Manipulação de dados e notícias falsas põem internet em xeque
Da Redação | 10/04/2018, 12h44Hoje o bilionário Mark Zuckerberg terá que depor no Senado dos Estados Unidos, um sinal claro de que a sociedade e o Estado querem de volta parte do poder conquistado nas últimas duas décadas pelos gigantes da tecnologia das comunicações. Amanhã Zuckerberg também deverá explicar à Comissão de Energia e Comércio da Câmara do país a utilização de dados e informações pessoais de 87 milhões de usuários do Facebook, entre os quais 443 mil brasileiros, em estratégia de manipulação eleitoral empreendida pela consultoria Cambridge Analytics.
A iniciativa do parlamento norte-americano não é isolada. Apesar da cultura liberal e avessa a controles estatais que norteia a internet em seu formato atual, são constantes os esforços de instituições tradicionais, como a Comissão Europeia, para regular o compartilhamento de conteúdos em rede.
No Brasil, o Senado tem se mobilizado em torno do assunto: em 21 de março, por exemplo, o Plenário foi transformado em sessão temática para tratar de notícias falsas, por iniciativa de Telmário Mota (PTB-RR). O senador sugeriu a criação de delegacias especializadas para dar celeridade na investigação das notícias falsas propagadas na internet, tanto sobre o autor como sobre quem reproduz o conteúdo.
— Se criássemos esses juízos especiais para isso, com delegacias especiais, em 72 horas nós teríamos já a punição ou a localização do responsável — observou.
O debate teve a participação de autoridades como o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Tarcísio Vieira, para quem as chamadas fake news foram apontadas como um dos desafios das eleições de 2018, ao lado do financiamento de campanha e do voto impresso.
O TSE tem um conselho consultivo de combate às fake news nas eleições, explicou Vieira. Para ele, apesar da dificuldade do Judiciário em lidar com o tema, a legislação brasileira avançou bastante com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 2014 ), que prevê punição para a divulgação de notícias falsas, e a reforma política aprovada em 2017, que trata da questão.
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direito Digital e procurador do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Frederico Ceroy, o combate às notícias falsas passa pela checagem da informação para derrubada do conteúdo por meio dos termos de uso e política de privacidade. Ele apoia a ação conjunta das autoridades com as plataformas e sugere a legislação alemã como modelo.
Adolescentes
O tema já chamava atenção dos senadores no ano passado.
— A internet tomou conta da vida da gente — observou Regina Sousa (PT-PI) ao abrir, em 29 de junho, uma reunião da Comissão de Direitos Humanos (CDH), da qual é presidente, sobre o uso da internet e o aumento dos crimes no ambiente cibernético.
A preocupação era com a vulnerabilidade de crianças e adolescentes às ocorrências de automutilação e suicídio ligadas ao desafio chamado Baleia Azul.
— Os pais não podem terceirizar a educação dos filhos, repassar para as escolas — reforçou José Medeiros (Pode-MT).
Em 6 de dezembro, a Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) discutiu o projeto de Ciro Nogueira (PP-PI) que propõe “a suspensão do funcionamento ou o bloqueio de acesso de aplicação de internet que incentive ou promova a prática de crime” (PLS 169/2017). O projeto muda o Marco Civil da Internet e chega a prever o bloqueio absoluto para sites hospedados fora do Brasil.
Uma forma de melhorar o ambiente na web é a criação de canais de denúncias e formação de pactos entre organismos da sociedade civil, empresários e o poder público, segundo Thiago Tavares, diretor-presidente da SaferNet Brasil, presente ao debate. Em 12 anos, a ONG recebeu 3,9 milhões de denúncias de conteúdo criminoso ou abusivo em seu canal. Tavares considera mais produtivo retirar conteúdos específicos, por meio de decisões judiciais, do que bloquear páginas, como uma garantia da liberdade de expressão.
A lei já não exclui da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, observou a procuradora regional da República e coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento aos Crimes Cibernéticos, Neide Cardoso de Oliveira. Ela disse acreditar que propostas nessa linha nasceram de resistências do Whatsapp a entregar dados à Justiça.
A retirada de conteúdo, com identificação dos infratores, é o que também prefere o presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), Demi Getschko. Dentro da linha de que se deve punir o criminoso e não plataformas usadas por bilhões de usuários, ele chamou atenção para a dificuldade do controle de conteúdos no ambiente volátil da rede.
— Se você tem um site considerado inadequado, o mais provável é que ele se dilua em muitos sites, e você não vai tapar todos.
Em entrevista à Agência Senado, Getschko elogiou o Marco Civil da Internet, que tem como fundamentos a liberdade de expressão e o uso responsável da rede.
