Em debate sobre o quadro geral da segurança pública, no dia 6 de março, senadores abriram espaço a um dos aspectos mais controversos da discussão sobre criminalidade e violência: a posse e o porte de armas de fogo por cidadãos comuns.

A possibilidade de o país vir a facilitar o uso em larga escala de alguns tipos de revólveres, pistolas e armas de cano longo foi rejeitada por pelo menos quatro parlamentares: Renan Calheiros (PMDB-AL), Jorge Viana (PT-AC), Humberto Costa (PT-PE) e Lídice da Mata (PSB-BA).

O posicionamento contrário antecipa embate travado atualmente na Câmara dos Deputados e que deve prosseguir no Senado em 2018, caso chegue à Casa um projeto que flexibiliza as regras do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003). Os defensores do PL 3.722/2012, do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), alegam que o estatuto deixou a população indefesa contra bandidos armados.

Pronto para votação no Plenário da Câmara, o texto foi batizado também de estatuto, mas com o complemento “de Controle de Armas”. O projeto propõe que qualquer cidadão tenha o direito de comprar e portar armas de fogo, inclusive quem responde a processo por homicídio ou tráfico de drogas. A proposta também reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a compra.

Hoje as regras são mais rígidas (veja quadro ao lado), apesar de o estatuto não proibir a compra de armas por não membros das forças de segurança. Aliás, desde 2004, quando as regras entraram em vigor, mais de 750 mil armas foram vendidas no Brasil, segundo dados do Exército. E pelo menos 190 mil novos registros foram concedidos para defesa pessoal, segundo o Mapa da Violência 2016.

A publicação informa que as mortes por arma de fogo (homicídios, acidentes, suicídios e ocorrências não esclarecidas) somaram 436,4 mil entre 2004 e 2014. Se observado um período mais longo, entre 1980 e 2014, atingiram a marca de 967.851 ocorrências, com amplo predomínio dos homicídios (830.240), representando 85,5% do total. A trajetória dos assassinatos nesses 34 anos é ascendente. O aumento foi de 592%, enquanto o crescimento populacional não passou de 70%.

Já o Atlas da Violência 2017, publicado pelo Ipea em cooperação com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que 71,9% (41,8 mil) dos homicídios registrados oficialmente no Brasil em 2015 (59.080) foram cometidos com armas de fogo. Na Europa, esse índice é de 21%. No mundo, é de 40%, segundo a ONU.

Da sanção do estatuto até 2007, observou-se uma queda nas mortes em todo o país por esse tipo de dispositivo. Mas a partir daquele ano, os registros cresceram, sobretudo, no Norte e Nordeste. No Rio Grande do Norte o aumento foi 303% entre 2005 e 2015.

Estudos

De acordo com o Atlas da Violência, um grande número de estudos internacionais mostra que a proliferação das armas de fogo faz aumentar o risco de homicídios, inclusive os feminicídios, suicídios e acidentes fatais envolvendo crianças.

Para o economista Daniel Cerqueira, um dos estudiosos à frente da publicação, a cada 1% de aumento da proliferação de armas de fogo, a taxa de homicídios cresce em torno de 2% nas cidades, por três motivos. A maior disponibilidade leva à queda no preço de armas no mercado ilegal. Em segundo lugar, aumentam as chances de um indivíduo armado sofrer homicídio ao ser abordado por criminosos. Por último, muitas situações, como brigas de bar, terminam em morte porque o portador de uma arma de fogo “acaba perdendo a cabeça”.

O Atlas da Violência faz menção ao projeto no contexto dos estudos científicos e de estatísticas desfavoráveis e aponta um caminho alternativo ao rearmamento: “Há a necessidade de se aprimorar o controle de armas no país”. E não apenas cumprindo a lei, mas melhorando os serviços integrados de inteligência policial, de modo a restringir os canais que permitem que as armas entrem ilegalmente no país. Ao mesmo tempo, deve-se proceder à “apreensão e destruição das armas no mercado ilícito”.

