Engenheiro defende plano permanente para evitar desastres climáticos
Dante Accioly | 29/05/2024, 13h54
O Brasil precisa desenvolver um plano nacional para redimensionar a infraestrutura das cidades e evitar o impacto dos eventos climáticos extremos. A opinião é do engenheiro Gerardo Portela, doutor em Gerenciamento de Riscos e Segurança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com especialização em Engenharia de Segurança pela San José State University, nos Estados Unidos.
Segundo o pesquisador, a infraestrutura do país foi projetada na década de 1940 e dimensionada para atender o crescimento das cidades até os anos 1980. Sem uma evolução contínua, as estradas, as redes de drenagem, as moradias e os sistemas de contenção estão defasados para enfrentar “uma chuva normal”. Menos ainda para resistir a uma tempestade como a que destruiu o Rio Grande do Sul neste mês. Leia a seguir os principais pontos da entrevista.
Agência Senado — Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o Poder Executivo deixou de aplicar 35,5% da verba destinada ao programa de Gestão de Riscos e Desastres da Defesa Civil entre 2012 e 2023. Em que medida a baixa execução impacta na ponta, na cidade que está despreparada para enfrentar uma emergência climática?
Gerardo Portela — Isso mostra que não há um entendimento das autoridades do grau de severidade desses fenômenos. A percepção de risco no Brasil não é algo muito desenvolvido culturalmente. Nossa cultura de segurança ainda é muito primitiva. Isso é diferente, por exemplo, do que acontece no Japão, na Europa, nos Estados Unidos, onde há uma convivência mais amadurecida com os riscos e uma maneira de tratar melhor os riscos. Por não percebermos a gravidade da situação, muitas vezes deixamos de investir aquilo que já não é muito e deixamos de avançar nas salvaguardas para esse tipo de fenômeno.
Agência Senado — Por que o Brasil não desenvolveu essa cultura de percepção de risco?
Gerardo Portela — A sociedade brasileira e as autoridades até conseguem entender que essas catástrofes acontecem, se repetem, incomodam, destroem, causam danos, perdas. Mas não há uma compreensão técnica de gestão de riscos para deflagrar um processo de mitigação dessas ameaças. Para quem é profissional da área, a situação mostra-se com um grau de complexidade que a sociedade como um todo parece não perceber de forma totalmente consciente. O Brasil precisa de um plano de âmbito nacional, capitaneado pelo governo federal, de redimensionamento da infraestrutura do país. Vai desde a infraestrutura urbana de água e esgoto, drenagem e tratamento de rios a modais de transporte, moradia e estradas.
Agência Senado — Por que esse plano é necessário?
Gerardo Portela — A nossa infraestrutura foi projetada em grande parte nos anos 1940 e 1950 e dimensionada para os anos 1960, 1970 e 1980 no máximo. As cidades cresceram, e essa infraestrutura não foi ampliada. Como não houve uma evolução contínua, a infraestrutura já tem dificuldade de se comportar bem numa chuva normal. Quando vem a tempestade, o impacto é muito grande.
Agência Senado — Como fazer um plano contínuo, se os governos são de quatro anos?
Gerardo Portela — Um plano de redimensionamento da infraestrutura tem começo, mas não tem fim. Ele tem que ter força de lei. Não seriam apenas quatro anos. Seria uma década, talvez duas décadas. Na verdade, para sempre. Você vai executando o plano na medida da verba disponível. O que não pode é não ter o plano. As métricas poderiam medir o avanço do plano ao longo dos governos, e não deixar em aberto, fazendo com que os projetos sejam todos executados visando quatro anos, visando a reeleição.
Agência Senado — Na prática, como fazer um plano como esse?
