Há cinco anos, “o gigante acordou”. Essa frase, pinçada de uma combinação de trechos do Hino Nacional Brasileiro, tornou-se o símbolo de junho de 2013. Naquele mês, milhões de pessoas saíram às ruas do país em protestos imprevistos e largamente espontâneos. Com pautas em geral difusas e sem lideranças destacadas, surpreenderam as autoridades e motivaram iniciativas institucionais improvisadas.

Ao mesmo tempo, junho de 2013 escancarou uma vontade de participação popular que se encontrava dormente no peito dos brasileiros. Estimulados pelo espírito das multidões, os cidadãos deram voz a demandas por serviços públicos de maior qualidade e combate à corrupção.

Para muitos, foi a primeira experiência de atividade política reivindicatória, e quase nunca a última, já que participar da vida política e da cobrança por melhores serviços públicos tornou-se rotina para parte da população.

Um exemplo de participação são organizações como o Observatório Social do Brasil. Presente em 135 municípios, o observatório monitora a execução orçamentária e a realização de licitações, entre outras atividades do setor público.

Aumento de tarifa de transporte desencadeou protestos em todo o país

Aumentos nas tarifas de transportes públicos trouxeram irritação aos habitantes de diversas capitais no início do ano de 2013, e pequenos atos aconteceram nessas cidades. No mesmo período, o Brasil se preparava para sediar a Copa das Confederações de futebol, evento para o qual havia investido grandes somas de dinheiro público em grandes estádios. Em face disso, o custo do transporte público tornou-se ainda mais incômodo e os questionamentos logo transbordaram para os serviços públicos de forma geral — escolas, hospitais, polícia, saneamento. Também se falava em intensificação do combate à corrupção.

Depois da ação violenta da polícia contra os manifestantes do Movimento Passe Livre, em São Paulo, em 13 de junho, a insatisfação ganhou o país. No final da tarde de 17 de junho, sem muito aviso prévio, pessoas começaram a tomar as ruas de dezenas de cidades. Quando a noite caiu, as imagens impressionavam: mais de 250 mil cidadãos lotavam praças e ruas. Em Brasília, parte da multidão ocupou a plataforma superior do Congresso Nacional. Três dias depois o contingente foi ainda maior: mais de 1 milhão de pessoas em mais de 100 cidades. As manifestações mostravam resiliência, e as pautas, embora difusas, contagiavam.

As autoridades começaram a responder. Algumas prefeituras que haviam anunciado aumento das tarifas de transporte recuaram. No dia 21, a então presidente da República, Dilma Rousseff, fez o primeiro pronunciamento sobre os acontecimentos, afirmando que trabalharia por uma ampla reforma política. Três dias depois, ela se reuniria no Palácio do Planalto com os integrantes do Passe Livre, mas as negociações não avançaram porque a ideia de tarifa zero foi considerada utópica pelo governo.

Dilma encaminhou à Câmara dos Deputados proposta de plebiscito para determinar a convocação de uma assembleia constituinte que seria encarregada de reformar especificamente dispositivos da Constituição sobre o sistema político — a ideia também não foi à frente.

Governo e parlamentares tocaram uma agenda de votações destinada a aplacar os protestos: os royalties obtidos com o présal foram destinados a financiar educação e saúde públicas; a corrupção viou crime hediondo; a Câmara começou a discutir o fim do voto secreto na cassação de deputados; e foi rejeitada uma proposta de emenda constitucional que retiraria poderes investigativos do Ministério Público.

O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Cavalcanti, recordou que já havia mobilização da categoria contra a PEC há meses e isso contribuiu para que a pauta estivesse em evidência quando os protestos irromperam.

Analistas destacam causas e resultados dos protestos

O Brasil não foi o único país a experimentar um levante social de grandes dimensões nesta década. Começando em 2011, nove nações da América Latina presenciaram e participaram de eventos similares.

A cientista social Beatriz Pedreira explicou que esses acontecimentos têm em comum o fato de expressarem o amadurecimento da primeira geração que nasceu após o período de redemocratizações da região.

— É uma geração que não tem medo de lutar contra o status quo porque não viveu repressão. Vivendo sob a democracria, por mais que a cultura não esteja enraizada, ela tem a ideia de que pode transformar a sociedade. Esses fatos criam um ambiente para que ocorra a tomada das ruas.

O professor de filosofia Bruno Cava destacou que, além das causas subjacentes mais amplas, as reações iniciais das autoridades aos protestos — repressão policial e minimização da seriedade das demandas — podem ter atraído mais atenção e simpatia para os manifestantes e suas causas. Isso teria motivado a entrada em cena de um novo contingente de pessoas.

— Se tem algo que agrava a sensação de privação e sofrimento é estar sendo aviltado pelos governantes. A tentativa de reprimir as primeiras manifestações tiveram efeito inverso. Estamos no campo das hipóteses, mas talvez tenha a ver com o acúmulo despudorado de propaganda enganosa ligada aos megaeventos, um Brasil da vitrine que estava sendo vendido, levando o caldo das indignações para além do ponto de ebulição.

Para Beatriz, dos protestos emergiu uma nova categoria de lideranças: cidadãos que são capazes de mobilizar e de usar as tecnologias de comunicação para impulsionar iniciativas sociais. Isso significa ampliar a representatividade e a visibilidade de segmentos minoritários e marginalizados.

