Especial Arquivo S - Ruy Barbosa desafiou elite e fez 1ª campanha eleitoral moderna

Jornal do Senado

É na semana que vem que os candidatos à sucessão do presidente Michel Temer, na eleição de outubro, começam a  viajar pelo Brasil pedindo votos. Não era assim nos primórdios da República. Dos quatro primeiros presidentes  eleitos pelo voto popular, nenhum se deu ao trabalho de fazer campanha.

Prudente de Moraes, Campos Salles,  Rodrigues Alves e Affonso Penna não precisaram se esforçar porque seus nomes haviam sido escolhidos previamente pela classe política, num conchavo de bastidores. Foram candidatos únicos e suas vitórias nas urnas, mais do que  previsíveis.

A situação só mudaria no 20º aniversário da República. Na virada de 1909 para 1910, o Brasil assistiu à  primeira corrida presidencial moderna, com um candidato desafiando o presidenciável oficial e se mexendo para conquistar os votantes.

Quem chacoalhou o país foi o advogado e senador Ruy Barbosa (BA). Tentando derrotar o marechal Hermes da Fonseca na disputa pelo Palácio do Catete, Ruy fez corpo a corpo com eleitores, participou de passeatas, distribuiu broches com sua foto, discursou em meetings (como se chamavam os comícios), proferiu  ataques contra o adversário.

Papéis históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, contêm muitos dos discursos feitos tanto pelo senador candidato quanto por seus aliados e oponentes.

Da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a primeira sede do Senado, no Rio, Ruy resumiu:

— É a primeira vez que, de fato, em uma eleição presidencial há a contenda, e o escrutínio assume a forma precisa  de um pleito.

Na pioneira excursão eleitoral do Brasil, o candidato passou por 50 cidades em três meses. Em janeiro de 1910, ele visitou Salvador, sua terra natal. No palco de um teatro, lamentou que a viagem do Rio à capital baiana tivesse sido feita em navio para logo em seguida dizer que, sendo eleito, construiria uma linha de trens entre as duas cidades.

Cartas marcadas

Diante da multidão no teatro, Ruy continuou com as promessas garantindo que jamais  interviria nos tribunais, decretaria estado de sítio ou manipularia o resultado de qualquer eleição.

— Os exemplos indicados sobram para vos definir o espírito de moralidade, legalidade e justiça que, com o auxílio de Deus,  caracterizaria a minha administração — assegurou.

De acordo com os jornais, a plateia soteropolitana reagiu com “estrepitosos aplausos e bravos”, as “senhoras dos camarotes” acenaram com lenços e o palco foi “juncado de flores”.

A engrenagem que moveu quase toda a Primeira República (1889- 1930) foi a Política dos Governadores. Por meio dela, a escolha do presidente cabia às elites dos estados mais poderosos — São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul. O candidato oficial entrava sozinho no páreo. Pedir voto era perda de tempo, já que o referendo das urnas  viria de qualquer jeito.

O presidente eleito, em retribuição, jamais se intrometia nas brigas políticas locais,  permitindo que os governadores e seus aliados reinassem tranquilamente e se perpetuassem no poder.

Em 1909, contudo, as oligarquias estaduais se estranharam, e a Política dos Governadores sofreu um abalo. Minas Gerais e Rio Grande do Sul escolheram para presidente o ministro da Guerra, marechal Hermes da Fonseca. São Paulo recusou-se a encampar a candidatura.

Os caciques paulistas temiam que Hermes, por ser do Exército e não fazer parte do   esquema político, em algum momento ordenasse uma intervenção federal em São Paulo e tirasse o protagonismo do estado na Política dos Governadores.

Hermes era sobrinho do marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro  presidente do Brasil.

Medo de ditadura

Os paulistas, então, bateram à porta do respeitado Ruy Barbosa, que topou o desafio de encarar o candidato dos mineiros e dos gaúchos na eleição de março de 1910. Ruy, contudo, não estava comprometido com a Política dos Governadores. Foi por convicção que entrou na briga.

— Candidato por uma  surpresa do destino, tenho a consciência de estar desempenhando uma obrigação política — afirmou, no Senado. — Me considero volvido aos primeiros anos do regime [republicano], quando nos batíamos pela sua condição mais  essencial e vínhamos aqui e fora desta Casa defender as suas liberdades mais elementares.

O candidato se referia às brutalidades cometidas por Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, os marechais que inauguraram a República e quase a transformaram numa ditadura. Para ele, a missão dos militares estava muito clara na Constituição: proteger as leis e a pátria, nada mais. Chegando um fardado ao poder, acreditava, seria impossível deter-lhe o ímpeto  autoritário.

— As nações, senhores, não armam os seus Exércitos para serem escravizadas por eles. As nações não fazem os seus marechais para que eles venham a ser na paz os caudilhos de facções ambiciosas — argumentou.

