Foto: Pedro França/Agência SenadoConsuma menos gordura, coma tantas porções de carboidratos e não passe de 2 mil calorias diárias. As clássicas recomendações dos nutricionistas estão com os dias contados. O Ministério da Saúde acaba de lançar uma cartilha que promete revolucionar a forma como o brasileiro vê a alimentação. Em vez de classificá-los simplesmente como carboidratos, proteínas e lipídeos, o novo Guia Alimentar para a População Brasileira faz uma divisão entre alimentos naturais, processados e ultraprocessados. É nisso que as pessoas devem prestar atenção na hora de escolher o que vão pôr no prato.

 

Nem todo alimento de peixe, por exemplo, é saudável. O fresco é. Contém boas doses de proteína, vitaminas e minerais. O atum e a sardinha em lata estão um degrau abaixo. Eles recebem da indústria altas quantidades de sal e óleo para serem conservados. Apesar de manter parte dos nutrientes, o processamento altera o alimento original: o óleo aumenta a densidade calórica do peixe e o excesso de sódio é associado a doenças do coração. O peixe empanado já é outra história. Para fazer os nuggets, a indústria usa gordura vegetal hidrogenada, corantes, realçadores de sabor, ingredientes prejudiciais à saúde. São tantas adições, que, quando o alimento é ultraprocessado, não sobra praticamente nada do original — apenas o nome, o que dá uma falsa impressão a quem consome o produto.

 

O mesmo raciocínio vale para leite, queijo e bebida láctea; milho verde, em conserva e cereal matinal; trigo (em farinha ou em grão), pão caseiro e pão de forma (inclusive o integral). Para manter a saúde, a regra de ouro do guia é priorizar os alimentos naturais ou minimamente processados, como o tradicional arroz com feijão. Óleos, sal e açúcar, com moderação, temperam sem alterar a qualidade nutricional do prato. As conservas, os queijos e os pães artesanais entram em pequenas quantidades, para compor pratos baseados em alimentos frescos. Já produtos como lasanha pronta, macarrão instantâneo e embutidos devem ser evitados.

 

Ricos em açúcares, gorduras, com teor elevado de sódio, pouca fibra e alta densidade energética, os ultraprocessados têm uma composição nutricional desbalanceada. Estão diretamente relacionados à obesidade e a outras doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e vários tipos de câncer.

 

— Essa abordagem que deixa claro o quanto os produtos ultraprocessados não são saudáveis é inédita — afirma Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade de Brasília (UnB).

 

Não bastam nutrientes

 

Preocupados com o avanço da obesidade, os especialistas perceberam que não bastava só orientar ingerir mais ou menos carboidratos, proteínas, gorduras. Até porque isso pode levar a um pensamento errado de que basta consumir qualquer produto que tenha os nutrientes para estar bem alimentado.

 

Hoje é fácil encontrar embalagens de bebidas lácteas, achocolatados e barrinhas de cereais anunciando vitaminas, minerais e fibras. Esses nutrientes, porém, não têm os mesmos efeitos do que os encontrados, por exemplo, numa maçã. É o alimento em si — com toda a sinergia dos seus compostos — que faz a diferença para a saúde, e não o nutriente isolado.

 

— É comprovado que os nutrientes adicionados pela indústria não reproduzem os mesmos efeitos que os de alimentos in natura. Eles podem até ser danosos — ressalta Maria Laura Louzada, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo, que participou do projeto.

 

Os industrializados, porém, estão cada dia mais presentes na mesa nacional. Por isso, a nova classificação do guia — que não coloca mais no mesmo grupo o arroz e o cereal matinal, por exemplo — ganha importância.

 

O feijão, segundo dados recentes do IBGE, ainda é o alimento preferido dos brasileiros, mas vem perdendo espaço dos anos 70 para cá. E não só ele. Pesquisas mostram que alimentos tradicionais, como arroz, carne, leite, ovos, tiveram um decréscimo intenso. Em compensação, refrigerante, salsicha, sorvetes e comida pronta congelada começaram a encher a geladeira das famílias.

