Na semana passada, entrou em vigor a Lei de Migração (Lei 13.445/2017). As regras deveriam ter marcado o início de uma era de segurança jurídica, transparência e desburocratização da política migratória para o Brasil. Apesar de a Lei de Migração ratificar a Constituição, a professora de direito internacional Carolina Claro, da Universidade de Brasília (UnB), considera que o decreto de regulamentação (Decreto 9.199/2017) criou restrições à garantia dos mesmos direitos a nacionais brasileiros e imigrantes.

Quando pôs abaixo o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, a nova lei, aprovada pelo Senado em abril, tirou do imigrante o rótulo de ameaça aos interesses nacionais e à segurança pública e o elevou à condição de um ser humano pleno de direitos contrabalançados por obrigações civis, penais e tributárias.

— Em um mundo no qual se fala de muros, impedimentos e restrições, estamos indo na direção contrária. A gente procura mostrar que a integração, a globalização não é somente econômica, é a globalização da convivência entre os povos — disse Tasso Jereissati (PSDB-CE), relator do projeto.

No entanto, o decreto reduz os benefícios previstos na lei e diminui o enfoque humanitário, conforme se queixam parlamentares, especialistas, organizações internacionais e a Defensoria Pública da União.

— A forma com que o decreto foi preparado estabelece novas discriminações e até criminaliza o fato de ser imigrante — protestou a deputada Maria do Rosário (PT-RS).

O projeto foi construído durante sua tramitação no Congresso com ampla participação da sociedade civil e de organizações internacionais, segundo Carolina. Já para o decreto, o governo realizou apenas uma audiência sobre o tema e disponibilizou a minuta do texto em uma consulta pública considerada insuficiente pelos envolvidos.

— O decreto é extremamente discricionário — reclama a professora da UnB.

Para o defensor público da União Gustavo Zortea, alguns artigos do decreto geram problema de legalidade. No artigo 123 da Lei de Migração, exemplifica ele, está previsto: “Ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias”. Já o artigo 211 do decreto diz que “o delegado da Polícia Federal poderá representar perante o juízo federal pela prisão ou por outra medida cautelar”.

— Não se pode estabelecer uma medida cautelar sem que haja uma lei que a conforte.

Outro ponto controverso é o artigo 54, que estabelece que a condenação com sentença transitada em julgado poderá causar expulsão do estrangeiro. O decreto permite instaurar um procedimento de expulsão antes de uma decisão da Justiça para a qual não haja mais recurso.

— Há casos em que a pessoa é condenada em primeira instância, mas recorre e é absolvida em segunda — diz Zortea.

Um dos benefícios trazidos pela lei, do ponto de vista da Organização Internacional para Migrações (OIM), é a desburocratização das “avenidas migratórias”, dos caminhos enfrentados para entrar regularmente em um país. A lei extingue o visto permanente, mas permite o temporário.

— Quanto mais imigrantes chegarem regularmente, mais estarão protegidos pelo Estado e menos vulneráveis às redes criminosas — explica Marcelo Torelly, da OIM.

Retirada compulsória

A lei põe fim a prisões por razões migratórias e a deportações imediatas. São três tipos de retirada compulsória: a repatriação, a deportação e a expulsão. A repatriação (processo de devolução do estrangeiro ao seu país de origem) ocorre quando o imigrante é impedido de ingressar em território nacional pela fiscalização fronteiriça e aeroportuária brasileira. Antigamente, qualquer imigrante sem a documentação correta poderia ser privado de liberdade e, consequentemente, deportado (retirado do país pela Polícia Federal). Agora, os ilegais em território brasileiro serão autuados e terão direito a assistência jurídica pela Defensoria Pública para tentar permanecer no país.

Com a lei atual, estrangeiros sem os documentos adequados na fronteira, que estejam em situação de refúgio, que não tenham pátria, que necessitem de ajuda humanitária ou as crianças desacompanhadas serão acolhidos no Brasil. A expulsão só será utilizada caso o imigrante cometa um crime passível de pena privativa de liberdade. A expulsão era perpétua, salvo se revogada por decreto do Executivo. Com a nova lei, o expulso fica proibido de retornar ao país pelo dobro do tempo da condenação.

O Estatuto do Estrangeiro impedia a regularização do imigrante ilegal no país. Agora, pessoas nessa situação podem solicitar autorização de residência (visto temporário) alegando motivos como tratamento de saúde, engajamento em um trabalho, chance de se reunir à família e obtenção de acolhida humanitária.

Oportunidades

Os estrangeiros que vêm morar no Brasil são, em sua maioria, de países fronteiriços, como Bolívia, Colômbia e Argentina, sobretudo em busca de trabalho. Mas cerca de 73 mil haitianos pediram refúgio no Brasil entre 2010 e 2016 devido à situação crítica do país após o terremoto de janeiro de 2010. O refúgio, porém, não se enquadra em casos de questões econômicas e ambientais.

Refugiados são pessoas que sofrem algum tipo de perseguição individual motivadas por opinião política, raça ou nacionalidade ou que fogem de uma violação generalizada de direitos humanos. Não estão submetidos à Lei de Migração, e sim à Lei 9.474/1997. Para superar esse obstáculo legal, o Brasil já vinha concedendo vistos humanitários aos haitianos.

— A nova lei avança no sentido de formalizar essa que já é uma boa prática do Estado brasileiro — avalia Torelly.

Em matéria de cooperação internacional, a nova lei autoriza acordos por meio dos quais um imigrante condenado no Brasil possa cumprir pena em seu país de origem. Da mesma forma, um brasileiro residente no exterior poderá ser transferido para o Brasil, obtendo como a comutação da pena de prisão perpétua em privação temporária de liberdade, explica o consultor legislativo do Senado Tarciso dal Maso.

— Não podemos legislar para uma aplicação no exterior, mas há mecanismos para facilitar a volta dessa pessoa, permitir que se façam acordos.

Governança

No Brasil, questões relativas a migrações são atendidas pelos Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e do Trabalho e pela Polícia Federal. Essa variedade de instituições causa problemas no acesso a informações corretas pelos imigrantes.

O francês Paul Sepaniak chegou a Brasília em 2012 com o objetivo de empreender no setor gastronômico. Por causa dos atropelos burocráticos (que a lei e o decreto parecem distantes de resolver), voltará em breve para a França.

— O caminho até as informações poderia ser mais simples e os preços, tabelados — afirma.


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