Marcio Maturana

 

Em vez de cadeia, “ergástulo público”. No lugar de viúvo, “consorte supérstite”. E cheque não, mas sim “cártula chéquica”. Palavras do nosso idioma estranhas e desconhecidas, entrecortadas por expressões e citações em latim, uma língua morta, tornam incompreensíveis muitas sentenças judiciais e outros textos do Direito. O costume de inviabilizar a comunicação existe não só entre juízes, mas também entre advogados e outros profissionais da área. A orientação pela informação clara e compreensível, porém, cresce bastante entre os próprios magistrados e pode ser “oficializada” no projeto de novo Código de Processo Civil, que deve voltar ao Senado em agosto, após alterações na Câmara dos Deputados.

A Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) já fez uma intensa campanha a favor da simplificação da linguagem jurídica. A partir de 2005, foram feitos concursos para estudantes e magistrados, palestras com o professor Pasquale Cipro Neto e distribuição de uma cartilha com glossário de expressões jurídicas. A iniciativa foi motivada depois que uma pesquisa do Ibope encomendada pela própria AMB revelou que a população brasileira se incomodava não só com a lentidão dos processos na Justiça, mas também com a linguagem hermética, prolixa e pedante.

— Nossa campanha de 2005 deu ótimos frutos. A maioria dos juízes que não priorizava a clareza nas sentenças corrigiu alguns excessos. Até hoje a cartilha que preparamos é buscada, mas não foi mais atualizada. Talvez a AMB volte a implementar as ações da campanha contra o “juridiquês” no ano que vem — disse o desembargador Nelson Calandra, presidente da AMB.

 

Quatro anos em vão


No Congresso, a iniciativa mais direta contra o “juridiquês” foi o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 7.448/06, apresentado pela então deputada federal Maria do Rosário.

O texto determinava sentenças em ­linguagem simples, clara e direta. Foi aprovado pela Câmara em 2010, através de um substitutivo de José Genoino, mas quando chegou ao Senado, em dezembro de 2010, não pôde tramitar porque a Casa havia acabado de aprovar o projeto de novo Código de Processo Civil, que está sendo atualmente analisado pelos deputados.

A solução, para que esses quatro anos de discussão parlamentar não sejam perdidos, seria a simplificação da linguagem jurídica ser novamente aprovada na Câmara, desta vez já no contexto da reforma do Código de Processo Civil, em vez de uma simples alteração. O anteprojeto dessa reforma foi elaborado para o Senado por uma comissão de juristas com o objetivo declarado de “atender aos anseios dos cidadãos no sentido de garantir um novo Código de Processo Civil que privilegie a simplicidade da linguagem e da ação processual, a celeridade do processo e a efetividade do resultado da ação”, segundo texto do próprio anteprojeto.

Na Câmara, o sub-relator do projeto responsável pela parte de conhecimento das sentenças, deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), admite que seu relatório não explicita a exigência de simplificação da linguagem na forma como pretendia a então deputada Maria do Rosário. No entanto, ele garante que seu texto tira todos os entraves e segue o que a antiga proposta defendia: a busca pela efetividade nos processos.

— Acredito que a simplificação da linguagem não precisa estar determinada em lei, até porque não é mais tão problema. Na prática, os profissionais da Justiça consideram que a linguagem jurídica já está mais harmonizada. Constatei isso nas reuniões que fiz com representantes de faculdades de Direito, da OAB, do Ministério Público, da Defensoria e da Promotoria — ­afirmou o deputado.

No Senado, a orientação pela simplificação da linguagem jurídica deve ganhar uma defesa mais enfática no projeto de Código de Proceso Penal. Pedro Taques (PDT-MT), que integra a Comissão de Constituição e Justiça e conhece bem o “idioma” do Direito porque é professor de Direito e ex-procurador da República, argumenta que a necessidade de termos mais técnicos não impede a clareza do texto para que todo cidadão entenda. Na opinião dele, não é necessário chegar ao coloquialismo, mas também não se pode usar uma argumentação ininteligível.

— A linguagem pernóstica muitas vezes usada na Justiça é na verdade um símbolo que busca afastar o cidadão de quem exerce o poder. A democratização da palavra de forma nenhuma afetará o respeito da população ao Poder Judiciário — disse o senador.