Ela também apontou que países como o Chile e o México veem o legado de seus movimentos se estender para a política institucional. No Brasil, isso acontece de forma mais “tortuosa” porque convivemos com o fator das grandes investigações de corrupção, que produzem descrença em relação ao poder constituído. No entanto, segundo ela, já se veem pequenos fenômenos localizados na política municipal e isso poderá ser mais percebido nas eleições de 2018.

— Veremos novas caras. As pessoas engajadas sabem que o lugar de transformação é na política, não fora dela.

Cava disse não acreditar que houve um legado institucional dos protestos de 2013, uma vez que o sistema político se apressou em restabelecer um comando narrativo. Isso foi feito, segundo ele, por meio de uma “falsa polarização” político-eleitoral destinada a instalar um clima de “pânico moral” que impedisse a consolidação de práticas desviantes.

No entanto, para ele, esse esforço não extinguiu por completo a impressão difusa deixada pelos eventos de 2013. Cava acredita que eles sempre estarão reverberando e influenciando futuras manifestações políticas e sociais.

— Não houve transposição num novo patamar de práticas institucionais. Em contrapartida, acontecimentos assim não nos deixam passar incólumes.

Governo e ONGs criam parcerias para melhorar serviços

A intervenção social sobre o poder público ganhou um novo olhar com os protestos de 2013 e as suas reivindicações por mais recepção às demandas da sociedade. De um lado, a própria sociedade se organiza para se fazer ouvida; do outro, instâncias do Estado se abrem e se adaptam para se tornarem mais permeáveis aos cidadãos, incorporando intervenções populares.

Um exemplo desse segundo caso é a Virada do Cerrado. O evento, organizado no Distrito Federal desde 2015, consiste em uma maratona de ações de promoção da educação ambiental em diversos locais do DF. Também serve como ponto de encontro para grupos e atores sociais que são ativos na área ambiental, tanto com o governo quanto uns com os outros.

A operação da Virada passou por uma alteração fundamental após a primeira edição, conforme explica a coordenadora Claudia Sachetto, assessora especial da Secretaria do Meio Ambiente do Distrito Federal. Inicialmente, um único núcleo concentrava todo o planejamento das atividades, mas isso mudou

— Houve um pedido da própria sociedade para engajar mais as pessoas, e foram criados os comitês locais. Hoje, cada região tem seu comitê. Em alguns o governo nem está envolvido, a sociedade civil sozinha puxa as atividades.

Sachetto diz acreditar que uma relação saudável de cooperação entre governo e sociedade é produtiva pois aumenta o alcance das políticas públicas e permite que elas sejam elaboradas com mais propriedade e efetividade.

— Estamos vindo de uma crise nacional profunda e sabemos que as pessoas não estão muito crentes no futuro. Mas a Virada mostra para nós que a participação é possível e que as pessoas estão querendo influir nas políticas públicas das suas regiões.

O Observatório Social do Brasil exemplifica a organização da sociedade para interferir no trabalho do Estado. O Observatório é uma rede de técnicos e voluntários que está presente em 135 cidades de 16 estados. As unidades monitoram as atividades dos órgãos estatais, a atuação dos conselhos gestores, a execução orçamentária e a realização de licitações, entre outros aspectos do trabalho do setor público.

A diretora-executiva da coordenação Nacional da Rede de Observatórios, Roni Rodrigues, explica que uma das principais preocupações do Observatório é assegurar a transparência do setor público. Para isso, as unidades atuam próximo aos órgãos oficiais, verificando editais e contratos e analisando a atuação dos conselhos setoriais, que fiscalizam o governo local.

Esses conselhos são motivo de especial atenção, porque, tecnicamente, estão na linha de frente da representação social diante da prefeitura e suas secretarias. Segundo Roni, muitas vezes essa atuação deixa a desejar.

— Nas cidades menores, em geral os conselheiros são indicados e não escolhidos em conferência. Não sabem o que estão fazendo lá, não sabem do que se tratam os planos básicos, apenas assinam a prestação de contas.

Quando esses problemas são verificados, o observatório procura parcerias com o Ministério Público, os tribunais de Contas e a Controladoria-Geral da União para capacitar os conselheiros e aprimorar a sua atuação.

Para a diretora-executiva, o Brasil tem um bom arcabouço de leis referentes ao controle social. No entanto, as instâncias oficiais que trabalham com isso são subfinanciadas. E também as não-oficiais: segundo Roni Rodrigues, há diversas iniciativas que poderiam se qualificar para editais públicos destinados à sociedade civil, mas inexiste uma boa alocação para essa área.

A instalação de observatórios em cidades deve partir de uma requisição da comunidade local. A central nacional se encarrega de montar e capacitar a equipe no município. Nos primeiros meses de 2018, a coordenação nacional recebeu solicitações de instalação de bases em 20 novos municípios, e até o fim do ano já estão previstas a criação de mais de 50 unidades — para contraste, a média anual de novos observatórios vinha sendo de 14.

O observatório deve começar a trabalhar com unidades estaduais em breve, mas o foco na atuação concentrada localmente continuará sendo prioritário. O objetivo disso é despertar uma cultura comunitária de fiscalização dos recursos no local onde eles são gastos.

— Uma grande massa da população começa a entender que a corrupção não está só em Brasília, mas em todas as cidades. É nos municípios que a vida acontece, onde o dinheiro é gasto, onde as pessoas estão mais próximas dele.


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