Desde a Constituição de 1988, que completa 30 anos no ano que vem, o combate ao racismo vem avançando no Brasil. O próprio texto constitucional deu o primeiro passo quando considerou o racismo crime inafiançável. De lá para cá, outras iniciativas e políticas foram surgindo e se consolidando, em grande parte como resultado da luta do movimento negro. Bons exemplos são o sistema de cotas nas universidades públicas e a criação do Dia Nacional da Consciência Negra, instituído em 2011 e comemorado todo dia 20 de novembro.

Mas muito ainda resta a ser feito. O preconceito e a desigualdade social são enfrentados todos os dias pela população negra. O perfil penitenciário brasileiro pode ser considerado a face mais cruel dessa desigualdade.

Na sexta-feira, o Ministério da Justiça divulgou o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) segundo o qual, em junho de 2016, 64% da população carcerária eram negros (pretos e pardos), na maioria jovens. De acordo com o levantamento, o Brasil possui hoje 726 mil presos e é o terceiro país em número de pessoas encarceradas, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

O Atlas da Violência de 2017, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), avaliou que uma pessoa negra tem 23,5% mais chance de sofrer assassinato em relação a cidadãos de outras raças. Esse cálculo desconta todos os efeitos de idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência, deixando apenas a influência da cor da pele.

O mesmo estudo mostrou que, entre 2005 e 2015, a taxa de mortalidade para pretos e pardos subiu mais de 18%, enquanto o mesmo indicador para os demais cidadãos caiu cerca de 12%.

A mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada no início de novembro pelo IBGE e referente ao terceiro trimestre do ano, quantifica a desigualdade de forma clara (veja infográfico).

Crise

A crise que o país atravessa desde 2014 contribuiu para agravar esses indicadores. De acordo com a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), qualquer piora do quadro social afeta principalmente os negros, que são, em geral, mais desprotegidos diante das intempéries econômicas.

Ela destaca a violência como uma das principais mazelas que atingem esse segmento da população. Além de estarem mais sujeitos ao crime, os negros também sofrem com a má conduta policial, segundo ela.

— A pauta da segurança pública interessa à população negra. Falta um projeto nacional e isso prejudica. Os negros continuam desprotegidos e com medo de serem abordados [pela polícia] — observa a parlamentar.

O aprimoramento da formação dos agentes policiais é uma das medidas que ela cita como urgentes. Outra é o fim dos autos de resistência. Atualmente, no caso de resistência à prisão, o Código de Processo Penal autoriza o uso de quaisquer meios necessários para que o policial se defenda ou vença a resistência, e determina que seja feito um documento, o auto, assinado por duas testemunhas, explicando a situação. No entanto, críticos apontam que essa ferramenta inibe a investigação de ações abusivas.

Um projeto de lei que propõe o fim dos autos de resistência foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) em maio deste ano. O PLS 239/2016 resultou da CPI do Assassinato de Jovens (2015-2016).

Outro projeto no mesmo sentido, em análise na Câmara dos Deputados, está mais avançado: o PL 4.471/2012 entrou em regime de urgência no Plenário daquela Casa no início deste mês.

Racismo

A violência não preocupa apenas pela sua expressão física ou socioeconômica. Apresenta-se também em palavras e gestos, em ofensas e em formas discriminatórias de tratamento. Casos de racismo circulam pelos veículos de notícias e pelas redes sociais com frequência, não permitindo que esse problema seja ignorado. O fenômeno relativamente recente da internet e das redes sociais provoca a sensação de que as manifestações de racismo aumentaram.

Para a senadora Regina Sousa (PT-PI), presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), a prática de racismo nem sempre é premeditada, o que revela característica da própria sociedade. — A essência do racismo é o sentimento que as pessoas têm dentro de si e que expressam, às vezes sem querer. Muita gente solta coisas porque elas estão incorporadas por meio da cultura e da educação. Este país tem uma memória escravista — disse.

