Como se explica o fato de que um dos maiores e mais bem estruturados sistemas de vigilância epidemiológica do mundo passa por novo surto de febre amarela? Essa pergunta vem sendo feita nos últimos meses por estudiosos e cidadãos assustados com o retorno da doença. Afinal, 545 casos e 164 mortes foram registrados no país entre 1º julho de 2017 e 20 de fevereiro deste ano. Permanecem em investigação 422 de 1.773 casos suspeitos. No período equivalente anterior, foram confirmados 557 casos e 178 mortes.

O Brasil é o principal produtor mundial de vacina contra a febre amarela. Em períodos de normalidade, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Biomanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pode disponibilizar até 48 milhões de doses por ano. Em situações emergenciais, esse número pode subir para 108 milhões. Uma nova fábrica, montada em parceria com um laboratório privado, também está produzindo o imunizante a um ritmo de 4 milhões de doses mensais.

Mesmo assim, os brasileiros temem o risco de ver retornar a transmissão do vírus da doença em ciclos urbanos provocados pela ação do mosquito Aedes aegypti. Desde 1942, os ciclos, a intervalos de seis a dez anos, são de natureza silvestre e provocados por movimentos do mosquito Haemagogus. De 1980 a 2004, foram confirmados 662 casos de febre amarela silvestre em seres humanos, com ocorrência de 339 mortes, representando uma taxa de letalidade de 51% no período de 24 anos. A taxa de letalidade do atual surto é de 30%, mas a média é de 68,1 casos a cada 30 dias num período de apenas 8 meses.

As possibilidades de explicação são variadas e envolvem complexas interações ambientais, sociais, econômicas e políticas. Por isso, ninguém se arrisca a fazer afirmações taxativas sobre a turbulência vivida pelo Brasil a partir do momento em que as chuvas de verão fizeram o trabalho de converter os ocos das árvores em um ambiente para procriação do mosquito silvestre.

As respostas mais consistentes, partidas de estudiosos com larga credibilidade, traçam um panorama que reúne danos ambientais, ocupação desordenada do solo e equipes de vigilância em saúde desarticuladas ou desmobilizadas. Some-se a esses fatores uma população carente de informações científicas seguras e, em certos aspectos, nada conscientes de seus deveres quanto ao controle de vacinas e outras formas de prevenção — entre elas, o uso de repelentes.

Sinais nítidos desse despreparo foram as perseguições a macacos, enganosamente acusados de transmitir a doença aos humanos, e a corrida aos postos de saúde por parte de pessoas que não tinham tanta urgência em receber a vacina — seja porque não se encontravam em áreas de risco, seja porque não iriam se deslocar para alguma delas. Na sequência da onda de pânico, muitos aparentemente passaram a minimizar o perigo e deixaram de procurar a vacinação onde havia disponibilidade do material.

Em setembro do ano passado, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, disse que o surto iniciado no verão anterior chegara ao fim, cerca de dois meses depois do último caso, registrado no Espírito Santo. “Segundo a pasta, a prevalência da doença é nos meses de calor, entre dezembro e abril, e, com o fim dessa sazonalidade, a expectativa é que o número de casos diminua”, noticiou a Agência Brasil.

Apesar disso, o Ministério da Saúde recomendou a continuidade das ações de prevenção e de ampliação da cobertura da imunização contra a febre amarela para prevenir novos casos da doença no próximo verão. “É preciso que as equipes façam a busca ativa, especialmente das pessoas que estão na zona rural, que são as mais suscetíveis a pegar febre amarela”, disse Ricardo Barros. E recomendou: “Se o município é grande, tem que fazer campanha de vacinação na mídia; se o município é menor, ir de casa em casa para poder alcançar a cobertura”.

Dilema

As advertências do ministro podem ter sucumbido ao dilema que aflige as prefeituras desde que a prevenção e o controle de doenças foram transferidos a elas no início dos anos 2000: utilizar os recursos materiais e humanos para prover assistência médica ou garantir ações preventivas, de acordo com o que ponderou o médico epidemiologista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Pedro Luiz Tauil.

— Não digo que houve um relaxamento, mas uma questão de prioridade — avaliou.

