Tatiana Beltrão

A água que cobriu cidades de Rondônia nos últimos meses deixou mais do que estradas e bairros destruídos, milhares de desabrigados e prejuízos estimados em R$ 4,2 bilhões. A enchente histórica do Rio Madeira (que chegou a 19,74 metros, dois acima da pior cheia registrada até então) deixou também um aviso: o de que o estado precisa se preparar para novos avanços da água. O plano de reconstrução a ser encaminhado pelo governo rondoniense à União até o fim deste mês propõe medidas para “construir um estado resiliente a desastres”, fortalecendo a capacidade de resistência dos municípios com ações como realocação de bairros inteiros, estruturação da defesa civil e obras como um muro de contenção, em Porto Velho, para evitar que o rio volte a engolir a cidade.

 

Os 32 mil desabrigados e desalojados no estado — e outras dezenas de milhares no Acre, Amazonas e Pará, também atingidos pela enchente dos Rios Madeira e Acre — passaram a engrossar uma estatística crescente de pessoas afetadas por desastres naturais no Brasil. Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) 2013, divulgada pelo IBGE em abril, as enchentes e enxurradas desabrigaram ou desalojaram 2,1 milhões de pessoas entre 2008 e 2012. Nesse período, enchentes atingiram 1,5 mil municípios (quase 28% do total), mesmo número de afetados por enxurradas. Alagamentos foram registrados em 2 mil cidades; processos erosivos, em 1,1 mil; e deslizamentos de terra, em 895. Esta foi a primeira vez que a Munic incluiu questões sobre planejamento urbano voltado para prevenção, redução e gestão de riscos de desastres naturais — um indício da importância que o tema vem ganhando na agenda pública brasileira.

 

Legislação

 

Há dois anos, o país ganhou uma legislação destinada a estruturar o setor. A Lei 12.608/2012 determinou a organização e o fortalecimento da defesa civil em todos os níveis — federal, estadual e municipal — e sistemas integrados de monitoramento e alerta. Falta muito para estados e municípios cumprirem o estabelecido pela norma — a Munic mostrou, por exemplo, que 48% das cidades brasileiras ainda não têm nenhuma ação de gestão de risco e prevenção de desastres. Também é preciso regulamentar pontos importantes da lei, reduzir a burocracia no repasse de verbas e definir fontes estáveis de recursos, segundo parlamentares envolvidos com o tema. O governo federal, porém, sustenta que, dois anos depois da lei, o país está mais preparado para enfrentar ­calamidades.

 

Medidas previstas na legislação estão em curso. Ainda em 2012, o Planalto lançou o Plano Nacional de Gestão de Risco e Resposta a Desastres Naturais, que envolve sete ministérios, com participação dos estados e municípios e entidades da área. Sistemas de alerta e monitoramento, outra determinação da lei, estão sendo implantados. O Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad, vinculado à Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil — Sedec, do Ministério da Integração) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden, do Ministério da Ciência e Tecnologia) funcionam 24 horas por dia, todos os dias, coletando e analisando dados de centros de pesquisa, estações meteorológicas, pluviômetros e radares para monitorar riscos e emitir alertas de enxurradas e deslizamentos.

 

O Cenad, com apoio do Serviço Geológico do Brasil, está mapeando áreas de risco em 821 municípios considerados prioritários pelo histórico de desastres e vítimas (veja no mapa a localização das cidades e, no quadro Saiba Mais, a lista dos municípios por estado). Até agora, 468 já foram mapeados, segundo a Sedec. O governo ressalta que obras de prevenção, como contenção de encostas e drenagem, estão sendo feitas por meio do Ministério das Cidades e de outras pastas e por programas como o PAC Prevenção. Há ainda ações de fortalecimento das defesas civis estaduais e municipais, com capacitação de pessoal e envio de veículos e equipamentos.

 

Em Rondônia, alguns efeitos dessa estruturação já foram sentidos. Apesar da extensão da cheia, não houve registro de mortos ou feridos graves. Para participantes de audiência pública promovida pela Comissão de Reforma Agrária (CRA) do Senado neste mês para discutir a recuperação do estado, a atuação da defesa civil foi decisiva para salvar vidas. Alertas foram feitos com antecedência e a população pôde ser retirada com segurança, avalia o senador Acir Gurgcaz (PDT-RO), que presidiu o debate. Ele critica, no entanto, a lentidão do processo de envio dos recursos federais para recuperação do estado.