— É uma lei que desde o começo recebeu o aplauso internacional dos que entendem do assunto. O fundamento do marco civil é preservar os conceitos originais da internet e, portanto, gerar um arcabouço de direitos e deveres dos internautas. Eu teria medo de uma alteração sem uma introspecção profunda.
Em boa parte dos 32 artigos do marco, os legisladores optaram por fixar as diretrizes a serem seguidas na rede. A norma prevê um grupo restrito de punições relacionadas com infrações à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros, mesmo que o responsável pelo serviço ou aplicação que armazenou as informações que opere por meio de filial ou de representação no Brasil.
Cooperação
Seja como for, o Poder Judiciário tem como exigir o fornecimento de dados necessários a investigações criminais. Foi o que fez a Justiça Federal ao aplicar na semana passada uma multa de R$ 111,7 milhões ao Facebook “por não colaborar com a Operação Maus Caminhos, da Polícia Federal, que investiga desvios de verbas na saúde”, conforme publicou o jornal Folha de S.Paulo.
Segundo a Folha, a empresa solicita que o pedido de informações de usuários seja feito pelo Brasil diretamente ao governo dos Estados Unidos. A cooperação internacional é, portanto, uma variável a ser mais bem equacionada. O procurador regional da República Vladimir Aras disse na CCT que há momentos em que a polícia, o Poder Judiciário e o Ministério Público são demandados a investigar “crimes gravíssimos”, que atingem pessoas no Brasil e no exterior, mas a investigação fica “impedida, em função de dificuldades técnicas reais e de falsas dificuldades jurídicas”.
No Brasil, os crimes cometidos na internet são puníveis de acordo com leis que modificaram o Código Penal. É o caso da Lei 12.737, de 2012, conhecida como Lei Carolina Dieckman, em homenagem à atriz que teve fotos íntimas publicadas sem sua autorização. Invadir dispositivo com o fim de obter, adulterar ou destruir dados é um delito que pode levar a detenção de três meses a um ano e multa. Divulgar o conteúdo pode aumentar a pena de um a dois terços.
Na semana em que foi celebrado o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, o Senado aprovou projetos de combate à violência de gênero. Um deles, o PLC 186/2017, delega à Polícia Federal a atribuição de investigar crimes associados à divulgação de mensagens de conteúdo misógino (propagação de ódio ou aversão às mulheres) pela internet. O projeto foi convertido na Lei 13.642, de 2018.
Outra proposta, o PLC 18/2017, determina a reclusão de dois a quatro anos, mais multa, para quem cometer o crime de “vingança pornográfica” — o registro ou divulgação de cenas de intimidade sexual, sem autorização de um dos envolvidos. A proposta retornou à Câmara.
Apologia
Os senadores têm pela frente projeto enviado pela Câmara, o SCD 2/2018, que pune a divulgação de imagens de estupro. O texto, aprovado em 7 de março, é um substitutivo ao PLS 618/2015, de Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM). O projeto da senadora foi mesclado a outros textos, de modo que o substitutivo também prevê a punição para quem publicar cenas de sexo e nudez desautorizadas e para a apologia ou incitamento ao estupro.
Vanessa lembra que a reação de internautas contribuiu para que ela avaliasse a dimensão dos casos de estupro coletivo ocorridos em 2015 e elaborasse o projeto. O crime se tornou conhecido porque os estupradores divulgaram as cenas em rede social, assinala.
Há menos de um mês, o país viveu uma junção especialmente controversa de notícia falsas com intolerância política e ideológica depois do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco. O rastro da campanha difamatória contra a parlamentar nas redes sociais foi contido apenas depois de uma campanha legalista movida pelos próprios internautas. A vereadora do PSol foi acusada, por exemplo, de ter ligações com traficantes de drogas e terroristas.
Estudo acadêmico feito pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) mostra que uma notícia falsa tem muito mais chance de se propagar que uma verdadeira. Outro trabalho, feito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), relaciona radicalização política com notícias falsas.
O Conselho de Comunicação Social do Congresso estuda propostas para coibir a prática, como informou o presidente do colegiado, o cientista político Murilo de Aragão. Entre elas está o projeto (PLS 473/2017), de Ciro Nogueira, sobre a criação de mecanismo para identificar quem posta informações falsas nas redes sociais e a responsabilização das plataformas digitais pela disseminação do material. Outra proposta em debate, a Sugestão 62/2017, é mais específica. O texto, apresentado por meio do projeto Jovem Senador e relatado por Telmário na CDH, prevê punição a provedores que descumprirem ordem judicial de retirar conteúdo falso da rede.