Homicídio é a principal causa da morte de jovens no país
André Falcão | 09/09/2015, 21h17
A violência é um dos problemas mais graves e presentes na vida dos brasileiros. Para a parcela de jovens da população, esse problema toma proporções de tragédia. Segundo os dados do estudo Mapa da Violência 2015: adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil, as mortes de jovens por causas naturais diminuíram significativamente desde a década de 1980, em contraste com o aumento por causas não naturais, entre as quais se destaca a disparada no número de mortes por homicídios.
O autor do estudo, Julio Jacobo Waiselfisz, em relato à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Assassinato de Jovens, em junho, informou que, em 2013, 46% do total das mortes de jovens (quase a metade) de 16 e 17 anos foi por homicídio. O número de assassinatos passou de 1.825, em 1980, para 10.520, em 2013.
— Impressiona que metade de nossos jovens morra por homicídios — lamentou.
Ele apresentou dados mostrando que, para cada jovem que morre assassinado na Áustria, morrem 250 no Brasil. São os mais pobres, que moram nas periferias urbanas e têm baixa escolaridade. Morrem três vezes mais negros que brancos, acrescentou.
Para a senadora Lídice da Mata (PSB-BA), presidente da CPI, são informações como essas que justificam a investigação do problema pelo Senado. Ela acredita que não é possível discutir medidas para enfrentar a violência sem conhecer bem as suas causas.
— O jovem é justamente o elo mais fraco nessa cadeia da violência. Pesquisas de diversas instituições dão o diagnóstico de que o maior número de mortes violentas no país se dá na população masculina entre 16 e 28 anos, portanto, entre os jovens. E em números assustadores, números de uma verdadeira guerra — argumentou.
Para Lídice, a matança de jovens no Brasil é um verdadeiro paradoxo que se abate especialmente sobre a juventude negra. Justamente quando o jovem está se preparando para oferecer sua mão de obra ao país em retorno daquilo que recebeu em investimento em saúde, em educação, em estímulo a sua formação, esse jovem é perdido.
Vítimas
As vítimas preferenciais têm cor, gênero, idade e território definidos, como explicou à CPI Samira Bueno Nunes, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que é formado por gestores públicos, pesquisadores e policiais.
Negros, jovens, do sexo masculino e moradores do Nordeste são a parcela da população com o maior índice de vulnerabilidade à violência, associado a outros indicadores de risco como pobreza, desigualdade e frequência à escola.
A Paraíba apresenta o maior índice de violência contra os jovens negros, ocorrendo no estado 13 vezes mais assassinatos de jovens negros do que de jovens brancos. Em seguida, vêm Alagoas e Pernambuco. A região tem apresentado o maior crescimento de mortalidade por homicídio no país na última década.
O número de policiais mortos em ação, 490 assassinados só em 2013, também foi apontado pela debatedora, que questionou a espiral de violência e o modelo de segurança pública.
— A gente tem que pensar em garantir cidadania, garantir a vida para a população. Eu acho difícil que a gente consiga avançar se a gente não mexer na estrutura desse sistema — disse.
Causas
Em um resumo dos resultados encontrados até agora, a presidente da CPI diz que há, de um lado, a pobreza, a falta de condições e de oportunidades da juventude pobre, negra e de periferia no Brasil. Por outro lado, há a cooptação de parte desses jovens vulneráveis pelas organizações criminosas.
— O que chama a atenção é que, num período de 10 anos, diminuiu o número de jovens brancos mortos e aumentou o número de jovens negros mortos. Obviamente que nós desejamos que diminua toda a estatística de mortes de jovens. Mas é importante investigar esta diferenciação — pondera Lídice.
E outro fator determinante seria uma estrutura de segurança pública treinada para o conflito armado, justificado pela guerra às drogas, somado à figura do auto de resistência, que praticamente inviabiliza qualquer investigação e punição aos autores dos homicídios.
— Uma boa parte das mortes ocorre sob o argumento de que ela se deu pela resistência do jovem à ação da polícia. E essa é uma figura incomum nas sociedades democráticas, que existe só no Brasil, e que não pode ser usada como pretexto para a morte de tantos jovens — observa a senadora.
Advogada: dispositivo institucionaliza violência policial
A política de combate às drogas e a atuação da polícia militar foram alvo de duras críticas por vários convidados aos debates da CPI do Assassinato de Jovens.
A advogada Natália Damazio Pinto Ferreira, representante da Justiça Global, apontou como marco para a institucionalização da violência policial a criação em 1969, durante a ditadura militar, do dispositivo conhecido como auto de resistência.
— Uma das características marcantes do auto de resistência é justamente que quem fica em julgamento é a vítima, e não o fato, nem se tenta investigar a autoria do homicídio — explicou a advogada.
Segundo Natália, a manutenção do auto de resistência vem garantindo a violação de direitos humanos, de princípios e normas do direito penal e processual penal, sem que isso seja visto como violação dessas normas. Grande parte dos procedimentos de investigação é deixada de lado quando há homicídio por policiais em áreas de periferia.Ocorre a remoção de cadáveres sem perícia, pela prática do “falso socorro”, ou mesmo se impede o socorro às vítimas. A investigação muitas vezes é marcada por uma comunicação entre o Ministério Público e Polícia Civil, em que não se faz nenhuma diligência em si, mas fica pedindo-se mais tempo para investigação. Não há perícia oficial na cena do crime e tampouco perícia autônoma independente.
A advogada citou casos emblemáticos de jovens e crianças negros assassinados pela polícia em megaoperações nas favelas do Rio de Janeiro, caso do menino Gilson, de 12 anos, no Morro do Dendê, e também onde há unidades de polícia pacificadora (UPPs), com registro de 50 pessoas executadas.
