País engatinha no tratamento do transtorno alimentar, mostra debate

Da Agência Senado | 05/09/2024, 13h47

A pouca informação sobre a assistência disponível para quem apresenta transtornos alimentares, o reduzido número de unidades públicas especializas e leitos correlatos e a falta de profissionais preparados para esse atendimento são empecilhos no combate aos comportamentos alimentares anormais que afloram em todo o país, inclusive atingindo considerável parcela infantojuvenil. A questão foi levantada em audiência pública nesta quinta-feira (5), na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), quando se debateu medidas de prevenção e de tratamento dessas condições.

Autora do requerimento para a audiência, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) salientou a preocuação de famílias que buscam ajuda diante dos  crescentes casos de transtorno alimentar. A parlamentar destacou ainda a problemática das redes sociais, que apresentam pseudoespecialistas ou influencers que acabam por mal informar e influenciar principalmente o público formado por crianças e adolescentes.

O Brasil tem hoje apenas 15 centros públicos para atendimento de transtorno alimentar e apenas uma enfermaria especializada em toda a América Latina, localizada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), onde há imensa fila para dez leitos destinados a atender brasileiros e estrangeiros.

— Fico revoltado que não haja outros centros de excelência que possam receber essas pessoas — disse o professor e representante doo Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares do HCFMUSP, o psiquiatra Táki Athanássios Cordás.

A frequência dos transtornos alimentares — que inclui principalmente anorexia, bulimia e compulsão alimentar em obesos — é subestimada no país, segundo Cordás. Essas condições de comportamentos alimentares anormais atingem, pelo menos, quase 5% da população brasileira, ou seja, 11 milhões de pessoas.

Cordás esclareceu que a obesidade não é um transtorno alimentar, não é uma doença psiquiátrica, não obstante cerca de 20% das pessoas com obesidade tenham um transtorno psiquiátrico, chamado de compulsão alimentar.

— A gente come para se nutrir, biologicamente para a nossa vida é necessário. Dois, para ter prazer. Três, a comida é uma ponte entre eu e as pessoas, a comida serve de objeto de afeto. Quando essa situação está quebrada, o indivíduo para de comer sob risco de vida, não tem prazer na comida, a comida o afasta das pessoas e não aproxima, eu provavelmente estou diante de um transtorno alimentar. (...) Quando meu corpo se torna algo estranho, hostil, a minha imagem é indesejada e o meu peso é indesejado, eu provavelmente estarei diante de um transtorno alimentar.

Tratamento caro

O tratamento de transtorno alimentar é caro, exige uma equipe muldisciplinar bem formada para o atendimento, que geralmente é longo e, às vezes, pode transcorrer por uma vida inteira. Representante da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Priscilla Gil afirmou que as dificuldades encontradas na rede privada são multiplicadas no Sistema Único de Saúde (SUS).

Ela salientou que não há como priorizar campanhas, se não houver como tratar e internar os pacientes.

— O paciente com transtorno alimentar está em sofrimento, mesmo que não tenha recebido o diagnóstico. (...) Precisamos ampliar os centros para internação, ampliar as verbas dos centros que já têm propriamente execução e são capazes de multiplicar essas ações e contratar mais profissionais com plano de carreira para poder trabalhar nesses locais e atender esses pacientes que estão em tão grande sofrimento — expôs a representante da SBEM.

O coordenador da Comissão de Transtornos Alimentares da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), José Carlos Borges Appolinário, afirmou que a frequência dos transtornos alimentares é semelhante a outros por uso de drogas e se mostra superior a do transtorno bipolar.

— Grande parte desses casos apresenta sintomas que parecem pouco diagnosticáveis no início. Os quadros mais graves são de difícil recuperação, algumas vezes levando ao óbito — expôs.

Ele também destacou que o tratamento exige uma equipe de vários profissionais de forma integrada, constituída por profissionais de saúde como psiquiatria, psicólogo, nutricionista, clínico, e que são necessários treinamentos específicos para as pessoas lidarem com esses pacientes.

Appolinário apresentou alguns estudos realizados no país, como em Porto Alegre (RS), onde se identificou que 10% da população do município tinha comportamento alimentar anormal, geralmente jovens. Essas pessoas foram acompanhadas por quatro anos e viu-se que mantinham o mesmo comportamento.

