Eliziane diz que 8 de Janeiro ainda não acabou e defende combate ao extremismo

Bárbara Gonçalves | 17/10/2023, 17h46

Em 1.333 páginas, a relatora da CPMI do 8 de janeiro, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), procura demonstrar que os ataques antidemocráticos foram iniciados muito antes dessa data, que a democracia enfrenta uma crise, aborda a questão das milícias digitais e da “epidemia de desinformação”. Ela explica ainda o funcionamento do "gabinete do ódio", a instrumentalização das forças de segurança e dedica vários capítulos aos ataques contra o sistema eleitoral.

Na visão da relatora, o 8 de Janeiro "ainda não acabou", o que a faz alertar para a necessidade de se entender toda a engrenagem que nutriu os ataques, no sentido de se combater o extremismo no país:  

— Embora as instituições democráticas brasileiras tenham sobrevivido às tentativas de ruptura da ordem constitucional que se desenvolveram antes, ao longo e após o processo eleitoral de 2022, as ameaças ainda pairam no ar. As milícias digitais continuam ativas e operantes: fazem da retórica do ódio o seu meio, e das fake news o seu objeto. Continuam os linchamentos virtuais, a criminalização da política, a multiplicação de falsos especialistas, a circulação irrestrita de mentiras e teorias conspiratórias, a dissonância cognitiva. 

Na manhã desta terça-feira (17), foram quase quatro horas de leitura da parte que trata exclusivamente dos indiciamentos. Há 61 pessoas na lista, que começa com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Entre as evidências da sua participação como autor intelectual e moral dos ataques perpetrados contra as instituições, Eliziane cita os insistentes ataques às instituições, além da ênfase nas teses que questionavam a segurança das urnas eletrônicas. A parlamentar elencou ainda a instrumentalização da Polícia Rodoviária Federal para que eleitores da região Nordeste tivessem mais dificuldade de votar no segundo turno das eleições de 2022 e o recebimento, pelo à época presidente, de uma minuta de golpe, fato que teria sido presenciado pelo seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid.

— Ademais, o então presidente da República alimentou a violência entre a população brasileira durante vários eventos no período pré-eleitoral de 2022. Nos discursos, dizia que o Brasil estaria atravessando uma batalha, estando de um lado seus apoiadores, e, de outro, qualquer um que discordasse minimamente das ideias bolsonaristas — recordou Eliziane.

Cúpula militar

A relatora também sugere o indiciamento de nomes ligados a alta cúpula militar das forças armadas. A exemplo do então ministro da Defesa do governo Bolsonaro, general do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; do ex-comandante-geral do Exército, Marco Antônio Freire Gomes e do ex-comandante da Marinha, o almirante de esquadra, Almir Garnier Santos. Na visão da senadora, todos eles colaboraram de forma ativa na orquestração do roteiro que antecedeu as invasões.  

Outro militar, já conhecido nacionalmente por ter sido investigado na CPI da Pandemia, Elcio Franco Filho, foi igualmente indiciado na CPMI do 8 de Janeiro. O coronel do Exército, segundo Eliziane, juntamente com o ex-major do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros, preso pela Polícia Federal durante a operação que investiga falsificação de certificados de vacinação contra a Covid-19, “envidaram esforços para que Bolsonaro permanecesse ilegalmente no poder”. 

Os comandantes da Polícia Militar do DF à época do ataque antidemocrático foram incluídos do mesmo modo na lista de indiciados. Já em relação ao governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, Eliziane constata que apesar de existirem evidências de que ouve omissão por parte do gestor, a comissão não possui competências constitucionais para indiciá-lo e sugeriu que as investigações referentes a ele sejam aprofundadas em outras esferas.

GSI

A senadora aponta como responsáveis pelo crime de omissão imprópria dolosa, integrantes do GSI à época do ataque, entre eles o então secretário-executivo do GSI, general Carlos José Russo Assumpção Penteado e o então chefe da Secretaria de Coordenação e Segurança presidencial do GSI, general Carlos Feitosa Rodrigues. 

Ela explica que depois da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o general Augusto Heleno foi afastado do Gabinete de Segurança Institucional, mas foram mantidos no órgão diversos oficiais militares que haviam trabalhado na sua gestão. Esses militares, conforme Eliziane, ocupavam postos chaves e eram responsáveis diretamente pela execução do Plano Escudo do Palácio do Planalto, procedimento de proteção do edifício presidencial em caso de ameaça. Segundo ela, essa equipe foi a responsável por desmobilizar o Plano Escudo, no dia 6 de janeiro:

— De outro lado, quanto às atribuições próprias do GSI em relação às linhas de defesa, houve clara violação às obrigações existentes, tendo ocorrido, inclusive, dispensa do reforço das tropas pelo coronel André Garcia, em nome do general Penteado, então secretário-executivo do GSI. Essa dispensa ocorreu no dia 6 de janeiro, apenas dois dias antes do fatídico dia 8 de janeiro de 2023, e em contrariedade a todos os alertas existentes de que haveria manifestações violentas.

A relatora afirmou, entretanto, não ter encontrado motivos para pedir o indiciamento do general Marco Edson Gonçalves Dias, nomeado pelo presidente Lula para substituir o general Augusto Heleno na chefia do GSI. Segundo ela, o general GDias estava no cargo há apenas uma semana, "ao passo que os seus inferiores hierárquicos eram evidentemente conhecedores de informações privilegiadas a respeito do risco concreto de danos ao Palácio do Planalto".

