Brasil aposta em expansão dos mercados externos

Da Redação | 22/01/2019, 15h43

Crises de refugiados, guerras comerciais, ameaças militares e falta de confiança entre as principais potências mundiais. O novo governo brasileiro que tomou posse em janeiro terá pela frente um cenário político-econômico instável e delicado nas relações internacionais.

O panorama favorável que beneficiou outros governos no passado recente já não existe mais. A nova realidade global vai exigir muita atenção. A política externa deixou de ser um tema secundário para os presidentes em início de mandato. O momento é outro e o mundo de hoje exige bastante profissionalismo.

É o que lembra o professor Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique. Para ele, o momento delicado que vivemos requer liderança.

— Ninguém pode viver hoje em dia em isolamento. É preciso ter um presidente da República que saiba o que é o mundo e saiba como orientar o Brasil no mundo.

O novo presidente da República terá pela frente a tarefa de aproximar polos contrários. Os antagonismos da política interna alcançaram, de forma quase inédita, os rumos da política externa do país.

Como mostraram os recentes debates na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, de um lado estão os que defendem prioridade às relações com os países do chamado sul global. De outro os que preferem voltar a sua atenção a países de maior peso econômico.

Unilateralismo

O novo governo brasileiro começa no momento em que o mundo se torna um lugar menos estável, especialmente depois da posse do presidente norte-americano Donald Trump, em janeiro de 2017. Trump tem dito que não teme uma guerra comercial com potenciais concorrentes e já retirou seu país de importantes conquistas internacionais, como o Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas.

O unilateralismo de Trump vai exigir muita reflexão do governo brasileiro, como alerta o professor Alexandre Uehara, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP):

— Creio que o presidente Trump tem causado várias ondas de instabilidade. As sobretarifas que ele estabeleceu causaram bastante distúrbio e isso também vai ser um desafio para o Brasil.

As dúvidas que surgem no cenário internacional levam alguns especialistas a se questionar se não estamos vivendo um momento de ruptura política em relação a modelos que estão em funcionamento desde o fim da segunda guerra mundial.

Essa preocupação já está no radar do Palácio do Planalto. Para Hussein Kalout, secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República no governo Temer, é momento de o país se colocar diante do mundo nesse novo cenário.

— O Brasil não é um país que deverá operar à deriva dos principais temas da agenda internacional. O Brasil talvez seja um dos países mais comprometidos com o sistema multilateral. Um dos desafios do novo presidente é repensar a nossa moldura de inserção internacional e como ela pode trazer resultados efetivos, além dos retóricos, à sociedade brasileira.

Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), as trocas globais devem registrar um aumento de apenas 3,7% em 2019, dando continuidade a uma desaceleração já ocorrida no ano passado. Este cenário já seria resultado de medidas protecionistas em vigor que afetam o fluxo de importações e exportações em todo o mundo.

Os especialistas ainda se dividem quanto às perdas e ganhos dessa situação para o país. Uma coisa, porém, é certa: o Brasil precisa aumentar a sua participação no comércio global. É o que propõe a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, em estudo divulgado em 2018. Segundo o documento, o comércio exterior representa apenas 25% do Produto Interno Bruto do Brasil — o que coloca o país entre os mais fechados do mundo.

Segundo o estudo da secretaria, o Brasil também deve importar mais. Com isso alcançaria dois objetivos: reduzir preços internos e ingressar nas chamadas cadeias globais de valor, em que cada parte de um bem é produzida onde há mais eficiência.

Uma parte do esforço para garantir nossas exportações deve ser feita aqui mesmo no Brasil, segundo o ex-ministro Celso Lafer:

— O Brasil na área agrícola é uma grande potência. E nós somos uma grande potência, primeiro por conta dos investimentos que fizemos em tecnologia e pesquisa que fizeram que o nosso agronegócio tivesse a qualidade que tem.  Agora, porque cresceu e porque é importante, enfrenta resistências e protecionismo. E precisa lidar com essas resistências, em primeiro lugar cuidando dos problemas internos, das normas técnicas, das medidas zoofitossanitárias, que são hoje o mecanismo pelo qual o protecionismo se exerce no mundo.