Gerardo Portela — Existem tantos cenários ameaçadores... O que a gente está vendo no Rio Grande do Sul é um cenário específico daquela região. Mas se você for para o litoral paulista, temos outro cenário. Se for para o Rio de Janeiro, temos outro cenário. No Norte, no Nordeste, no Centro-Oeste, também. Todos eles envolvidos e relacionados com grandes tempestades tropicais. Não há isenção de riscos quando se fala em tempestades tropicais no Brasil. Então, como as autoridades podem fazer um plano com tantos cenários possíveis? Para isso, é necessário o uso de uma técnica de análise de risco profissional, como é feito nas indústrias. Eu recomendaria uma técnica do tipo ampla, geral. No caso, o HAZID: hazard identification analysis (análise de identificação de perigos). Essa técnica permite postular alguns cenários. Às vezes, o cenário é muito grave, mas a probabilidade de ele acontecer é muito baixa. Outros cenários nem são tão graves, mas acontecem com uma frequência tão alta que acabam se tornando importantes. O Brasil precisa fazer uma análise de risco a nível de cada cidade para mapear seus cenários e ver quais precisam ser priorizados. Você cria uma sequência de obras e de necessidades para mitigar cada cenário.
Agência Senado — Como estender esse plano para um país das dimensões do Brasil?
Gerardo Portela — Se cada cidade fizer, o estado pode fazer uma segunda análise de risco baseada nos riscos de cada cidade e também estabelecer as suas prioridades. Subindo um degrau, o governo federal também pode realizar um HAZID baseado nos HAZIDs de cada estado e verificar quais são os cenários mais relevantes. Todos os cenários têm que ser tratados, mas é impossível resolver todos os problemas numa tacada só. É necessário ter uma prioridade, e essa prioridade não pode ficar à mercê das inferências de cada governante, de cada interesse pessoal ou político.
Agência Senado — De acordo com o TCU, a maior parte dos recursos do programa de Gestão de Riscos e Desastres foi para resposta e recuperação. Está correto esse conceito de Defesa Civil que gasta mais com reconstrução do que com prevenção?
Gerardo Portela — É preciso entender o seguinte: a Defesa Civil realmente é um órgão que atua na resposta à emergência. A gente deveria gastar mais na prevenção, que é a área de engenharia de infraestrutura. Nós deveríamos gastar em grandes obras. Temos estradas e drenagens que precisam ser ampliadas, grandes massas populacionais sem moradia que vão ocupando áreas de encostas. A Região Serrana do Rio de Janeiro quer crescer? Para onde crescerá? Que região é habitável no entorno? Como essas pessoas irão chegar até o centro urbano propriamente dito? Como fazer isso? Você vai ter que se planejar com obras maiores. Essas obras é que vão fazer diferença ao longo dos anos. A Defesa Civil não projeta nada, não elabora nada para a infraestrutura do país a longo prazo. A prevenção tem que passar por um plano nacional maior e contínuo.
Agência Senado — Existe uma proporção ideal de quanto um país deveria gastar com prevenção e com recuperação?
Gerardo Portela — Essa é a pergunta que o especialista de gerenciamento de risco mais escuta: qual é proporção ideal? A relação ideal é específica daquela cidade, daquele estado, daquele país, daquela empresa. Se você tem uma cidade que está muito ruim em termos de infraestrutura, a proporção que se deve gastar entre uma coisa e outra é muito maior na área de investimento de infraestrutura do que na área de resposta. Não existe uma proporção ideal. O que existe é uma análise de risco séria, dentro do melhor das boas práticas de engenharia de risco e segurança para os cenários e as salvaguardas existentes. [É necessário] ver se elas são suficientes ou não.
Agência Senado — Qual deve pode ser o papel do Congresso Nacional nessa discussão?
Gerardo Portela — O Senado tem todas as ferramentas para reverter isso. Todas. É possível propor leis e criarmos uma legislação com um plano contínuo, obrigatório, envolvendo infraestrutura de estradas, de moradia. Isso inclui hospitais e escolas, porque são essenciais, drenagem, esgoto... Mas dentro de um plano contínuo, com força de lei. Eu acho que essa seria a grande solução para que nós víssemos o país mudar. Não em quatro anos, mas talvez em quatro décadas.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
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