Não é o que pensa um dos mais ardorosos apoiadores da revisão do estatuto, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF):

— Em 2003, quase 60 milhões de cidadãos disseram não ao controle de venda de armas, mas o governo do PT, de forma ardilosa, apertou os requisitos para quem quiser ter uma — diz, referindo-se à regulamentação do estatuto publicada em 2003, durante o primeiro governo Lula.

Encarregado de conduzir as discussões que resultaram na materialização do estatuto quando ocupou o Ministério da Justiça, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o senador Renan Calheiros segue em outra linha:

— Todos os países do mundo onde houve controle de venda de armas tiveram redução no número de homicídios. A chance de uma pessoa que possua uma arma em casa ser morta em uma situação de assalto aumenta cinco vezes — disse, durante a sessão temática no Senado.

O senador afirma que a discussão atual é fruto da constatação de que as políticas para a segurança pública falharam e da presunção de que existem soluções fáceis para o problema.

— O Estado falha e, ao falhar, passa a impressão de que todo mundo tem que se armar.

Contrário a essa visão, o senador Wilder Morais (PP-GO) apresentou três projetos de lei: um deles convoca plebiscito sobre o porte e a posse de armas, outro autoriza a posse nas zonas rurais e um terceiro regulamenta o estatuto para adicionar essas alterações.

— É claro que o porte de armas será condicionado à conduta do cidadão. No entanto, não pode ser discricionário e arbitrário como vemos hoje. O estatuto foi implantado com a falsa promessa de reduzir a violência. Dez anos depois, é claro seu fraco desempenho perante os índices alarmantes de violência — diz Wilder.

Para o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, a revisão do estatuto tem forte conteúdo ideológico.

— Estão querendo cobrar do estatuto o que as políticas públicas não fazem. O controle de armas é uma agenda civilizatória.

Ex-secretária nacional de Segurança Pública, a advogada Isabel Guimarães chama a atenção para os movimentos cíclicos do processo legislativo.

— O Congresso Nacional funciona em ondas. Como estamos em uma crise de segurança pública, é normal que surjam propostas como essa. Mas as respostas costumam ser a produção de legislação de baixa efetividade. Enfraquecer ou renegar o estatuto é uma pauta permanente de quem acredita que os cidadãos poderiam se defender sozinhos.

A liberdade de autodefesa é o ponto de vista do senador Magno Malta (PR-ES).

— Se um bandido souber que um cidadão tem uma arma em casa, ele pode até entrar. Mas vai pensar dez vezes antes de entrar. Mas a senadora Lídice da Mata (PSB-BA) propõe um outro recorte para a campanha pela flexibilização, ao classificá-la como parte dos “interesses da indústria de armas”:

— Estão aproveitando a brecha da crise na segurança pública para colocar o tema em pauta.

Contra essa estratégia, o senador Humberto Costa cobrou na sessão temática uma posição mais firme do governo, que tem no ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, um crítico do rearmamento.

— A quantidade de projetos para flexibilizar o Estatuto do Desarmamento é enorme. É preciso que o governo também se envolva para impedir que a “bancada da bala” dê mais arma para quem quer que seja.

Para o senador Jorge Viana, tarefa útil para reforçar esse contraponto é olhar o que está acontecendo nos Estados Unidos. No dia 24, o maior movimento contra armas da história do país reuniu centenas de milhares de pessoas em Washington e outras cidades.

— Eles sabem o que é isso. Lá, um jovem de 18 anos não pode comprar uma cerveja, mas pode comprar um AR-15 e matar seus colegas, como aconteceu recentemente na Flórida. Noventa tragédias dessas foram registradas nos Estados Unidos, de 1982 para cá. E há uns malucos neste país que estão achando que armar o nosso povo é que vai ajudar a enfrentar a violência.

