Liberação de porte de armas preocupa debatedores na CDH

Da Redação | 29/05/2019, 15h29

O alcance e os possíveis danos do decreto do presidente Jair Bolsonaro que flexibiliza as regras para aquisição, cadastro, registro, posse, porte e comercialização de armas de fogo e munições, foram discutidos nesta quarta-feira (29) em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Os debatedores, em geral, foram contrários à flexibilização, assim como os senadores Eduardo Girão (Pode-CE), Paulo Paim (PT-RS) e Styvenson Valentim (Pode-RN).

— Deixar as pessoas andarem com arma é o mesmo que decretar a falência completa e terceirizar ao cidadão uma responsabilidade de segurança que cabe ao Estado — disse Girão.

Para o senador, as armas do "cidadão de bem" vão abastecer o crime, já que a pessoa sem preparo para operar a arma, quando surpreendida por uma ameaça, vai tentar usá-la.

— O bandido vai pegar a arma dele. Vai ser como tirar o pirulito da boca de uma criança — comparou.

Outra preocupação de Girão é a possibilidade de mortes de crianças e adolescentes. Ele contou que, no tempo em que morou nos Estados Unidos, a filha vivenciou o atentado na escola Stoneman Douglas, em Parkland (Flórida) e viu 17 pessoas serem mortas. Até hoje a jovem faz tratamento para tentar superar o trauma.

— Eu não desejo o que nós passamos para ninguém — desabafou Girão.

A liberação da posse de armas nos Estados Unidos e do porte em alguns estados americanos foi um exemplo usado pelos debatedores para prever o que pode acontecer no Brasil.

Falando em nome da International Police Association (IPA), o policial federal Joel Mazo citou que nos EUA o número de crimes contra a população em estados desarmados seria três vezes superior ao dos estados em que o porte de armas é liberado.

Mazo disse que o comportamento do criminoso na sociedade armada e na desarmada é muito diferente. De acordo com ele, no primeiro caso ele está atento à possibilidade de entrar em uma condição de igualdade com a vítima, que pode ou não estar armada. Mazo sustentou que a quase certeza de que a vítima está desarmada leva a mais crimes.

Ele defende, contudo, o controle da munição e dos calibres, para que o cidadão não tenha o mesmo tipo de armamento das forças policiais.

Felippe Angeli, representante do Instituto Sou da Paz, questionou os dados de Mazo. Ele contou que nos Estados Unidos alguns estudos foram revistos e mostram que os estados em que se permite o porte de armas o número de crimes violentos aumentou.

Eduardo Girão também questionou os dados de Mazo usando informações do Centro de Política sobre Violência dos Estados Unidos, segundo o qual para cada tentativa de defesa armada bem sucedida, 32 dão errado e a vítima morre. Ele também contestou a ideia de que a arma em casa dá segurança ao morador.

— Se o ladrão entra na sua casa e vasculha e acha a sua arma, ele vai entender que ela está ali para matá-lo, então a agressividade dele contra o dono da arma é aumentada.

Nazareno Feitosa, do Movimento Vida em Paz, concordou com Girão e lembrou que a arma para o bandido é muito atrativa, porque, além de ser instrumento de trabalho, vale dinheiro rápido no mercado ilegal.

— Ter uma arma em casa chama o bandido para assaltar — destacou.

Para Feitosa, que é policial federal, o problema do Brasil não é a ausência de armas, é ausência de segurança pública.

— Nós já somos o país que mais mata com arma de fogo. E 70% dos homicídios são praticados por gente de bem, que briga no trânsito, no bar, na família, que está sob efeito de álcool e que, só porque estão armados, matam e morrem.

Liberação

A ideia de que mais armas circulando leva ao aumento da violência foi frisada por Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ela apontou estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) segundo os quais existe uma relação proporcional entre as variáveis arma e homicídio: 1% a mais de armas de fogo transitando numa sociedade implicam 2% a mais no índice de homicídios.

Felippe Angeli complementou dizendo que já existe consenso nacional e internacional de que o aumento na circulação das armas de fogo está correlacionado diretamente ao aumento da violência letal.

— O debate sobre armas não é sobre o viés de direita ou de esquerda, ou de gostar ou não gostar de arma de fogo, do direito ou não à legítima defesa do cidadão, que é óbvio. O fato é que a arma do crime é a arma do cidadão de bem. Geralmente é a que mata as pessoas na rua.

Angeli criticou a legislação que admite a recarga de cartuchos e a falta de controle de munições. Ele classificou como "loucura" o fato de um policial poder usar munição particular sem rastreamento em armamento que pertence ao Estado.

O decreto

Representante da Rede Justiça Criminal, que agrega oito organizações de direitos humanos, o advogado Leonardo Santana rebateu pontos do decreto presidencial que admitem a presunção da necessidade do uso de armas para 19 categorias profissionais. Entre elas estão detentores de mandatos eletivos, advogados, caminhoneiros, conselheiros tutelares, caçadores, colecionadores e atiradores esportivos.

— Ao permitir que advogados tenham armas, o decreto atinge mais de 1,1 milhão de advogados registrados pela Ordem dos Advogados do Brasil — exemplificou.

Leonardo Santana questionou o alto número de armas permitido, por exemplo, para caçadores (30 armas) e atiradores (60 armas). Também criticou o acesso a munições, pois os agentes de segurança pública podem comprar o quanto quiserem, sem limites, se declararem que é para uso institucional.

— Isso é um contrassenso porque a compra é de competência do Estado. Inclusive as munições compradas por instituições de segurança pública precisam ter um código de lote para rastreamento.

Fragilidades

Leonardo Santana contestou a mudança, no decreto, sobre a obrigatoriedade de comunicação da compra de armamento, antes feita pelo vendedor. Agora o comprador deve comunicar os órgãos de segurança em até sete dias após a compra, abrindo, na sua opinião, a possibilidade de descaminho para uso ilícito.

O prazo de revisão do porte de armas, que subiu de cinco para dez anos, foi, da mesma forma, questionado por Santana. De acordo com o advogado, dez anos é muito tempo, até porque algumas das carreiras apontadas, como as eletivas, têm mandatos temporários menores.

— O advogado pode perder a carteira da OAB, a pessoa pode deixar de ser político ou conselheiro tutelar, a área rural pode virar área urbana, a condição psicológica pode ser alterada. Se a licença para dirigir tem 5 anos, por que a de armas tem o dobro?

Outro erro, na visão do representante da Rede Justiça Criminal, é que o decreto abre a possibilidade do porte e da posse de armas, mas não há previsão de aumento do pessoal e dos equipamentos da Polícia Federal e do Exército para controlar o comércio de armamentos. Leonardo criticou a mudança da competência para regulamentar o transporte de armas em aeronaves para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) — até então responsabilidade dos ministérios da Justiça e da Defesa.

O senador Styvenson Valentim reforçou a lista de reclamações de Leonardo Santana. O parlamentar afirmou que a comprovação de capacidade técnica para operar armas é relativa, porque o cidadão pode saber atirar, mas não ter a capacidade psicológica, ou estar sob influência de álcool ou drogas.

— Tem muito policial sem condição de operar arma, mas não fazem testes básicos. Esse decreto é frouxo, o Estatuto do Desarmamento é fraco. Tem de ser mais rígido o controle para quem quer ter arma. Não é só saber atirar. É ter controle psicológico. Nem na polícia isso está sendo aferido, como garantir que a população tem esse controle? — questionou.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)