Independentemente da motivação, manifestações com teor de discriminação ou ofensa racial são criminalizadas, tanto pela Constituição Federal quanto pelo Código Penal.

O crime de racismo foi regulamentado por lei em 1989. Ele corresponde à recusa de tratamento igualitário por questões raciais — por exemplo, quando um estabelecimento nega acesso a um cliente negro ou um empregador rejeita um candidato em um processo seletivo em decorrência da cor da pele.

Já a injúria racial é a ofensa verbal à honra de outra pessoa com elementos relativos à cor ou à raça. Ela foi instituída por uma alteração no Código Penal, realizada em 1997. Uma das modalidades de racismo se confunde com a injúria — quando um indivíduo pratica, incita ou induz à discriminação e ao preconceito, de forma verbal, contra todo o coletivo de pessoas de um determinado grupo étnico.

Exemplos

A diferença pode ser ilustrada a partir de dois casos que ganharam a atenção das redes virtuais nas últimas semanas. Num deles, o jornalista William Waack, em vídeo de 2016 divulgado neste ano, reage a uma buzina na rua durante uma gravação como “coisa de preto”. O episódio foi interpretado como crime de racismo, sob o entendimento de que o jornalista reproduziu um estereótipo pejorativo a respeito de uma coletividade.

No outro caso, a youtuber Day McCarthy publicou um vídeo em que profere ofensas raciais direcionadas à filha adotiva do casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. Nessa circunstância, como os xingamentos têm como alvo uma pessoa específica, o ato enquadra-se em injúria racial.

Em ambas as situações, a pena é a mesma: um a três anos de prisão, além de multa. O motivo para a legislação fazer distinção entre as duas atitudes é de ordem prática, conforme explica o promotor Thiago Pierobom, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

— Quando a lei do racismo entrou em vigor, dificilmente conseguíamos enquadrar os casos de ofensas como racismo porque os tribunais sempre diziam que a intenção não teria sido de discriminar. Para contornar essa resistência, houve a alteração no Código Penal estabelecendo o crime de injúria racial. Aí sim conseguimos ter uma elevação substancial nos casos que eram levados ao Judiciário e passamos a ter mais condenações.

O promotor destaca que a existência de uma distinção legal entre racismo e injúria racial não implica qualquer diferenciação valorativa entre as duas práticas, nenhuma delas é menos grave do que a outra.

— Do ponto de vista sociológico, não tem diferença nenhuma. Xingar uma pessoa de “preto safado” é, obviamente, um ato de racismo. É só uma questão de estratégia legislativa, de como dizer isso na legislação para ter mais facilidade de se chegar ao mesmo resultado.

Regina Sousa acredita no “trabalho pedagógico” das leis. Ela vê a punição não como um veículo de suplício para o perpetrador de racismo, mas como uma sinalização para o restante da sociedade de que esse comportamento não é aceitável e não será tolerado:

— Não acho que a pessoa tenha que ser execrada, ir para uma prisão. Mas tem que pagar uma pena porque praticou um ato de racismo. Se pagar, mesmo que tenha feito sem querer, os outros vão se policiar.

Boa parte dos casos que envolvem crimes raciais são concluídos com a aplicação de penas alternativas à restrição de liberdade. Entre elas, estão indenização às vítimas e presença obrigatória do agressor em cursos de conscientização racial.

Educação

Regina Sousa acredita que o aspecto punitivo é apenas um dos lados da luta contra o racismo. Enquanto a criminalização dos atos pode contribuir para coibir a expressão do preconceito, ele continuará influenciando a mentalidade das pessoas a menos que seja combatido na origem, afirma ela.

— Não é que a gente bote todas as esperanças nas leis. O processo legislativo é demorado, leva anos para uma lei ser aprovada nas duas Casas. Fazemos a lei justamente para podermos ter respaldo para reivindicar, mas é preciso trabalhar a educação. A gente tem que colocar o dedo na ferida na escola, fazer esse debate desde pequeno. O racismo não vai acabar de vez, mas pode diminuir bastante — argumenta.