Ele lembrou que os municípios hoje são os executores da política de vigilância e imunização do Sistema Único de Saúde (SUS), antes a cargo do governo federal, que tinha na Superintendência das Campanhas de Saúde Pública (Sucam) e posteriormente na Fundação Nacional de Saúde (Funasa) poderosos agentes no combate a mosquitos e outros transmissores.

— A prioridade para a assistência é maior. Então os municípios não valorizam tanto as medidas preventivas — disse o professor.

Ele não mostrou preferência pelo modelo anterior, mas disse considerar que, no contexto da descentralização das ações epidemiológicas, diminuiu a cobertura nacional de vacinas para a febre amarela, “particularmente para as populações mais vulneráveis, que estão na zona rural e que exigem equipes móveis”. Poucos municípios dispõem desse tipo de unidade para ir ao encontro de cidadãos afastados do meio urbano, levando-lhes conscientização e medidas práticas, entre as quais as vacinas.

A Sucam também surgiu na fala do secretário da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), José David Urbaez Brito. Não que ele tenha pedido a volta de um órgão que adotava uma postura algo militar no combate a vetores de doenças e foi substituído por organizações com maior repartição de responsabilidades, visão multifatorial dos problemas de saúde e participação social. A Sucam foi extinta em 1990 contra a vontade dos seus “soldados”, também conhecidos como mata-mosquitos. Ainda hoje muitos deles sofrem os efeitos nocivos dos inseticidas que usavam.

A queixa do infectologista baseia-se no que ele chamou de “um desmonte acelerado” do sistema de vigilância em saúde. E a doença infecciosa é chave como indicador da qualidade da estrutura dos serviços de saúde.

— Há 20 anos, o Brasil tinha uma complexidade em termos de organização do sistema de vigilância epidemiológica. Estamos andando para trás como caranguejos. É um momento de desorganização, de erros — afirmou Brito.

Segundo ele, em 1998 alertava-se para a necessidade de garantir uma série de medidas para evitar epidemias como a atual. De qualquer forma, observa que o país tem um corpo técnico e científico muito sério, bem preparado, e o Programa Nacional de Imunização (PNI), que recebe o interesse do mundo todo. Na opinião do infectologista, é preciso recuperar um “saber que ainda existe”, a despeito da extinção de órgãos.

— Vamos ganhar de volta o terreno perdido porque somos mestres nisso, mas há um custo em termo de vidas no curto prazo — disse o secretário.

Alertas

No Senado, não faltaram alertas em relação ao controle da febre amarela. Ainda no início do ano passado, Antonio Anastasia (PSDB-MG) defendeu o empenho dos poderes públicos, das três esferas de governo, na realização de campanhas de vacinação e de combate ao mosquito transmissor da doença. O senador Eduardo Amorim (PSDB-SE), que é médico, também protestou contra a falta de iniciativas para combater a volta de uma doença conhecida no Brasil desde o século 17.

Para a senadora Rose de Freitas (PMDB-ES), não são necessárias novas leis para enfrentar o problema, mas planejamento e uso racional dos recursos disponíveis. Um levantamento no sistema Siga Brasil do Senado mostra que o total para as verbas da subfunção “Vigilância Epidemiológica” do Orçamento da União variou em torno de R$ 6 bilhões efetivamente pagos ao ano entre 2014 e 2017, com valores mais altos em 2016 e 2017. Em 2018, ao final de fevereiro, os recursos inscritos nessa categoria somavam R$ 777 milhões.

Algumas das verbas podem oferecer insumos para uma análise sobre a relação entre valores investidos e o quadro atual, mas mesmo técnicos da área de Orçamento advertem para a falta de precisão quando não se tem um detalhamento do dinheiro ação por ação.

Reestruturação

Para reestruturar o sistema epidemiológico, será necessária a capacitação de recursos humanos em todos os níveis e materiais. Sobre esse aspecto, a bióloga Marcia Chame, da Fundação Oswaldo Cruz, lembrou que “muitas pessoas das secretarias de Saúde saem com as mudanças de governo”. Com isso, muitas vezes o grupo novo perde a continuidade dos trabalhos. Numa emergência, precisa se reorganizar rapidamente, segundo a pesquisadora. E nem sempre é possível fazer isso com eficiência.