O comércio agrícola obtido cada vez mais importância, como observa o especialista em agronegócio Marcos Jank:

— As exportações agrícolas brasileiras têm crescido em torno de 10% ao ano nos últimos dez anos. A gente passou de US$ 20 bilhões exportados em 2000 para US$ 100 bilhões atualmente. A gente teve um ótimo desempenho se formos olhar o período todo.

Para Jank, o crescimento do comércio de produtos agrícolas vai ocorrer em toda Ásia — e não apenas na China. O próximo governo, segundo ele, deveria olhar com carinho para toda a região.

— Hoje, 30% da exportação do agronegócio é para a China e é basicamente soja. Mas outros 20% da exportação do agro são para o resto da Ásia sem China. E esse resto da Ásia sem China já é mais importante para a gente do que a própria Europa, que no passado foi o nosso grande comprador.

América do Sul

Na hora de definir estratégias de política externa, o novo governo brasileiro deverá manter a prioridade para a América do Sul. Mas terá de adaptar a sua política a um novo momento na região, marcado pela crise econômica na Argentina e pelo colapso político da Venezuela, entre outras questões.

— A integração da América do Sul está inscrita na Constituição. É o artigo 4º da Constituição. É por isso que todos os governos depois da Constituição de 1988 investiram em apoiar a integração latino-americana. O novo governo terá suas prioridades, mas como todo governo respeita a Constituição, eu entendo que também a integração seguirá sendo uma prioridade — lembra o embaixador Antônio Simões.

Como lembra Simões, que será embaixador brasileiro em Montevidéu, as mudanças poderão atingir a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), órgão de integração regional criado em 2010.

— A Celac e a Unasul tiveram um papel muito importante num determinado momento. Hoje a realidade internacional mudou, então é importante que a gente também saiba se adaptar a isso.

E o Mercosul? Como deve ficar a relação entre o Brasil e seus sócios no Mercado Comum do Sul? Na opinião do ex-ministro Celso Lafer, o grupo vive um bom momento.

— Eu acho que há muita convergência com a Argentina, o que é muito positivo. Eu acho que tanto o Uruguai quanto o Paraguai, por gravitação natural, se sentirão à vontade com essa nova fase dinâmica do Mercosul, que eu acho que caminha como deveria caminhar para ser um campo de convergência econômica muito mais do que qualquer outra coisa. E eu vejo isso como algo positivo que está no horizonte.

O Mercosul terá pela frente, em breve, um momento decisivo: a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia, um imenso conglomerado de 28 países e mais de 500 milhões de habitantes. O acordo está em negociação há 20 anos.

— Eu acho que o acordo com a União Europeia é um acordo estratégico. Eu sempre tive certa relutância em abrir [o acordo] sem contrapartidas suficientes, mas nesse momento eu acho que já estamos num nível de interesse recíproco muito elevado e a maturidade para que isso seja concluído está dada e eu espero que isso possa ser concluído proximamente — explica o diplomata Roberto Jaguaribe.

Para Jaguaribe, que já comandou a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), é importante para o Brasil uma Europa forte.

— A Europa tem sido um ator fundamental para dar equilíbrio a esse contexto. Ela se vê enfraquecida agora em função de algumas questões internas e também de algumas questões externas, mas para o Brasil é importante que a Europa volte a se fortalecer e volte a atuar de forma sóbria e racional no contexto internacional, juntando-se a outros atores que estão presentes aí.

China e Ásia

Na opinião de especialistas em relações internacionais, o próximo governo deverá ter uma política externa específica para a Ásia e deverá ser cuidadoso ao estabelecer o tipo de relação que pretende com a China, maior parceiro comercial do Brasil.