Outra diferença entre os crimes de racismo e de injúria racial está na forma como se inicia o processo contra o agressor. O racismo deve ser objeto de uma ação penal incondicionada, o que significa que não é necessário nenhum pedido da vítima para que a acusação seja levada adiante.

Por sua vez, a injúria racial depende da representação específica da pessoa atacada. Caso a vítima não deseje se manifestar, o processo não avança. Além disso, a qualquer momento ela pode retirar a queixa e interromper a investigação, mesmo que já esteja praticamente concluída.

Essa diferença é considerada mais relevante pelo promotor Pierobom. Ele explica que a lei do racismo não demanda a iniciativa da vítima porque é do interesse de todo o conjunto da sociedade que o crime seja solucionado e o seu autor, punido, justamente para coibir futuras ocorrências. Quando se exige a vontade da vítima, como é o caso da injúria, essa dimensão pública se perde, afirma Pierobom.

— A regra para a injúria, na minha opinião, deveria ser alterada. O interesse público transcende a esfera de disponibilidade da vítima. A análise que ela faz é individual: “me senti ofendido, registrei uma ocorrência, mas a investigação demora meses e com o tempo eu superei aquela situação, quero tocar a vida”. Mas a questão é que há um interesse público de que essa conduta não seja aceita — explica o promotor.

O conselho do Ministério Público para quem presenciar atos de racismo e de injúria motivada por discriminação racial é chamar a polícia imediatamente, de modo a viabilizar a prisão em flagrante. É importante anotar o nome e o contato das testemunhas porque crimes dessa natureza são comumente praticados em público, na presença de pessoas que não se conhecem. Caso elas não sejam identificadas de pronto, há o risco de elas não poderem mais ser localizadas para auxiliar no processo.

Se o crime for praticado pela internet, a orientação é imprimir uma cópia da página para que sirva como documento comprobatório. Caso aconteça numa rede social, recomenda-se imprimir também os dados pessoais do ofensor, publicados em seu perfil público.

Racismo no DF

Pierobom é organizador de um trabalho estatístico sobre crimes raciais lançado neste ano. Acusações de racismo na capital da República compila todas as denúncias recebidas pela promotoria especializada do MPDFT, traçando um quadro da discriminação por cor no Distrito Federal.

O promotor acredita que um trabalho desse tipo provavelmente não poderia ser realizado nos demais estados da Federação, uma vez que o Distrito Federal é um dos poucos que possui um ramo da Justiça dedicado exclusivamente a crimes raciais. A promotoria especializada existe desde 2005 e, em 2015, foi estabelecida também uma delegacia específica para a área.

— Quando não há especialização, há risco maior de esses casos serem diluídos na análise dos promotores e de a sua importância ser sub-representada entre os crimes — adverte.

Mais denúncias

Um dos dados mais notáveis do trabalho é o crescimento registrado no número de denúncias entre 2010 e 2016 (período analisado pelo levantamento): foram apenas 10 denúncias no primeiro ano da década, mas 129 no último ano da série histórica, um aumento de quase 1.200%.

Para a senadora Regina Sousa, esse número não significa necessariamente que o panorama do racismo esteja ficando pior com o passar dos anos — na verdade, pode até indicar uma melhora. Segundo a interpretação dela, a população discriminada está abandonando a passividade e se sentindo cada vez mais convencida da importância e da efetividade de procurar a Justiça. Com isso, casos que antes passavam incólumes transformam-se em processos reais e em punições:

— A lei veio para dar segurança às pessoas. Estamos ouvindo falar mais de casos de racismo porque as pessoas estão se sentindo amparadas, não têm mais vergonha ou medo de falar. Não é que houvesse menos racismo antes, é que as pessoas tinham medo. Estava meio incubado, disfarçado. Agora é visível porque as pessoas botam a boca no mundo — disse a senadora.


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