O secretário da SBI faz outro alerta: há que melhorar os processos de fabricação de vacinas com vistas a uma ampla cobertura em um país continental. Não basta uma nova fábrica. É preciso pesquisar um novo imunizante, já que o atual é muito parecido com o desenvolvido em 1930, o que dificulta respostas rápidas na hora de se produzir grandes lotes em curto prazo. Enquanto isso, o fracionamento é uma alternativa emergencial importante. E a inclusão da vacina no Calendário Nacional de Vacinação para crianças de nove meses ou mais, inadiável.

— Em médio e longo prazo, cabe retomar as linhas de pesquisa de insetos e de novas formas virais, aumentar a vigilância e promover educação continuada, mas sem escândalos, sem espalhar o pânico — recomenda Brito.

Meio ambiente

A degradação ambiental aparece como um fator-chave para o aumento dos surtos de febre amarela nos últimos anos. É o que frisou Marcia Chame, em entrevista ao site da Fiocruz. “O que se vê, fora da região amazônica, é que os surtos estão nas regiões onde os fragmentos florestais são muito pequenos. Isso é um dado a ser estudado com muita cautela, porque sabemos que, quanto menor o fragmento florestal, mais espécies são perdidas, e as espécies que permanecem ali têm alta capacidade de adaptação a ambientes desestruturados. Obviamente, essas espécies também são boas mantenedoras e transmissoras de agentes infecciosos, porque é uma estratégia desses organismos, vírus ou qualquer outro, perpetuarem-se”, explicou a pesquisadora.

Dessa forma, é importante manter “reservas naturais grandes e suficientes para que os animais possam viver e viver com qualidade, mantendo os ciclos naturais de agentes infecciosos nos seus lugares de origem e, com isso, diminuir o fluxo de doenças entre animais e pessoas, e também entre pessoas e animais”, completou Marcia Chame. Um dos limites a um cuidado mais generoso com a natureza é que isso “vai de encontro ao modelo econômico em curso”, conforme a estudiosa.

Segundo ela, o meio ambiente é a causa de uma mudança de padrão nos ciclos das epidemias, que são influenciados pelos contingentes de pessoas não vacinadas ao longo de uma década. Entre 2009 e 2016, a febre amarela proliferou em Goiás, no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Distrito Federal e em Minas Gerais.

O infectologista José David Urbaez Brito chamou a atenção para o fato de que a ocupação desordenada do solo “levou à diluição da distância entre áreas rurais e urbanas”, facilitando o contato de seres humanos com o mosquito Haemagogus, ligado ao ciclo silvestre da febre.

Levando em conta que o perfil do país mudou com a ocupação desordenada, os municípios perderam a capacidade técnica para lidar com epidemias e não há quem faça esse trabalho no lugar deles.

— Daí ficamos apagando incêndios. O Ministério da Saúde tem um corpo técnico privilegiado, mas não há fluidez por todas as barreiras — lamenta o infectologista.

Descontrole

O anúncio do surto de febre amarela no leste de Minas Gerais no começo de 2018, com grande corrida aos postos de saúde em busca de vacinas, foi um sinalizador para o poder público sobre o descontrole da imunização no Brasil. Fato é que muitos cidadãos já vacinados buscaram a rede de saúde sem necessidade, enquanto outros, que realmente precisavam ser imunizados, ficaram sem a dose da vacina.

Essa situação acontece porque muitos adultos não guardam seus cartões de vacinação e o país não dispõe de um controle informatizado e integrado sobre a condição de cada brasileiro em termos das vacinas que tomou e das que falta tomar. É o que explica o vice-presidente da Associação Brasileira de Imunizações e presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, Renato Kfouri.

— Muitos nem sabem onde está sua carteira de vacinação, quando e quais foram as últimas vacinas que recebeu, então, falar de vacina em adultos no nosso país ainda é um tema bastante novo e que precisa ser mais divulgado entre a população, para que a gente consiga prevenir as doenças não só nas crianças — informou.

Para o especialista, é difícil recuperar as informações de quem perde a carteira de vacinação e, por isso, o sistema de saúde considera esses indivíduos não protegidos, oferecendo novamente a vacina. Para Renato Kfouri, é melhor imunizar a mais do que deixar essas pessoas desprotegidas.


Compartilhar: Facebook | Twitter | Telegram | Linkedin