— Seria importante levar em conta a participação direta do Estado na morte de jovens no país. A redução dos homicídios não pode ser concretizada sem que se discuta o fim do racismo, a desmilitarização da polícia e um reforço das instituições de direitos humanos — defendeu.
Condenação
Natália relatou que, recentemente, durante uma audiência pública na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), foi apontado que os autos de resistência representavam não apenas o indicativo de uma transição para o período democrático falha, como também um sintoma de racismo estruturante da sociedade brasileira.
O Brasil já foi condenado na CIDH por um caso de auto de resistência, que foi o assassinato do jovem Wallace de Almeida, de 18 anos, no Morro da Babilônia, Rio de Janeiro, em 1998. Ele foi executado durante uma operação policial e a família foi impedida de fazer o socorro.
Para Lídice da Mata, a estrutura de segurança pública brasileira precisa ser pensada com base no direito da pessoa humana, no direito à cidadania.
— O que nós verificamos é que acontece a morte de um policial naquele território e a polícia volta para, digamos assim, realizar sua vingança. Encontra grupos de jovens envolvidos com o tráfico de drogas e a matança se dá. E tudo sob a justificativa de que é possível ter licença para matar porque se trata de tráfico de drogas. Não é possível que nós continuemos com essa política de enfrentamento das drogas no Brasil — considera.
CPI estuda medidas de inclusão social para todo o Brasil
Desde que foi instalada, em maio, a CPI do Assassinato de Jovens já promoveu 11 audiências públicas em Brasília e em outros estados, com destaque para os do Nordeste, onde a situação tem se agravado.
A próxima audiência interativa da CPI será realizada no Recife, na sexta-feira.
O relator da CPI, Lindbergh Farias (PT-RJ), lamentou que a juventude brasileira esteja morrendo pela milícia, pelo tráfico e pela polícia. Ele também apontou que há uma diferença de tratamento da polícia entre os lugares mais humildes e as regiões mais ricas das cidades. O senador defende uma reforma na polícia.
— O tamanho do desafio posto a esta CPI supera qualquer preferência partidária ou alternância natural dos governos que enfrentam problemas. Trata-se de um desafio de todos os brasileiros — avaliou o senador, que solicitou o apoio dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os níveis para a investigação.
Fátima Bezerra (PT-RN) afirmou que a CPI contribui com uma reflexão, apontando o caminho mais adequado para o combate à violência entre os jovens.
A última parte do trabalho será a apresentação do relatório final, previsto para dezembro, em que o senador Lindbergh pretende obter respostas para vários questionamentos e apresentar propostas de ações. Entre os temas que serão abordados, estão a maioridade penal, o desarmamento, o acesso a armas ilegais, a violência policial e a baixa taxa de esclarecimento desses crimes.
Na avaliação da presidente da CPI, o fenômeno da violência letal contra os jovens é nacional. Por isso, a senadora acredita que o enfrentamento exige medidas nos âmbitos municipal, estadual e federal.
— São necessárias medidas de inclusão social, que se dão por uma forte ação de políticas municipais e estaduais, mas, decisivamente, de políticas nacionais. É preciso um grande pacto nas três esferas de poder pela diminuição do homicídio de jovens. O foco da política de segurança tem que estar muito claro. É preciso diminuir a morte de jovens, porque são justamente eles que mais morrem na sociedade brasileira neste momento — avalia.
Impunidade alimenta ciclo de violência, dizem mães
Débora Maria da Silva, Vera Lúcia Gonzaga dos Santos e Terezinha Maria de Jesus, integrantes do Grupo Mães de Maio, contaram à CPI a história do assassinato de seus filhos por policiais. Em todos os casos, segundo os relatos, a execução foi feita de forma covarde e sem motivo.
Terezinha, mãe de Eduardo Jesus Ferreira, morto aos 10 anos com tiro de fuzil na porta de casa durante operação policial no Complexo do Alemão, no Rio, lamentou a existência de policiais mal treinados “que entram na favela para matar inocentes”.
Vera Lúcia relatou que sua filha Ana Paula Gonzaga dos Santos, que estava grávida, foi uma das vítimas da onda de violência que tomou conta de São Paulo em 2006, após uma série de atentados patrocinada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Vera disse que a investigação da morte de sua filha foi arquivada e lamentou o descaso do Estado no combate a esse tipo de crime.
Após ter enterrado, em 2006, o filho Edson, Débora Maria da Silva considera fundamental a luta para evitar que outros jovens sejam vitimados pela polícia. Débora lembrou que, quando um homicídio é cometido por um policial, eles costumam distorcer as provas do crime.
A assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional, Renata Neder, revelou que nos últimos cinco anos a polícia em serviço foi responsável por cerca de 16% de todos os homicídios praticados no Brasil e lamentou a quantidade de investigações em aberto e o quadro chocante de impunidade nesses crimes. Ela acrescentou que a constante ameaça e intimidação às testemunhas também são fatores que dificultam a investigação.
— Essa impunidade, além de ser uma segunda forma de violência contra as famílias, é também uma carta branca, alimenta o ciclo de violência e da letalidade policial — disse.
Para Renata, a mobilização de mães, de familiares e da comunidade é fundamental para que esses casos não fiquem sob o manto do auto de resistência, mas sejam investigados como um homicídio.
Ela lembrou o caso do menino Jonathan, de Manguinhos, Rio de Janeiro. A investigação só pôde acontecer porque os familiares se mobilizaram e não deixaram que o registro fosse feito como auto de resistência e o caso foi parar na Divisão de Homicídios.
A senadora Fátima Bezerra elogiou as participantes do debate pela coragem de exporem suas dores e indignações à comissão.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
MAIS NOTÍCIAS SOBRE: