4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres) são mais epidêmicos do que na África do Sul (2,8), nos EUA (2,1), no México (2), na Argentina (1,2) e na Espanha (0,3).

A Lei Maria da Penha busca mudar comportamentos. Diante da certeza da punição, o homem pensará duas vezes antes de atacar e a mulher não hesitará em denunciar. A ONU considera a lei exemplar para o mundo. O que falta, como constatou a CPI, é tirá-la do papel e colocá-la integralmente em prática.


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