Persistência das agressões e assassinatos e reduzido tamanho da rede de apoio às vítimas ainda preocupam defensores da lei. Foto: Juca Varella

 

O Brasil comemora neste mês os dez anos da Lei Maria da Penha, criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A norma moldou um conjunto de soluções que ajudam as mulheres a reconhecer a situação de violência, denunciar e exigir a punição do agressor. Mas ainda falta muito para que a realidade fique à altura da lei.

 Uma das mudanças que a legislação buscou promover foi a mentalidade, ainda não totalmente superada, de que a violência dentro de casa só diz respeito ao casal ou à família. Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340 teve o mérito de trazer a questão para a esfera pública.

 Por medo ou vergonha, muitas mulheres ainda se calam frente às ameaças e agressões vindas de quem muitas vezes ocupa lugar especial em sua vida afetiva. Agora, com apoio institucional, ficou mais fácil romper com a opressão e construir um futuro diferente. Além disso, qualquer pessoa pode denunciar.

A partir da lei, como destaca a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), a violência contra a mulher ganhou status diferenciado, com tratamento que se espera para uma real questão de direitos humanos. Para ela, que comanda a Procuradoria da Mulher do Senado, o quadro anterior era de negligência.

 — A Lei Maria da Penha ajudou a retirar a violência doméstica, uma violência de gênero, da situação de invisibilidade. A questão passou a ser uma prioridade de Estado — avalia.

 Abrigo

 O texto define o que são condutas de violência doméstica. O conceito engloba as agressões físicas, que deixam marcas no corpo, mas também a violência psicológica, sexual, patrimonial e moral.

 Não se prende aos vínculos estritamente familiares, alcançando todo tipo de relacionamento íntimo e pessoal, até mesmo quando os laços já se encontrem rompidos. Assim, deixa claro que as punições podem alcançar ex-maridos, namorados ou mesmo amigos e vizinhos, sempre que houver motivação de gênero.

 

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A lei ainda tornou mais rigorosa a punição por lesão corporal na violência doméstica. Nesse caso, a pena máxima foi ampliada de um para até três anos de prisão, sem permitir ao agressor o benefício das penas pecuniárias ou medidas alternativas, como prestação de serviços comunitários. Com recente inovação no texto, foi tipificado o feminicídio, o assassinato de mulher por motivação de gênero, um crime hediondo.

 O Estado também se viu obrigado a adotar um conjunto de políticas de proteção. A começar pela previsão de aparato de amparo judicial e de segurança, incluindo juizados e delegacias especializadas em violência doméstica, além de núcleos específicos nas defensorias e promotorias públicas.

 As mulheres que se encorajam a denunciar os agressores contam ainda com medidas que podem minimizar os riscos de retaliações e novas ameaças. O juiz pode retirar do acusado o direito ao porte de arma, obrigá-lo a deixar a casa e determinar que se mantenha à distância da vítima. Se necessário, pode determinar a prisão preventiva do agressor.

 Se há risco de vida iminente, a vítima poderá ser encaminhada para casas-abrigo, locais que oferecem moradia protegida e atendimento integral às mulheres, acompanhada ou não dos filhos.

 — No caso da Lei Maria da Penha, tivemos oportunidade de perceber um fenômeno incomum: o Direito antecipar-se à evolução de uma sociedade ainda machista, sendo, por isso, um importante veículo de transformação social — constata Mila Dumaresque, consultora legislativa do Senado.

 Banalização

 Mesmo com a vigência da lei, os níveis de violência doméstica ainda são alarmantes no país. Em 2014, o serviço Disque 180 realizou perto de 490 mil atendimentos. Quase 53 mil foram relatos de violência contra a mulher. Em mais de 80% dos casos, as agressões haviam sido cometidas por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo.

 O Mapa da Violência de 2015 fornece os dados mais atuais sobre os homicídios, o extremo da violência intrafamiliar. Entre 1980 e 2013, foram registrados 106.093 assassinatos de mulheres no país. Somente em 2013, último ano com dados disponíveis, foram 4.762 vítimas, uma média de 13 por dia.

Não há dados específicos, mas a equipe responsável pelo estudo estima que 50,3% do total dos homicídios ocorridos em 2013 foram cometidos por um familiar direto da vítima. Ou seja, 2.394 casos, ou aproximadamente 7 por dia.

 Parceiros e ex-parceiros são identificados como responsáveis, isoladamente, pela maior parcela desses crimes: 1.583 registros, o que representa 33,2% do total dos feminícidios.

 Impunidade

 A banalização das experiências de violência contra a mulher sempre favoreceu a impunidade, mesmo quando as agredidas se movimentavam para denunciar o caso e levar adiante um processo. O comum era os episódios serem jogados na vala comum dos casos de menor potencial ofensivo, como destaca a pesquisadora Glaucia Ribeiro Starling Diniz.

 Nas audiências de conciliação, não raro as mulheres eram dissuadidas da busca por solução judicial. Se o processo era instaurado, o destino era se arrastar anos a fio, preso às malhas do sistema judiciário. Foi o caso da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, a quem a lei deve seu nome. Alvo de duas tentativas de assassinato por parte do então marido, ela esperou quase 20 anos para vê-lo preso.

 

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Na busca por justiça, Maria da Penha protocolou uma denúncia contra o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No relatório, de 2001, a comissão reconheceu a responsabilidade do país pela violação dos direitos dela. Entre as recomendações, cobrou a criação de lei específica para o enfrentamento à violência doméstica.

 Para a senadora Simone Tebet (PMDB-MS), que preside a Comissão Mista de Combate à Violência contra a Mulher, hoje o país dispõe de legislação exemplar. Não à toa, lembra, a Lei Maria da Penha foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores do mundo no campo a que serve.

 Simone reconhece, contudo, que é preciso fazer muito mais para que o país fique livre da mancha que a violência doméstica ainda projeta sobre a vida das brasileiras. — É importante dizer que ainda há uma dívida a ser resgatada — diz, defendendo que o caminho é a aplicação eficaz dos mecanismos da lei festejada agora por seu primeiro decênio


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