Sepultura já não é local de unidade familiar, diz antropólogo

Da Redação | 13/08/2013, 00h00

Ricardo Westin

 

De acordo com o antropólogo José Carlos Rodrigues, o Brasil de hoje repete um fenômeno que já havia ocorrido na Europa em relação à cremação. Uma das mudanças foi o crescimento do individualismo.

— A ideia de uma sepultura coletiva, familiar, foi ficando cada vez menos atraente, menos impositiva. Os indivíduos passaram a querer ser enterrados nos destinos que eles escolheram, nos lugares em que eles moram, nos lugares que eles adotaram afetivamente. O sepultamento foi até mesmo perdendo um pouco de importância — explica.

Rodrigues é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor do livro Tabu da Morte (Editora Fiocruz).
 

Por que a cremação vem crescendo?

Na Europa da Idade Média, a cremação era inadmissível para um cristão. Ele acreditava na ressurreição da carne e imaginava que a cremação inviabilizaria isso. As sepulturas, naquela época, ficavam na área das igrejas e eram coletivas.

A cremação também era vista como uma prática de povos bárbaros, pagãos. Além disso, queimar alguém era uma punição para a blasfêmia, a heresia.

No Ocidente, a cremação teve um papel marginal praticamente até a Reforma Protestante. Os protestantes introduziram uma nova visão da morte e da vida eterna, e essa ideia de ressurreição da carne foi desaparecendo.

Mesmo no catolicismo, ela foi gradualmente perdendo força. No final, a cultura ocidental passou a ver que o corpo se decompõe e que só o espírito é eterno. Há uma frase célebre de Descartes: o corpo é o que sobra da vida de um espírito.

Houve outros acontecimentos. Com o advento do capitalismo e do individualismo, começaram a aparecer cada vez mais sepulturas individuais e familiares. Durante muito tempo no Ocidente, a sepultura foi uma espécie de altar de um culto familiar. Os sobreviventes se remetiam à sepultura para lembrar seus mortos e praticar um rito de unidade familiar. Mas a história demográfica do Ocidente fez com que essas famílias ficassem menores e seus integrantes ficassem cada vez mais distantes. As pessoas foram se dispersando. Assim, as sepulturas perderam bastante esse símbolo de local de unidade familiar. As pessoas foram ficando cada vez mais individualistas. Nessa direção, a ideia de uma sepultura coletiva, familiar, foi ficando cada vez menos atraente, menos impositiva. Os indivíduos passaram a querer ser enterrados nos destinos que eles escolheram, nos lugares em que eles moram, nos lugares que eles adotaram afetivamente. O sepultamento foi até mesmo perdendo um pouco de importância.

Além disso, com o crescimento das cidades, ficou difícil conseguir uma sepultura que estivesse ao alcance econômico das famílias. A cremação cada vez mais foi se dando como uma alternativa viável ao sepultamento. E no Brasil?

Esse processo que durou mil anos na Europa, da Idade Média ao capitalismo, vem acontecendo nos últimos 70, 50 anos no Brasil. Tanto é que a cremação já se mostra como uma questão normal, admissível no cotidiano brasileiro. Os crematórios estão crescendo muito.

O individualismo no Brasil também tem progredido. Religiões protestantes ficaram muito mais fortes do que eram há 50, 70 anos.

Nas grandes cidades, os cemitérios também ficaram mais complicados.

A tendência, em sua opinião, é que as cremações cresçam ainda mais no Brasil?

Se nós compararmos o Brasil com a Inglaterra, a Suécia ou a Dinamarca, a cremação ainda é quase inexpressiva em termos proporcionais. Nesses países, há muito tempo a cremação já passou dos 50%. Nos anos 70, 50% dos procedimentos funerários na Inglaterra já eram por cremação. Hoje já beiram os 80%.

Mas precisamos considerar que nos países europeus houve uma intensa imigração asiática, de indianos e paquistaneses, de budistas etc., que veem a cremação com bons olhos.

A cremação no Oriente não tem o caráter expeditivo que tem no Ocidente. No Ocidente, um dos componentes da cremação é ser uma solução rápida, enquanto no Oriente, na Índia, por exemplo, a cremação é um procedimento lento, demorado e com várias etapas. No Oriente, a cremação não tem esse sentido de uma solução rápida e urgente.

O Brasil vai chegar a ter índices europeus de cremação?

É certo que a cremação vai ter uma importância muito maior do que tem hoje, mas não diviso que no médio prazo o Brasil terá tantas cremações quanto na Europa.

 

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)