 

— Não falta vontade do governo, falta é agilidade nos procedimentos. Nós precisamos de apoio agora. As pessoas começam a voltar para casa, outras nem têm mais casa. Como proibir que voltem para áreas de risco se não dermos alternativa? Temos que criar bairros e distritos novos, erguer as estradas. Não sabemos se no ano que vem vai ter outra enchente, ou se vai ser daqui a 5 ou 50 anos. Não podemos esperar, temos que planejar agora.

 

Gurgacz espera que a Medida Provisória 631/2013 (convertida no PLV 3/2014), aprovada pelo Senado neste mês, agilize os processos de liberação de verbas. A medida, que aguarda sanção, possibilita repasses diretos e antecipa o envio de recursos. Também permite o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) em obras de reconstrução e o emprego da verba em prevenção.

 

O senador Jorge Viana (PT-AC) cobrou agilidade na recuperação do Acre, que, com a BR-364 submersa pelo Madeira, ficou isolado. O abastecimento e o escoamento da produção foram prejudicados. Ele reivindicou linhas de crédito especiais para socorrer o setor produtivo e os comerciantes do estado.

 

— Tenho experiência como prefeito e governador e nunca vi desastre natural como esse — disse, ao sobrevoar a região.

 

Estruturação

 

O secretário nacional de Defesa Civil, general Adriano Pereira Júnior, argumenta que os efeitos da lei já são percebidos.

 

— Estamos passando por um período de muitos desastres. Do fim de 2013 até agora, tivemos ocorrências na Baixada Fluminense (RJ), Espírito Santo e Minas, e agora no Norte. E nossa leitura é que o sistema de defesa civil respondeu. Pode não ter respondido 100% a tudo, porque ainda está sendo construído, mas mostrou sua capacidade no que é fundamental: salvar vidas.

 

Uma das dificuldades, explica, é a falta de cultura de defesa civil no Brasil, aliada à diversidade climática, topográfica, econômica e social de um país imenso, com mais de 5 mil municípios. A maioria das cidades tem menos de 20 mil habitantes; a maior parte não tem corpo de bombeiros. “Como convencer uma prefeitura pequena, que nunca passou por um desastre, a investir recursos?”, questiona, relatando que muitas vezes só depois da calamidade os governos locais se dão conta do risco.

 

— Você não muda a situação apenas com a lei. Temos que usar a nova legislação para mudar as pessoas. Vamos achar soluções, mas elas virão à medida que estivermos pensando, vivenciando, criando cultura de defesa civil.

 

Marco regulatório

 

A legislação que hoje regula a defesa civil foi concebida após a maior tragédia natural ocorrida no país. Em janeiro de 2011, enxurradas e deslizamentos de encostas provocados por chuva intensa, combinada à falta de planejamento urbano, deixaram mais de 900 mortos na Região Serrana do Rio de Janeiro. Nove meses depois, o governo enviou ao Congresso a MP 547/2011. A medida estabelecia a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, definia responsabilidades aos integrantes do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sindpec) e autorizava criação de medidas de monitoramento de desastres. A justificativa, assinada por vários ministros, afirmava que desastres naturais recorrentes “afetaram de forma drástica” vários municípios, demonstrando “necessidade urgente de incorporar nas políticas urbanas municipais as componentes de planejamento e gestão voltadas à prevenção e mitigação de impactos”. Na Câmara, a MP foi complementada, gerando um projeto de lei de conversão. Os parlamentares — especialmente o relator, deputado Glauber Braga (PSB-RJ) — ampliaram as medidas previstas. Quando chegou ao Senado, em março de 2012, o PLV 4 já era chamado de Lei da Defesa Civil. O relator na Casa, senador Casildo Maldaner (PMDB-SC), propôs várias emendas para aperfeiçoar a proposta. Porém, abriu mão das alterações depois que o Planalto prometeu enviar ao Congresso, já no mês seguinte, um marco regulatório. Assim, o texto foi aprovado pelo Senado sem alterações. Em abril daquele ano, virou lei, com diversos pontos que ainda deveriam ser regulamentados pelo governo. Até hoje, a regulamentação não aconteceu. A Sedec afirma que está preparando a proposta, que será encaminhada à Casa Civil.