 

Cerca de um quarto das crianças de 5 a 10 anos comem biscoitos recheados, balas e doces praticamente todo dia, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2009, do IBGE. O refrigerante é outra preferência nacional: 23,3% dos brasileiros tomam a bebida, ao menos, cinco vezes por semana. Por outro lado, só 26,3% comem a quantidade adequada de hortaliças e frutas.

 

Um dado interessante é que a compra de sal, açúcar e óleo, ingredientes básicos para cozinhar, também reduziu. Isso é um péssimo sinal. Mostra é que estamos parando de comer comida de verdade. Os ultraprocessados estão tomando o lugar dos alimentos tradicionais. E o preço não justifica a troca: no Brasil, ainda é mais barato preparar refeições em casa que consumir produtos prontos. Na Inglaterra, por exemplo, isso não acontece.

 

É nos países de renda baixa e média que os ultraprocessados encontram mais terreno para crescer. No Brasil, saltaram de menos de 20% nos anos 1980 para, em 2009, 28% do total das calorias ingeridas. Bem abaixo, ainda, dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Nesses países, o índice ultrapassa os 50%.

 

Com 70% ainda de calorias vindas de alimentos frescos, o Brasil tem uma janela de oportunidade para reverter o quadro:

 

— Os países que têm uma cultura culinária mais forte, como Brasil e França, têm menos uso hoje de industrializados. A força da alimentação tradicional é uma das barreiras para frear essa transição — afirma Maria Laura.

 

Cultura à mesa

 

Com linguagem fácil, o novo guia, elaborado em parceria com o Nupens (USP) e com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), pretende alcançar toda a população, e não só os profissionais da saúde. O texto está disponível na internet e os 60 mil exemplares impressos vão para hospitais e escolas. Segundo o Ministério da Saúde, o próximo passo é desenvolver estratégias para divulgar o conteúdo, entre elas vídeos e cursos de autoaprendizagem.

 

Outra originalidade do guia é que ele valoriza a cultura culinária de todas as regiões. Fala de comida caseira, e não só de alimentos isolados. Essa novidade brasileira tem gerado repercussão internacional.

 

Um dos mais importantes sites americanos de notícias, o Vox, classificou o guia brasileiro como o melhor do mundo: “Eles não agrupam os alimentos em grupos. Em vez disso, focam em refeições e estimulam a cozinhar em casa”. Michael Pollan, autor de livros como Em Defesa da Comida, classificou o guia como radical. Marion Nestlé, professora da New York University, elogiou o texto por ser baseado em comida. E o jornal da Associação Mundial de Nutrição em Saúde Pública (WPHNA, na sigla em inglês) destacou, na edição de dezembro, o foco em refeições e nas dimensões sociais e culturais da alimentação.

 

O guia mostra que é possível ter uma alimentação saudável seguindo a tradição da cozinha brasileira. As recomendações foram baseadas no que comem no dia a dia os 20% de brasileiros que, segundo a POF 2009, mantêm hábitos alimentares tradicionais. Entre os exemplos, café com leite, tapioca, cuscuz, a dupla arroz com feijão, farinha de mandioca, angu, pernil, jiló, abóbora e até feijoada.

 

— Tem uma sabedoria na cultura. Tanto na comida quanto nas festas e religiões — diz Sônia Hirsch, jornalista e escritora de 19 livros sobre alimentação e saúde, como Meditando na Cozinha.

 

Em um dos capítulos, o guia reforça que essa sabedoria está presente também quando se combinam num prato alimentos típicos do país. Por isso, preparar uma refeição com arroz, feijão, carne e mandioca, por exemplo, é bem diferente — para a saúde, a cultura, a sociedade — do que comprar lasanha congelada.

 

— É importante manter uma relação verdadeira com a comida, porque o corpo é de verdade, a mente é de verdade. E comida de verdade traz benefícios inegáveis à saúde, porque ela não tem só nutrientes, tem energia também — destaca Sônia.

 

Foto: Divulgação


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