Episódio no Calabouço, no Rio, inflama manifestações de rua

Ricardo Westin | 21/03/2018, 19h57

O Calabouço era um bandejão perto do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, onde se alimentavam universitários e secundaristas. Embora a refeição custasse centavos, o lugar não agradava. Com frequência, havia protestos contra o galpão, caquético, e contra a comida, intragável.

Em 28 de março de 1968, um grupo discutia os preparativos de mais um ato contra as condições do Calabouço quando policiais invadiram o local para abortar o protesto.

Os jovens reagiram com paus, pedras e bandejas. Na batalha, um estudante perdeu a vida na hora, com um tiro à queima-roupa no coração — Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, que deixara Belém para cursar o supletivo no Rio.

Era o primeiro “morto público” da ditadura. A repercussão no Senado foi imediata.

— Em vez do diálogo, o governo manda a polícia e as Forças Armadas contra os estudantes. É uma saída que não desejamos, pois vai levar a um morticínio — afirmou Mário Martins (MDB-Guanabara). — É incrível que os homens de juízo hoje são os moços, e não os velhos do governo, que, aliás, não têm procuração para administrar o país.

Arthur Virgílio (MDB-AM) bateu na mesma tecla da prepotência do governo militar:

— Edson Luís morreu com 18 anos, a idade do meu filho mais novo. Busquemos o entendimento. Nós da oposição estamos dispostos a isso. Eu não gostaria de voltar a esta tribuna para, esmagado pela tristeza, lamentar outros Edson Luís tombados nas ruas pela falta de diálogo.

O Calabouço não era um mero bandejão. Logo no dia em que os militares assumiram o poder, em 1964, os militares incendiaram a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Flamengo. A entidade foi fechada e o movimento estudantil ganhou uma mordaça. A partir daí, o Calabouço virou um abrigo informal dos jovens que queriam discutir livremente os rumos do ensino público e da política.

Desforra

Governista, Daniel Krieger (Arena-RS) apoiou a decisão da ditadura de fechar o restaurante após a morte de Edson Luís e citou o comunismo:

— O Calabouço é foco de subversão. Há estudantes profissionais a serviço de ideologias condenadas, e isso temos de afastar da mocidade.

Depois de morto, Edson Luís protagonizou uma epopeia. Temendo que a polícia sumisse com o cadáver, os estudantes o carregaram até a Assembleia Legislativa (atual Câmara Municipal), na Cinelândia, e o expuseram num salão. Milhares de cariocas se enfileiraram para velá-lo.Horas mais tarde, o corpo foi levado em cortejo até o Cemitério São João Batista, em Botafogo. A população erguia cartazes com frases como “Mataram um estudante. Ele podia ser seu filho”.

A ditadura não engoliu a mobilização popular. A ­desforra viria logo.

Em 4 de abril, a Igreja da Candelária, no Centro, abrigou duas missas de sétimo dia, e ambas tiveram o mesmo desfecho. Terminadas as cerimônias, os participantes foram espancados por policiais que os aguardavam do lado de fora, montados em cavalos e com sabres na mão.

Mesmo sendo governista, Teotônio Vilela (Arena-AL) se disse chocado:

— Protesto contra as atrocidades e o faço como senador, jornalista, cidadão e pai de sete estudantes. Vi meu filho mais moço, de 5 anos, indo para o colégio com a pasta debaixo do braço e pensei: “Não sei se ele voltará. A cavalaria pode estar lá na esquina para esbordoá-lo e rebentá-lo pela coragem de ir à escola”.

Em junho, o Rio assistiria a três dias seguidos de guerra campal. No dia 19, estudantes tentaram se reunir com o ministro da Educação, na sede do MEC, no Centro, mas foram barrados pela polícia.

No dia 20, jovens seriam caçados nas ruas de Botafogo após forçar o reitor da UFRJ a ouvir suas reivindicações.

No dia 21, os estudantes ganhariam o apoio da população numa guerra contra policiais e militares que duraria o dia inteiro no centro da cidade, deixando 28 mortos.

— Os governos tirânicos, que não foram gerados nas urnas, mas no golpe, esmagam o povo para se manter no poder — protestou o senador Mário Martins.

Marcha dos 100 Mil

Arthur Virgílio perguntou, em discurso, como os jovens e os militares entrariam na história. Ele mesmo respondeu:

— Os primeiros serão os mártires. Os segundos entrarão na história com o estigma de ignóbeis. Serão miniaturas de Hitler, Mussolini e Stálin, homens que, tanto tempo depois de banidos da Terra, ainda são citados com nojo.

Fartos de violência, os cariocas seguiriam os estudantes na célebre Passeata dos 100 Mil, em 26 de junho. Anônimos e famosos marcharam da Cinelândia à Candelária dizendo em gritos e cartazes que a ditadura deveria cair.

O governo não se comoveu.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)