— O Brasil não pode se desligar dessas potências emergentes em hipótese nenhuma, até porque os únicos recursos que estão realmente entrando no país vêm dessas relações, mas o Brasil deve sobretudo ter uma atitude também de negociação mais incisiva. Assim como não devemos nos subordinar a uma demanda norte-americana pura e simplesmente, nós não podemos aceitar a primeira oferta chinesa. Eu acho que o Brasil tem que negociar —pondera Paulo Visentini, professor de relações internacionais da UFRGS.

Para o especialista do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP, Alexandre Uehara, a definição da política externa em relação à segunda potência global deve levar em conta as opiniões de empresários e acadêmicos.

— O setor empresarial, o governo e também o setor acadêmico pode contribuir em estabelecer quais são de fato os interesses nacionais do país, estabelecendo metas de médio e longo prazo. Para, aí sim, poder definir qual tipo de relação que nós queremos com a China. Enquanto não tivermos claro quais são nossos interesses, nossos objetivos, fica muito difícil para o presidente [da República], seja ele quem for, estabelecer qual o padrão de relacionamento melhor ou ideal para o Brasil.

Brics

Completou dez anos, em 2018, a mais bem sucedida experiência de unir os chamados países emergentes: o Brics. Em uma reunião realizada em Joanesburgo, os líderes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul celebraram o aniversário do bloco com uma forte defesa do multilateralismo, em tempos de guerras comerciais.

O encontro dos países emergentes ocorre anualmente. Como anfitrião, em 2019, o Brasil poderá ter maior influência na definição da agenda. Mas como será a relação do país com o Brics no futuro governo? A importância desse encontro é ressaltada pelo professor Oliver Stuenkel, da FGV, especialista no tema.

— Isso é uma grande oportunidade para enfatizar quais os temas principais a serem discutidos nesse grupo, que tem uma importância grande para estabilizar a ordem internacional, sobretudo diante da fragilidade que se cria hoje no Ocidente em função da atuação imprevisível dos Estados Unidos.

África

A décima reunião do Brics teve forte presença africana. A África do Sul foi o último país a ingressar no grupo. Mas procurou demonstrar no encontro a pujança do continente. Para diversos especialistas brasileiros, o próximo governo deveria aprofundar a política de aproximação com a África.

— A África é um continente que tem tido um crescimento econômico muito grande e que teria um interesse em ter relações com o Brasil, até porque o Brasil não tem a mesma atitude das grandes potências que buscam matérias primas ou que buscam impor poder sobre a África. Nós não temos nem condições e nem vontade de impor nada aos africanos. E faz parte do nosso entorno. Se nós queremos ter segurança, estabilidade, etc, nós devemos prestar muita atenção na África — afirma Vicentini.

A postura que o Brasil vier a adotar a partir deste ano é que deverá dar forma a esse modelo de relacionamento.  A questão é se nosso país poderá ser acusado de um novo tipo de colonialismo.

— A crítica que os africanos estão fazendo é que as empresas do Brasil fazem extração de matéria prima e não fazem investimento na indústria, então não desenvolvem os países africanos. Mais adequado seria investir naquilo que cria emprego, portanto naquilo que cria renda. É dar aumento do nível de vida local e maior capacidade de participação no comércio internacional. Essa que é a estratégia inteligente — reflete José Manuel Gonçalves, professor de relações internacionais da UFF.

Analúcia Danilevicz Pereira, professora da UFRGS, ressalta que a África tem uma importância geopolítica especial para o Brasil, com quem compartilha o Atlântico Sul.

— É importante pensar que a África é sim uma fronteira para o Brasil se nós considerarmos o espaço do Atlântico Sul e tudo o que esse espaço representa no sentido de garantias ou recursos de desenvolvimento nas duas margens do oceano.