Ausência do Estado favorece entrada no crime, afirma especialista

Iranildo Gonçalves, de 47 anos, morador de Sobradinho II, no Distrito Federal, não esquece o dia em que foi agredido por policiais. Negro, pobre e morador da periferia, Iran, como é conhecido, estava destinado a trilhar o caminho seguido por vários companheiros seus: passar para a marginalidade. Em 1994, no entanto, fundou o Grupo Cultural Azulim, depois de ele e seus colegas serem injustamente classificados como uma gangue pelas autoridades. A iniciativa, antes intitulada Grupo de Jovens de Sobradinho II, adotou um novo nome após ser identificada pela cor negra “azulada” de seus membros, apelidados de “azulins” pela comunidade.

Os mais de 20 anos de experiência com trabalho entre os jovens permitem a Iran afirmar que a falta de políticas públicas é um campo fértil para que jovens da periferia caiam em atividades criminosas. O Azulim foi criado para combater a marginalização e lançou o Programa Jovem de Expressão, em parceria com a Caixa Seguros e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), atendendo em oficinas que vão de informática a dança terapêutica, além de manter uma casa de reabilitação para dependentes químicos.

Recentemente a atenção de Iran passou para a alta taxa de homicídios com armas de fogo. O Distrito Federal tem o 13º maior índice de homicídios do Brasil. De acordo com o Atlas da Violência 2016, a capital registra uma média de 2 assassinatos por dia e uma taxa de 33,1 casos para cada grupo de 100 mil habitantes — mais que os 29,1 da média nacional. A maior parte dos crimes acontece com arma de fogo. Em cidades goianas no Entorno de Brasília, a situação é ainda mais crítica, com taxa de homicídios de 51,6 por 100 mil habitantes.

Tragédias

Uma das pessoas que foram em busca do auxílio das ações da ONG é Washington Luiz Batista Alves, instrutor de capoeira, cuja vida é marcada por várias tragédias relacionadas com armas de fogo. No final dos anos 1990, em uma discussão banal, morreu um amigo. Em 2009, sua irmã morreu alvejada com cinco tiros. Em 2015, um filho de 24 anos foi morto em uma tentativa de latrocínio. E no passado, um sobrinho foi morto no Dia dos Pais, pelo mesmo motivo. Com exceção dos assassinos da irmã, os demais autores dos homicídios jamais foram encontrados.

Ele é totalmente contrário a um afrouxamento no controle de venda de armas.

— Se afrouxar, vamos ter que construir mais cemitérios — afirma.

Iran também é taxativo.

— Em vez de colocar uma arma na mão do cidadão, tem que colocar um caderno e uma caneta. A arma tira a vida.

Clube

A 52 quilômetros de onde Iran e Washington mantêm o projeto Azulim, funciona um dos mais tradicionais clubes de tiro do Distrito Federal. O Clube Esportivo de Atiradores, Colecionadores e Caçadores do Distrito Federal é o maior do gênero em Brasília, tem 17 anos e 3,1 mil sócios. Todos regulamentados, como afirma o responsável pelo clube, o instrutor de tiro Rodrigo Moreira, de 36 anos. Cada sócio paga uma anuidade de R$ 650, leva suas próprias armas e munições.

— Temos todos os tipos de sócios. De gerente a dono de fazenda — resume Moreira.

A maioria dos sócios, relata, começou a frequentar os cursos de tiro por hobby.

— Mas quanto mais a violência aumenta, mais pessoas procuram para defesa pessoal. Todos os associados têm que obedecer às regras fixadas pelo Exército, que é quem controla as atividades desse tipo de associação.

Moreira faz parte do contingente que defende a flexibilização do Estatuto do Desarmamento e apoia as iniciativas que tramitam na Câmara e no Senado com esse objetivo.

Para ele, antes da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, os bandidos tinham dúvida se uma casa tinha arma ou não. Hoje eles têm certeza que não existem armas, avalia:

— O estatuto deu segurança para os bandidos. A população tem que ter o direito de ter armas — conclui.


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