 

Para Casildo, a legislação trouxe avanços. Ele costuma comparar a lei a um tripé e diz que, dos três eixos que deveriam sustentar o setor, dois funcionam. O primeiro seria a estruturação organizacional que a Lei 12.608 conseguiu promover na defesa civil no país. O segundo se refere ao monitoramento de riscos, que também avançou, na avaliação do senador. Ele diz que o mapeamento das áreas vulneráveis é fundamental e que os sistemas de alarme já mostram resultados:

 

— Nisso o Brasil está se estruturando. Houve investimentos.

 

O eixo que falta no tripé, segundo Casildo, é a fixação de fontes específicas de verbas para o setor, que hoje depende do recurso orçamentário que o governo colocar. Para o senador, sem uma fonte segura de verbas, as ações continuarão dependentes da liberação de créditos extraordinários do Orçamento, o que prejudica o planejamento e, principalmente, a prevenção. Casildo (que foi relator também da Comissão Temporária de Alterações no Sistema Nacional de Defesa Civil, criada no Senado em 2011) defende a aprovação de dois projetos que tramitam na Casa. O PLS 745/2011, da comissão, reestrutura o Sindpec e sugere novas fontes de recursos para o Fundo Especial para Calamidades Públicas (o Funcap, previsto pela Lei 12.340/2010 e alterado agora pela MP 631). Entre elas, a destinação de 1% do valor dos prêmios de todos os seguros contratados no país (exceto o DPVAT). O PLS 388/2008, do senador, propõe fontes de recursos para o setor, criando a Contribuição Social para a Defesa Civil.

 

“Todos nós”

 

Para o deputado Glauber Braga, a lei ampliou a cultura de prevenção no país. A legislação fortalece, por exemplo, a atuação das coordenações municipais de defesa civil, que podem, com base na norma, cobrar do prefeito o cumprimento de medidas. Ele avalia que também houve avanço na estrutura da área, como a capacidade de prever ameaças e alertar a comunidade para que se dirija a um ponto seguro.

 

— O ideal é que não houvesse  moradia em área de risco. Mas como isso está longe da realidade, salvar vidas é importante.

 

Porém, falta algo fundamental, que é a regulamentação, cobra o deputado. Pontos estratégicos ainda dependem dela para se efetivarem. Um exemplo é a obrigatoriedade da elaboração de planos de contingência pelas cidades. Outro item que precisa sair do papel é a inserção da defesa civil nas escolas, estratégia imprescindível para modificar a cultura brasileira de responder ao desastre depois que ele acontece.

 

Braga viu o problema de perto. Morador de Nova Friburgo, ele estava em casa quando a cidade foi arrasada pela chuva, em 2011. O deputado perdeu casa, amigos e vizinhos. Desde então, a defesa civil virou uma das principais bandeiras do mandato que ele acabara de assumir na Câmara.

 

— Nossa tarefa é sensibilizar aqueles que não passaram por um desastre para que não precisem viver isso para se precaver.

 

Essa conscientização é o ponto-chave para o desenvolvimento da cultura de defesa civil no país, sustenta o diretor do Departamento de Minimização de Desastres da Sedec, Armin Braun. Ele conta que, quando começou a trabalhar com defesa civil, há 15 anos, costumava ouvir nos cursos de capacitação a frase “Defesa civil somos todos nós”.

 

— Achei bonito, mas logo me dei conta de que o “todos nós” eram apenas os que trabalhavam com defesa civil! Hoje começa a haver a consciência de que todas as esferas de governo têm que fazer parte, a sociedade também, e não só os movimentos civis organizados, mas cada cidadão. Isso não se faz de uma hora para outra, precisa de muito trabalho até que o cidadão entenda que, ao jogar um saco plástico na rua, pode causar mal a ele e à comunidade onde vive. Esse é o grande avanço: transformar o “Defesa civil somos todos nós” em algo que todos compreendam.

 

A participação da sociedade será tema da 2ª Conferência Nacional de Defesa Civil, em novembro. Desde o ano passado, cidades e estados promovem conferências regionais para preparar a discussão. Outro ponto a ser debatido é a organização do voluntariado brasileiro para atuar em desastres, área que, de acordo com o secretário e com o diretor da Sedec, já está sendo planejada pela secretaria.

 

— O brasileiro é solidário, mas nunca organizamos o voluntariado, como outros países. Aqui as pessoas vão para as áreas de desastre ajudar, mas não foram treinadas e não há organização para dizer a elas o que fazer. Queremos criar um sistema de formação de voluntários para que, na hora que soar o alarme, eles saibam qual a sua função e estejam capacitados para ajudar — afirma Adriano Pereira.


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