Oriente Médio

Outro espaço geográfico que tem estado no radar de pesquisadores brasileiros é o Oriente Médio. Onde muitos veem apenas crises políticas, alguns observadores identificam boas oportunidades.

— O Brasil vem atuando nos últimos dez anos no Oriente Médio, principalmente no ponto de vista econômico. A gente já é um dos principais exportadores de carne hallal, que é aquele corte feito através de preceitos islâmicos. Então, existe um mercado muito grande que o Brasil está entendendo que pode atuar. A partir de 2019, também com a economia brasileira dando sinais de recuperação, a gente pode atuar de maneira mais direta, abrindo esses canais de venda, seja de commodities, seja de carne, com países do Golfo, com países do Oriente Médio, e de uma maneira mais direta estabelecer essas relações econômicas também no campo político — diz Fernando Brancoli, professor de relações internacionais da UFRJ.

Um tema parece consensual entre os especialistas: o Brasil tem bom trânsito no Oriente Médio exatamente por manter relações com todos os atores envolvidos.

— Só existe uma meia dúzia de países no mundo que tem relações com todos os demais. O Brasil é um desses. O Brasil tem comunidades árabes, comunidades judaicas, que convivem aqui pacificamente e eu acho que temos cacife, sim, para estarmos presente lá. Por exemplo, se a oferta brasileira causou tanto furor numa época em que se propôs alguma coisa sobre o programa nuclear iraniano, é porque outras potências queriam ter proposto. Sabotaram a nossa e aprovaram a deles — frisou Paulo Vicentini.

Defesa

O novo governo brasileiro terá pela frente um mundo bastante instável. Os riscos econômicos já são conhecidos. Mas são pouco discutidos os riscos militares. Que tipo de ameaças podemos enfrentar nos próximos anos? E que tipo de forças armadas devemos ter para proteger o país dessas ameaças?

Muitos desafios na área de defesa parecem distantes, como os conflitos no Oriente Médio, a expansão da marinha da China e o lançamento de mísseis pela Coreia do Norte. Mas eles contribuem para tornar o cenário global mais imprevisível.

Atualmente o Brasil gasta cerca de 1,5% de seu produto interno bruto com defesa. E a maior parte dessa despesa é com pessoal ativo e inativo. Entre os parceiros do Brics, a China gasta 1,9% e a Índia, 2,5%. Porém, o Brasil tem a seu favor uma região mais pacífica.

— A melhor coisa que a América do Sul pode fazer para o mundo é continuar a tradição de paz que ela tem e nesse sentido nós somos uma região singular. Aqui há uma tradição de negociação e de resolução de conflitos por meios diplomáticos muito mais difundida — diz o especialista Antônio Ramalho, da UnB.

Para Ramalho, o governo Bolsonaro deveria investir em maior aproximação entre as políticas externa e de defesa, na cooperação com países vizinhos em formação militar e na indústria bélica e na preparação dos militares do futuro.

— Eu preciso ter forças armadas profissionais e pessoas muito capazes que vão operar sistemas complexos. Essas pessoas custam muito caro para se formar e para se reter, porque elas desenvolvem habilidades que também são muito apreciadas pela economia civil, por assim dizer. É muito importante que nós comecemos a pensar num modelo de militar que nós queremos para o futuro e comecemos a já selecionar e formar os militares tendo em vista esse modelo —esclarece.

Em tempos de grandes dificuldades fiscais, que peso deve ter a defesa no Orçamento da União, que é aprovado pelo Congresso Nacional? Se o Brasil pretende se firmar no cenário mundial, o país não pode deixar o setor de lado.

— Quando a gente fala em defesa, nós temos que entender que estamos falando de uma base científica tecnológica industrial de defesa. Isso não só fortalece as nossas forças armadas como também gera ciência e tecnologia e gera emprego. E se nós não fortalecermos o poder da defesa e o poder da inteligência, nós estaremos deixando flancos graves e que fragilizam a nossa segurança nacional — conclui o ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Hussein Kalout.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)