Mais do que servir como uma ferramenta para afastar e dominar a situação, como disse Taques, os termos incompreensíveis num raciocínio tortuoso acabam agredindo a própria Constituição federal, lei máxima do país, na opinião do juiz André Nicolitt, que também atua como professor de Direito na Universidade Cândido Mendes e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

— A linguagem rebuscada e inacessível viola os princípios constitucionais do acesso à Justiça e da publicidade. É um exercício de poder, uma violência simbólica para mostrar erudição e ­autoridade. Numa cultura jurídica menos autoritária, teremos uma linguagem mais acessível. O uso de termos incompreensíveis ao cidadão comum não é uma prática apenas de magistrados, pois muitos advogados também fazem isso. Sem bons argumentos, tentam impressionar com jargões e frases de efeito. Mas tudo não passa de uma cortina de fumaça: muito barulho por nada — afirmou o juiz.

 

Dilema nas faculdades


Apesar de muitos dos atuais jovens profissionais de Direito defenderem uma linguagem mais clara nos tribunais, Nicolitt não percebe nas faculdades onde dá aulas nenhuma inquietação sobre esse problema entre a futura geração de advogados e juízes.

— Os alunos chegam muito passivos, na expectativa de aprender, e acabam aceitando o que lhes é apresentado. Na formação dos profissionais de Direito, esse costume é ruim porque cria um mundo distante da realidade. Parece que todo mundo vive ali, dentro daqueles limites e sem referenciais com o mundo exterior. Isso ainda é bem forte no ambiente acadêmico — lamentou o professor.

Os novos livros de Direito são um caminho para mudar esse cenário, segundo Nicolitt. Ele, que é autor de títulos como Manual de Processo Penal e Novo Processo Penal Cautelar, garante que a literatura jurídica atual segue a tendência de se tornar mais objetiva, até por uma exigência do mercado. A ­expectativa é que esses novos textos mais claros “façam a cabeça” dos futuros profissionais.

Mesmo os defensores de textos jurídicos mais claros e diretos, porém, ressaltam que o objetivo não é chegar, como disse Taques, a algo próximo do coloquialismo, da forma que acontece nos textos jornalísticos. A linguagem técnica faz parte do diálogo até de outras categorias profissionais, como médicos ou engenheiros.

— Nas sentenças, às vezes é inevitável usar alguns termos em latim, porque muitos princípios vieram do direito romano e não há tradução fidedigna. Afinal, nas sentenças você não se comunica apenas com o público leigo, mas também com outros tribunais e com advogados — argumentou o juiz Nicolitt.

Ele acrescenta, ainda, que até algumas palavras e expressões em latim já não criam dificuldade de comunicação da Justiça com o público leigo. Habeas corpus, por exemplo, todo mundo sabe o que significa e está presente dessa forma, sem explicação ou tradução, até na Constituição federal.

 

Sentenças poéticas


No caso das sentenças, existe ainda a questão do estilo pessoal, já que o juiz assina o documento.

— Concordo que precisamos aprimorar a comunicação, mas temos que respeitar a redação da setença como o momento daquele profissional que a assina. Até jornalistas têm estilos diferentes — comparou Calandra, da AMB.

O desembargador lembra que muitos juízes preferem apresentar um estilo mais literário. Não é ­incomum que algumas sentenças sejam redigidas até de forma poética, com versos. Conjugando bom humor e seriedade, Calandra afirmou que esse dom criativo poderá ser exercido mais apropriadamente pelos juízes no concurso literário que a AMB vai lançar em novembro, durante o 21º Congresso Brasileiro de Magistrados, no Pará.

O bom humor contra o “juridiquês” também está presente no artigo que o ex-presidente da AMB, desembargador Rodrigo Collaço, escreveu aos juízes em 2005 na Tribuna do Direito para defender a simplificação da linguagem jurídica. O primeiro parágrafo é assim:

“O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos frequentadores do átrio forense. Ad excepcionem o instrumento do remédio heróico e o jus laboralis, onde o jus postulandi sobeja em beneplácito do paciente (impetrante) e do obreiro. Hodiernamente, no mesmo diapasão, elencam-se os empreendimentos in judicium specialis, curiosamente primando pelo rebuscamento, ao revés do perseguido em sua prima gênese”.


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