Consumidor lesado tem extenso leque de instâncias para reclamar
Da Redação | 21/08/2012, 00h00
Índios fazem ritual da luta dos guerreiros durante o Kuarup em homenagem a Darcy Ribeiro, no Alto Xingu (MT), quando a cerimônia religiosa incluiu reivindicações políticas
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Marcio Maturana
Qual a cor da sua pele? Branca, preta, parda, amarela? Os brasileiros em geral — inclusive muitos índios — respondem uma dessas alternativas. É raro ocorrer-lhes apontar a cor da pele como “indígena”. Sobre raça ou etnia, consideram-se guarani, xavante ou ianomâmi, também em vez de “indígena”. Por isso, o censo divulgado este mês pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mudou o questionário e conseguiu aproximar-se melhor da realidade. Resultado: dos 294 mil índios detectados em 1991, primeira vez que foram incluídos na pesquisa, passou-se para 897 mil em 2010 (0,4% da população do Brasil). Crescimento de 205% em 20 anos, cinco vezes mais que o da população geral do país.
O censo detectou 79 mil índios que não tinham optado por essa classificação, apesar de viverem em terras indígenas. Para esse grupo, perguntou-se também se eles se consideravam índios. Verificou-se até reconstrução de comunidades que supostamente não existiam mais, como os tamoios.
Marcos Sabarú, da etnia tingui-botó, em Alagoas, aponta ainda outros fatores para o crescimento estatístico. Ele é coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.
— O censo foi aonde não ia. Nas cidades, encontraram mais índios porque tem crescido a migração de quem busca melhores condições de educação e saúde. Na zona rural, muitas comunidades passaram a se assumir como indígenas para lutar melhor contra a invasão de empreendimentos como rodovias e barragens. Há até gente que se diz indígena na ilusão de que vai conseguir alguma vantagem— disse Sabarú.
Para a Fundação Nacional do Índio (Funai), os números demonstram acertos da política governamental. O antropólogo Artur Nobre Mendes, coordenador-geral de Gestão Estratégica da Funai, cita como exemplo a preservação das línguas indígenas nas terras demarcadas.
— A grande maioria dos índios que mantêm sua língua vive dentro de terras indígenas. Dos que vivem fora, só 12% falam a língua. Dos que vivem dentro, 57% falam — observou Mendes.
Segundo o IBGE, 57,7% dos índios vivem em 505 terras indígenas reconhecidas pelo governo. Essas áreas equivalem a 12,5% do território nacional, sendo a maior parte na região Norte. Como mais da metade dos índios (63,8%) vivem em área rural, a situação é o inverso da de 2000, quando 52% estavam em área urbana.
No Brasil todo, são 305 etnias, que falam 274 línguas. Para obter os resultados, o IBGE fez parceria com órgãos como Funai e Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que leva o Sistema Único de Saúde a 400 mil índios de 210 povos.
— Esses órgãos colaboraram nas discussões técnicas para elaboração dos instrumentos de coleta e na compatibilização das malhas territoriais — explicou a responsável pelas estatísticas sobre indígenas no IBGE, Nilza de Oliveira Martins Pereira.
Estimativas sobre a população indígena no Brasil em 1500, quando chegaram os portugueses, variam de 2 milhões a 5 milhões. Acreditou-se que o desaparecimento era inevitável quando chegaram a apenas 70 mil nos anos 1950, com extinção de 85% das línguas indígenas. Mas nos anos 1970 a situação começou a ser revertida como resultado de iniciativas históricas como a fundação da Secretaria de Proteção aos Índios, em 1910 (pelo marechal Cândido Rondon, bisneto de índios), substituída pela Funai em 1967, e a criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961 (idealização dos irmãos Villas Bôas e coordenação do antropólogo Darcy Ribeiro). Nos anos 1980, estabeleceu-se que a população indígena estaria salva da extinção se chegasse a 1 milhão de pessoas, próximo do número atual.
Discussões políticas recebem ênfase na cerimônia do Kuarup
No Kuarup, Rollemberg recebe dos índios reivindicações para entregar a Dilma |
Nos dias 18 e 19 deste mês, a cerimônia do Kuarup, no Parque Nacional do Xingu, ganhou um caráter mais político. Os índios estamparam faixas contra a construção da Usina de Belo Monte e outras ações consideradas lesivas a 16 povos indígenas. O senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que em 2007 foi batizado como Krowajõ pela tribo craô no Tocantins, recebeu um documento dirigido à presidente Dilma Rousseff, lido por ele no Plenário.