Na visão dele, o presidente da República tinha que ser civil. Foi em oposição ao militarismo de Hermes que batizou sua  candidatura de Campanha Civilista.

Os dois lados se enfrentaram na tribuna do Senado em diversas ocasiões. O  senador Alfredo Ellis (SP) criticou o marechal:

— Prefiro e preferirei sempre um candidato civil. Os militares são uma classe nobre, não se contesta, mas não têm a educação necessária nem o preparo para a administração de uma  grande nação como o Brasil.

Em resposta, o senador Antônio Azeredo (MT) lembrou que foi numa convenção  realizada justamente no Senado, meses antes, que deputados e senadores, orientados pelos governadores, escolheram o candidato do establishment:

— Dentro desta Casa, os que aqui estavam e proclamaram a candidatura Hermes não viram um militar fardado. Candidatura militar seria se ela tivesse vindo dos quartéis. E quem poderá  negar o prestígio e o republicanismo do marechal?

Candidato bronco

Em trem, Ruy Barbosa viajou do Rio a São Paulo em dezembro de 1909 e do Rio a Belo Horizonte em fevereiro de 1910, parando em todas as estações pelo caminho. Tanto nas cidades paulistas quanto nas mineiras, foi recebido com banda de música, fogos de artifício e salvas de  tiros, ovacionado por multidões e cumprimentado por prefeitos, juízes e bispos.

Ruy tratava de desconstruir a imagem de Hermes. Num dos meetings, chamou-o de bronco:

— O meu competidor tem sido até agora homem  exclusivamente de sua classe, militar dado só e só aos misteres da sua profissão. Ninguém sabia que tivesse ideias políticas. Ou, não as tendo revelado nunca, ninguém podia saber quais fossem.

De volta ao Rio após a turnê paulista,  o deslocamento do candidato entre a Estação Central do Brasil, no centro, e seu palacete, em Botafogo,  acabou se transformando numa festiva carreata. Por três horas, o candidato acenou de dentro da carruagem para as pessoas que pararam nas ruas da capital do país para gritar “viva” ao senador baiano e “morra” ao marechal.

O  militar, por sua vez, teve grande apoio da imprensa, que pegou pesado nas caricaturas de Ruy, retratando-o como  um aristocrata incapaz de falar a língua do povo e alheio aos reais problemas do país.

— Ele foi criticado por  simplesmente fazer campanha. Para os conservadores, era um ato de demagogia e uma vergonha que um político se  jogasse nos braços do povo, da “patuleia”, para pedir votos — afirma o cientista político Christian Lynch, da  Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

A dedicação de Ruy à sua  Campanha Civilista se torna uma proeza ainda maior quando se leva em conta que, àquela altura, ele tinha 60 anos  de idade — um ancião para os padrões do início do século passado.

O historiador Antonio Barbosa, professor da  Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo aposentado do Senado, diz:

— O país começava a se urbanizar, e a classe média que surgia nas cidades foi bastante receptiva ao discurso civilista. Os comícios de Ruy empolgavam.  Quem via de fora, sem conhecer as engrenagens da Primeira República, achava que ele tinha tudo para  vencer.

Apesar de todo o esforço, Ruy foi derrotado. Oficialmente, ele obteve 223 mil votos. Foi um número expressivo, porém insuficiente diante dos 404 mil votos do marechal.

Governo violento

A derrota já era esperada,  uma vez que o senador só contava com o apoio de São Paulo e da Bahia. Hermes, por sua vez, era sustentado por  todos os demais governadores, que, para garantir-lhe a vitória, abusaram das fraudes nas urnas e da repressão  policial ao civilismo. Fiel ao estilo da Primeira República, o marechal nem fez campanha.

— Bem poucas ilusões  desde o começo podíamos nutrir — disse Ruy, no Senado, após a derrota. — Apesar de tal ser o destino imediato da  nossa causa, não a podemos desamparar. Quando praticamos uma ação boa, não sabemos se é para hoje. O caso é que os seus frutos podem ser tardios, mas são certos. Uns plantam a semente da couve para o prato de amanhã.  Outros, a semente do carvalho para o abrigo ao futuro. Aqueles cavam para si mesmos. Estes lavram para o seu país, para a felicidade dos seus descendentes, para o benefício do gênero humano.

Tal e qual Ruy profetizara, Hermes foi  um presidente violento. Seu governo foi marcado por um implacável estado de sítio, pela execução dos rebeldes da  Revolta da Chibata e pela intervenção federal em diversos estados, com a destituição de governadores e o  bombardeio de Salvador.

