Ricardo Westin

A professora fala para a turma de dez alunos. Universidade de Brasília (UnB), mestrado em linguística. Uma parte deles presta atenção à explicação que ela dá. Outra parte dos estudantes, ao contrário, parece ignorá-la. Eles não desgrudam os olhos da jovem que, sem pronunciar uma palavra, freneticamente mexe os braços e as mãos ao lado da professora.

Os alunos do segundo grupo são surdos. A jovem que gesticula é uma intérprete da Libras, sigla de língua brasileira de sinais. É ela quem traduz para a Libras todas as explicações (em português) da professora. E é ela quem traduz para o português as eventuais dúvidas e comentários (em Libras) dos estudantes surdos.

Até a virada do século, aulas desse tipo eram praticamente inconcebíveis no Brasil. Elas vêm se tornando cada vez mais corriqueiras de dez anos para cá.

O que permitiu essa mudança foi uma lei de 2002, assinada por Fernando Henrique Cardoso, que finalmente deu à Libras o status de “meio legal de comunicação” no país.

 

Dramático

Na Libras, cada palavra é “dita” por meio de um sinal particular com as mãos.

“Deus” é representado pelo dedo indicador apontando para o alto. “Obrigado” lembra o ato de tirar o chapéu da cabeça. Para “dizer” o verbo “amar”, é necessário fechar a mão na frente do coração.

A língua dos sinais exige um mínimo de talento dramático. Para pedir “desculpa”, é preciso apoiar o queixo sobre a mão fechada, erguer o dedo mínimo e o polegar e — importantíssimo — fazer cara de sincero arrependimento.

As letras do alfabeto também têm seus sinais. Mas, na Libras, só se soletra uma palavra quando ela não conta com um sinal próprio, como os nomes de pessoas.

— Sempre que tenho uma pausa, alongo os braços, as mãos e o pescoço. Existe um desgaste físico quando se traduz uma língua oral (português) para uma língua espaço-visual (Libras) — explica Hayane Leal, a intérprete daquela turma de mestrado da UnB.

Cada país tem sua própria língua de sinais. A do Brasil não é igual à de Portugal (a língua gestual portuguesa), por exemplo.

A brasileira remonta a meados do século 19, quando dom Pedro II autorizou o francês Eduard Huet a criar no Rio de Janeiro o Colégio Nacional para Surdos-Mudos. A Libras, por isso, tem certo “sotaque” francês.

Aquele colégio pioneiro existe até hoje e é mantido pelo Ministério da Educação, com o nome de Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines).

De acordo com o Censo de 2010, vivem no Brasil 2,1 milhões de pessoas com deficiência auditiva severa — pouco mais de 1% da população. O Censo, porém, não lhes perguntou se usam a Libras para se comunicar.

A lei que dez anos atrás reconheceu a língua de sinais no Brasil serviu de alicerce para uma série de políticas públicas.

Em 2005, Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto obrigando todas as universidades e colégios federais a manter um intérprete nas salas de aula em que houver aluno surdo. É o que faz a Universidade de Brasília.

O intérprete de Libras é tão imprescindível para o aluno surdo quanto a escola com rampas é importante para o cadeirante e os livros em braile são fundamentais para os cegos.

 

Assistencialismo

O mesmo decreto de 2005 estabeleceu que os cursos de formação de professores (pedagogia, letras, matemática etc.) e os de fonoaudiologia, tanto públicos quanto privados, devem incluir lições de Libras em suas grades curriculares.

Segundo o Ministério da Educação, 700 cursos de formação de professores e 60 de fonoaudiologia cumprem a determinação. Além da educação, o decreto também fala dos direitos do surdos à saúde.

— Antes, tinha-se uma visão assistencialista. O surdo tinha de ser mantido em casa e dependente da família. Com as garantias da nova legislação, ele passou a ver maiores possibilidades de construir seu próprio caminho, assumir responsabilidades, ser um cidadão ativo na sociedade — afirma Marcos Antônio de Sousa Júnior, diretor da regional Minas Gerais da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis-MG).

Outros avanços notáveis ocorreram no Brasil na última década. Mais de 40 universidades federais já abriram o curso de tradução e intérprete de Libras. O Ministério da Educação criou um exame oficial de proficiência nessa língua. Escolas de idiomas passaram a ensinar a língua dos surdos para alunos ouvintes.

Em igrejas de diversas denominações, já é relativamente comum ver intérpretes no altar traduzindo as palavras de padres e pastores. Prefeituras como as de Vitória e Guarulhos (SP) ensinam a Libras a seus guardas municipais. Há até auto-escolas especializadas em ensinar os surdos a dirigir.

No Senado, quatro intérpretes traduzem do português para a Libras, em tempo real, as audiências públicas realizadas pelas comissões de Direito Humanos e Legislação Participativa (CDH) e Assuntos Sociais (CAS) e as sessões solenes do Plenário.

Nas visitas guiadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, os surdos podem ser acompanhados por um desses intérpretes.

 

Oralização

Dois projetos de lei em ­tramitação no Congresso propõem aumentar o alcance da Libras.

A Câmara dos Deputados analisa um projeto do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) que obriga todos os colégios do país a utilizar a língua dos sinais com seus estudantes surdos 
(PLS 14/07).

O Senado estuda uma proposta da ex-senadora Ideli Salvatti que transforma a Libras em disciplina obrigatória nas escolas públicas e particulares (PLS 180/04).

Assim, o Brasil caminha para enterrar de vez a tendência que existia até pouco tempo atrás de “oralizar” os surdos à força, isto é, fazer com que eles aprendessem, a todo custo, a falar e a ler os lábios. Apesar de saber o português ser importante, nem todos têm aptidão para a oralidade.

— Estudei num colégio onde as freiras batiam com palmatória e amarravam as mãos dos surdos que eram flagrados se comunicando com sinais — lembra Ziza Guimarães, que hoje tem 35 anos e trabalha como professora de matemática e física de alunos surdos numa escola pública do Distrito Federal.


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