Universidade de Brasília foi a primeira federal a adotar, 
em 2003, as cotas para estudantes negros, sistema que virou
política oficial do governo, mas ainda é contestado em
ação no Supremo

Pedro Pincer

Dois anos após a entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial, representantes do movimento negro avaliam que houve avanços. No entanto, cobram mais efetividade na adoção de políticas e ações para combater a discriminação, defender direitos e promover oportunidades iguais.

Depois de tramitar por quase uma década no Congresso, o estatuto, com 65 artigos, entrou em vigor em outubro de 2010, mas ainda tem pontos que precisam de regulamentação. Um levantamento desses itens está sendo concluído pelo governo.

Para uma das coordenadoras da organização não governamental (ONG) Criola, Lúcia Xavier, o principal ganho trazido pelo estatuto foi a consolidação de políticas voltadas aos negros e a responsabilização do Estado pelo cumprimento das ações.

— O estatuto retirou do contexto temporário algumas políticas que antes eram realizadas esporadicamente, conforme a vontade dos governos — disse.

Ela acredita que a definição de diretrizes garantiu uma “fonte jurídica segura” para que os governos tomem medidas mais efetivas.

Na saúde, o documento estabelece, entre outras ­responsabilidades, que é dever do poder público garantir que “o segmento da população negra vinculado aos seguros privados de saúde seja tratado sem discriminação”. Prevê ainda maior participação dos movimentos sociais em defesa da saúde dos negros por meio do controle social do Sistema Único de Saúde (SUS).

Lúcia Xavier defendeu, no entanto, avanços mais concretos no reconhecimento das terras quilombolas e nas políticas para a juventude negra.

Lentidão

O conselheiro estratégico do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, Ivanir dos Santos, também considera o estatuto um “importante marco legal”, entretanto, lamenta a lentidão com que os efeitos são percebidos.

Ele enfatizou que o maior avanço registrado durante o período de vigência do texto foi justamente um ponto retirado do documento durante a tramitação no Congresso: a Lei de Cotas, regulamentada pelo Decreto 7.824/12, publicado em 11 de outubro no Diário Oficial da União.

Para a secretária de Políticas das Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Silvany Euclenio, o período de vigência do estatuto é curto para mensurar o impacto gerado por ele. Mesmo assim, ela destacou o impulso às ações afirmativas para reverter as desigualdades.

— Você tem o governo se comprometendo mais com essa pauta — disse.

Autor do estatuto, o senador Paulo Paim (PT-RS) avaliou que o documento está cumprindo seu principal papel, que é “assegurar o princípio maior das políticas afirmativas”.

Para ele, a Lei de Cotas, que reserva no mínimo metade das vagas em universidades e institutos federais a estudantes que frequentaram todo o ensino médio em escolas públicas, com recorte de renda e de raça, é uma consequência desse movimento.

— O Supremo [Tribunal Federal] reconheceu que as cotas são legais com base no princípio do próprio estatuto e da Constituição federal.

O senador também defendeu maior avanço na regulamentação, embora tenha ressaltado que “90% de seu conteúdo são autoaplicáveis”.Entre os pontos ainda sem plena aplicação, ele citou a inclusão do ensino da história e da cultura afro-brasileiras nas escolas do país.

Novas medidas discriminam para integrar

Cotas raciais são uma demanda antiga do movimento negro, mas o debate mais generalizado sobre ações afirmativas se fortaleceu com a participação do Brasil na 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo, realizada em 2001 na África do Sul. Diversas universidades estaduais e federais passaram a adotar cotas sociais ou raciais. Com a Lei 12.711/12, sancionada dia 29 de agosto, instituições privadas serão estimuladas a adotar medidas semelhantes.

De acordo com o site oficial da Seppir, as ações afirmativas são medidas discriminatórias positivas, discriminam para integrar. Favorecem alguém que foi historicamente discriminado para que possa competir no mercado de trabalho e exercer direitos plenamente, em igualdade com indivíduos historicamente favorecidos. Essa desigualdade separa espacial, profissional e simbolicamente. Não acontece por falta de mérito, mas é resultado do ponto de partida de cada um.

Ainda de acordo com a secretaria, as cotas são um instrumento de ação afirmativa que tenta corrigir a desigualdade de ­oportunidades, pois, para o Estado brasileiro, não é possível esperar que todos os problemas da educação básica sejam resolvidos para tornar mais justa a participação da população negra e pobre na universidade pública. Isso seria permitir que toda uma geração seja prejudicada, que seus talentos sejam desperdiçados e que as possibilidades de realização pessoal sejam frustradas por causa de erros do passado que nunca foram revistos pela sociedade, mas, ao contrário, foram reforçados por mais de cem anos de negação do racismo no Brasil.


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