Em 1973, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveria uma crônica lembrando que,  menino, acompanhou de longe a quixotesca campanha de Ruy:

“Na derrota, ele cresceu ainda mais. De 1910 a 1914, o Brasil teve dois presidentes: um de fato e outro de consciência, entre seus livros e papéis da Rua São Clemente  [onde Ruy vivia], e daí para a tribuna do Senado ou perante o Supremo Tribunal Federal, postulando, verberando, exigindo o cumprimento da lei. Esta a imagem de Ruy guardada por uma criança mineira. Surgirá outra assim,  adaptada às condições do nosso tempo?”.

“Vitória de Hermes foi uma mentira colossal”

Ruy Barbosa não aceitou a derrota para Hermes da Fonseca. Semanas após a votação de março de 1910, ele subiu à   tribuna do Senado para denunciar que a eleição, de norte a sul do país, fora descaradamente trapaceada em    benefício do candidato oficial.

— Se nos achássemos nos Estados Unidos e tivéssemos a honra de ser vencidos como  Bryan por Taft [presidente americano na época], não vacilaríamos em nos acercar do nosso antagonista e lhe apertar a mão. A luta, ali, se trava em urnas livres, entre dois partidos, um dos quais leva ao outro a palma, graças ao concurso real do eleitorado. Por lá tudo é diverso do que vai entre nós — afirmou.

Na Primeira República, a apuração das eleições cabia ao Congresso Nacional. A Justiça Eleitoral só surgiria na década de 1930. As atas contendo a  apuração dos votos de todas as seções eleitorais do Brasil eram enviadas ao Congresso, que analisava os livros,  decidia sobre denúncias de irregularidades, contabilizava os votos e proclamava o resultado final. O Congresso jamais dava vitória a políticos que estivessem fora da Política dos Governadores, como Ruy Barbosa.

Inconformado,  Ruy redigiu um calhamaço com 300 páginas em que, num raio X inédito das eleições brasileiras, apontou as  incontáveis fraudes que chegaram ao conhecimento de sua Campanha Civilista, como urnas guardando mais votos do que votantes, capangas impedindo a votação de eleitores do candidato civil e atas trazendo todas as assinaturas com a mesma letra.

— A ilegalidade e a fraude são os criadores desta mentira colossal. Aqui, já no alistamento se  fabrica o eleitorado. Depois ou lhe simulam a presença, ou lha obstam na eleição. Quem vota e elege são as atas.

A papelada foi lida pelo próprio candidato no Senado na tentativa de convencer os senadores e deputados a não dar  vitória ao marechal.

Atas furtadas

Segundo Ruy, “a capital não votou”. Pelo que se vira na campanha, os cariocas prometiam votar em massa no senador, mas o governo, engajado na candidatura Hermes, agiu para que isso não ocorresse.

— Das 96 seções eleitorais em que esta capital se divide, só 25 funcionaram. Nas 71 restantes, não se  reuniram as mesas, e os livros de atas foram subtraídos pelos agentes do Correio, sob os ditames do governo, cuja cumplicidade assegurou aos prevaricadores a mais tranquila impunidade. As atas das 71 seções que não se abriram  apareceram no Senado, fabricadinhas com todas as circunstâncias do estilo. Roubaram milhares de sufrágios ao  candidato civil para coroar o candidato militar.

Pelos cálculos de Ruy, se todas as trapaças ocorridas pelo Brasil afora fossem desconsideradas, ele teria obtido 200 mil votos e Hermes, 126 mil.

Senado NotíciasSenado Notícias— Da nulidade incontestável dos votos  atribuídos ao nosso competidor resulta a eleição do candidato civil, aliás, o verdadeiro eleito por grande maioria.

Os parlamentares não se deixaram persuadir. Afinal, foram eles próprios, em nome das oligarquias estaduais numa  convenção realizada no Senado um ano antes, que escolheram Hermes como candidato.

Em julho, quase cinco meses após a eleição, o Congresso oficializou a vitória do marechal. Um grupo de civilistas ainda apresentou uma emenda para mudar o resultado a favor de Ruy, que foi rejeitada. A farsa eleitoral prevaleceu, e o presidente assumiu o  Palácio do Catete em novembro.

Passado o episódio Ruy Barbosa, as elites políticas de São Paulo e Minas Gerais se  apressaram em buscar alguma medida que evitasse a repetição daquele susto. Em 1913, assinaram o Pacto de Ouro  Fino, criando a célebre Política do Café com Leite, uma espécie de atualização da Política dos Governadores. A partir de então, os dois estados passariam a se revezar no Catete, evitando novos rachas nas sucessões presidenciais.

Segundo o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Walter Costa Porto, autor de Dicionário do Voto, também  foi motivo para a derrota o fato de Ruy não ser maquiavélico:

— Não era arguto nas negociações políticas, fugia dos conchavos. Só agia conforme suas convicções.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)


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