— Entre 2005 e 2010, no Rio de Janeiro, houve um aumento na prevalência de compulsão alimentar, e adolescentes com excesso de peso eram propensos a se envolver em dieta rigorosa ou jejum — complementou o coordenador da ABP.

Em geral, os percenuais de anorexia e bulimia flutuam próximo de 1% a 2%, sendo inferiores aos da compulsão alimentar, que atinge mais de 6% das pessoas. Todos os transtornos também afetam mais mulheres do que homens. 

Obesidade

Representante da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), Maria Edna de Melo reforçou que o transtorno alimentar é muito frequente em pacientes com obesidade, uma doença que tem grande impacto na saúde pública, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

Segundo Maria Edna, a estimativa é de que, em 2035, 51% da população mundial tenha obesidade ou sobrepeso. E esse número duplica na população adulta, mas na população infantil tende a triplicar.

— A obesidade é o terceiro maior fardo social no país, só perde para a violência armada e para o álcool. (...) No Brasil, entre os adultos, 60% têm excesso de peso e 26% já têm obesidade. Cerca de um terço das crianças estão acima do peso e 15% com obesidade. (...) Na criança e no adolescente, o impacto na saúde mental é o que mais compromete a qualidade de vida — expôs a representante da Abeso.

O alto preço dos alimentos saudáveis é um problema a ser enfrentado, segundo Maria Edna. Ela salientou que há uma distorção em termos financeiros daquilo que as pessoas precisam consumir, e que os melhores alimentos tiveram uma valorização do preço em 60% nos últimos anos.

— Como a gente vai mandar as famílias comerem bem com esses preços? Temos que olhar mais para os subsídios — disse.

Educação

O tema do transtorno alimentar precisa ser pensado em todas as etapas da educação, segundo Priscilla Gil. Nas pós-graduações, por exemplo, já há na matriz da endocrinologia estudar transtornos alimentares. Nas graduações de medicina, hoje, se começa a estudar a obesidade, disse a representante da SBEM.

Mas para o ensino médio e para a educação infantil há que se ter muito cuidado ao se avordar o assunto, alertou Priscila. A depender das palestras, pode-se estar induzindo alguns transtornos. Por isso, ela disse ser mais producente falar sobre a aceitação de todos os corpos, desconstruir a imagem do corpo perfeito, tratar de políticas anti-bullying, o comer em família, o desenvolvimento corporal, entre outros assuntos.

A posição foi ratificada pelo professor Cordás, para quem “se deve tomar muito cuidado com voluntarismo de quem quer abordar o assunto em escola”.

— Não há ainda exatamente a definição de qual a melhor forma de prevenção. Tem que se falar em saúde, não em doença, senão você treina essas crianças [para os transtornos] — disse o professor da USP.

Redes sociais

Os especialistas também chamaram atenção para a influência das redes sociais. Para Maria Edna, essas redes “são um poço sem fundo para problemas relacionadas aos transtornos com a glamourização dos corpos ultra magros e a exposição de muita massa muscular”. Além disso, disse a especialista, há o aliciamento de crianças e adolescentes para alimentações que colocam em risco suas vidas.

— As redes sociais são algo que preocupam muito e não é só para transtorno alimentar. Também tem o desafio de comer demais, que não é comer alface, geralmente é comida trash [lixo] — afirmou Maria Edna. 

Ao final da audiência, a senadora Damares se comprometeu em manter o tema como pauta da Casa. Ela acrescentou que irá propor a criação de um grupo de trabalho para dar continuidade à discussão do assunto e que irá apresentar requerimento de informação para que o Ministério da Saúde  envie dados, como os projetos desenvolvidos na área.

— Que essa audiência possibilite que tenhamos uma força tarefa para oferecer projetos para a implementação de leis e medidas que possam valer para esse país — disse o psiquiatra Cordás. 

Também participaram da audiência a representante do HCFMUSP, em Ribeirão Preto (SP), Vivian Marques Miguel Suen; e o representante do Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Alexandre de Rezende Pinto.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)