— Preocupam-se com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00, que transfere para o Congresso a responsabilidade pela demarcação de terras, e com a Portaria 303/12 da Advocacia-Geral da União (AGU), que permite grandes obras nas terras indígenas sem consulta a eles — disse Rollemberg.
Na opinião do senador, a Portaria 303/12 contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, e a PEC 215/00 é um retrocesso porque dificulta novas demarcações de terras.
Sabarú reforça as críticas:
Na Comissão de Direitos Humanos, Paim debate questões indígenas |
— A portaria da AGU caça direitos previstos na Constituição. E a PEC 215/00 interessa ao agronegócio, pois no Congresso existe a bancada ruralista, enquanto nós temos dois ou três simpatizantes — alertou o tingui-botó.
Paulo Paim (PT-RS), como presidente da Comissão de Direitos Humanos, também tem debatido essas questões.
— O crescimento não é fruto apenas das políticas de governo, muito poucas, mas mostra principalmente a resistência dos índios. Muitos deles morrem ainda crianças, devido à falta de atendimento à saúde. Há também suicídios entre os jovens, devido à falta de perspectivas. É preciso avançar — afirmou o senador.
Para Paim, o Congresso tem deixado a desejar. O senador acredita que o Código Florestal, como foi aprovado, não interessa a índios nem a ninguém, por não garantir proteção ao meio ambiente. O novo Estatuto dos Povos Indígenas, segundo o parlamentar, não avança por pressão dos latifundiários.
O estatuto em vigor foi elaborado em 1973, visando à “integração do índio à comunhão nacional”. Esse foi o raciocínio desde 1500, com catequização, colonização e até escravização. A lei ficou desatualizada com a Constituição de 1988, que estabelece respeito aos índios como povos distintos. O novo estatuto (Projeto de Lei 2.057/91) tramita há mais de 20 anos, sem previsão de conclusão.
Fontes da cultura brasileira correm risco de extinção
Em cerimônia no Senado, índio se manifesta com chocalho, uma das heranças indígenas para a cultura nacional |
A herança indígena forma a cultura nacional com hábitos como banho diário, uso da rede de descanso, instrumentos musicais, artesanato, técnicas de cerâmica e métodos de pesca e plantio, além de alimentos como mandioca, milho, guaraná, palmito e tapioca.
Na saúde, vem dos índios o emprego de vegetais e animais como fonte de cura natural, prática que se tornou alvo de pesquisadores estrangeiros e de contrabando biológico. No folclore, os índios deram ao Brasil seres fantásticos como o curupira, o saci-pererê, o boitatá e a iara.
Mas a mais nítida influência está no vocabulário. Palavras indígenas como canoa, jacaré, carioca, pipoca, jaguar, caxumba, abacaxi, caipira e pereba são apenas algumas das muitas incorporadas à língua portuguesa.
A contribuição se comprova também nos nomes de lugares, como Goiás, Sergipe, Paraná, Paraíba, Cuiabá, Ipanema e Iguaçu. E há ainda os nomes próprios: Iracema, Jandira, Cauã, Tainá.
Mas o antropólogo Mendes avisa que muitas dessas fontes culturais linguísticas estão em situação de risco.
— Pelo último censo, 23% das línguas indígenas (63 de 274) têm menos de dez falantes. Ou seja: são virtualmente extintas. Se o último falante morre, morre com ele uma construção de centenas ou até milhares de anos — disse.
As principais línguas tupis-guaranis foram sistematizadas já no início da colonização. O padre José de Anchieta, além de mais de 30 composições em tupinambá, escreveu A Gramatica da Língoa Mais Usada na Costa do Brasil, publicada em 1595, dois anos depois de sua morte.
Hoje, o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, registra e documenta línguas ameaçadas de extinção. Na opinião de Mendes, o programa terá de ser ampliado e fortalecido a partir do censo. O problema é que algumas línguas listadas como distintas, na verdade, são dialetos tão próximos quanto o português de Salvador e o de São Paulo.
No século 17, o tupi deu origem à língua geral paulista, que chegou a ser falada por quase toda a população que integrava o sistema colonial brasileiro. Apesar da sua proibição em favor do uso obrigatório da língua portuguesa, em 1757, a chamada brasílica só começou a dar lugar à língua portuguesa no início do século 19. A língua geral amazônica, atualmente conhecida como nheengatu, ainda hoje é falada na região da bacia do rio Negro.