Financiamento 

Em outra frente de investigação, Eliziane apresenta uma série de pessoas indiciadas que estão diretamente envolvidas com o financiamento de ataques antidemocráticos. Ela faz referência ao Relatório de inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que apresentou indícios da participação de parte de empresários do agronegócio no grupo informal denominado Movimento Brasil Verde e Amarelo (MBVA). Esse grupo, assevera a senadora, foi responsável pelo envio de caminhões para Brasília e pelos bloqueios rodoviários realizados logo após o resultado das eleições de 2022.

Dessa forma, Antônio Galvan, Jeferson da Rocha, Vitor Geraldo Gaiardo, Humberto Falcão, Luciano Jayme Guimarães, José Alípio Fernandes da Silveira, Valdir Edemar Fries, Júlio Augusto Gomes Nunes, Joel Ragagnin, Lucas Costa Beber e Alan Juliani, líderes e principais articuladores do MBVA, devem ser responsabilizados por associação criminosa. No entanto, a relatora aponta para a necessidade de que os órgãos competentes aprofundem ainda mais as investigações nessa área. 

Todas as evidências colhidas e indiciamentos serão encaminhados aos órgãos responsáveis pela persecução penal para que aprofundem e apurem as responsabilidades. Eles é que devem decidir pela apresentação, ou não, de denúncias baseadas no relatório. Entre essas instituições para as quais os documentos serão encaminhados estão órgãos policiais, o Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministério Público Militar e a Advocacia-Geral da União (AGU).

Desinformação 

Grande parte do relatório de Eliziane é dedicado a detalhar o que ela considera o roteiro que culminou no ataque golpista. Aspecto fundamental para a sustentação do plano, de acordo com ela, foi a propagação estruturada de discursos de ódio e mobilização de uma milícia digital para promover a desinformação em massa. Entre as figuras que caracterizam essa prática, salientou Eliziane, está a deputada federal Carla Zambelli, a qual também conta entre os indiciados. 

— É inegável que a deputada federal Carla Zambelli, abusando de suas prerrogativas parlamentares, difundiu informações falsas a respeito do processo eleitoral. Entretanto, seu fim maior não era o de simplesmente questionar as urnas eletrônicas, mas se utilizar da aparente dúvida maliciosamente incutida na população a respeito da lisura do pleito para que o plano golpista de Jair Messias Bolsonaro, do qual sempre fez parte, fosse colocado em prática — citou, ao lembrar os encontros da parlamentar com o hacker Walter Delgatti. 

Nesse sentido, a relatora afirma que é preciso evitar que o 8 de Janeiro “persista e se repita”. Ela avalia ser necessário não apenas a responsabilização e a punição dos mentores, instigadores, executores e financiadores, mas também, a adoção de medidas legislativas e outras de aperfeiçoamento institucional, entre entre as quais a que aprimora a regulação do ecossistema digital, com a aprovação do “PL das Fake News", PL 2.630/2020, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que propõe a regulamentação das redes sociais. Além disso, ela defende a votação de projetos que regulamentam o uso de Inteligência Artificial (PL 2.338/2023) e a proposta que trata dos direitos autorais no âmbito online, publicidade digital e remuneração de conteúdos jornalísticos utilizados pelas plataformas, conteúdo constante também no PL 2630. Ela, por outro lado, saiu em defesa do fortalecimento do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional. 

Outras recomendações 

Já na parte final do seu parecer, Eliziane indica sugestões legislativas que se situam no âmbito da defesa da democracia e que possam oferecer às instituições e à sociedade instrumentos para prevenir a ocorrência de ataques como os sofridos no dia 8 de janeiro, assim como qualquer outra ameaça antidemocrática.

Entre elas, está a criação do Dia Nacional de Defesa da Democracia, que já vem sendo informalmente comemorado no dia 25 de outubro, data do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. E a alteração da Lei 11.473, de 2007, para prever que a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) poderá atuar de ofício, por determinação do Ministro da Justiça, dentro do perímetro situado a 33 metros da delimitação externa dos edifícios públicos federais, exclusivamente para proteção de bens e de pessoas nessa região. 

Está nessa lista a recomendação para aprovação do projeto (PL 3.611/2023), que endurece as penas para os crimes contra o Estado democrático de Direito. Ela ainda propõe adequar as normas para que os prazos estabelecidos pelo Tribunal de Contas da União (TCU), destinados ao atendimento das demandas das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), não constituam uma limitação ao trabalho investigativo desses colegiados. Recomenda, outrossim, o fortalecimento da educação para e pela democracia nos ambientes formativos e na educação básica. 

A relatora sugere que o país precisa de três remédios contra “as tentações autoritárias”, inspirada na obra O Povo contra a Democracia, do cientista político Yascha Mounk: o primeiro é a renovação da “fé cívica”, por meio da reaproximação entre os cidadãos e o reaprendizado da convivência com a diversidade, tratando a diferença “como um direito, e a pluralidade como riqueza”, restabelecendo as “bases morais que sustentam a democracia”. O segundo remédio é um novo modelo de bem-estar social e o terceiro, o banimento do que chamou de versão exclusivista e supremacista do nacionalismo que circula entre os bolsonaristas.

Para o presidente da CPMI, Arthur Maia (União-BA), o colegiado cumpriu o seu papel quando colocou de forma clara para a população brasileira o que, de fato, aconteceu no dia 8 de janeiro:

— Trazer todas essas pessoas aqui, mostrar ao Brasil o que aconteceu, isso nos traz a responsabilidade de cuidarmos mais da democracia, de termos mais amor pela democracia, de termos mais cuidado com a democracia. E essa CPMI nada mais foi do que uma homenagem à democracia, de respeito à democracia, de mostrar o quanto esses valores da liberdade são caros ao Congresso Nacional e o povo brasileiro, independente dos relatórios — disse em entrevista coletiva. 

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)