Excesso de extração criou geração de desdentados

André Falcão | 29/08/2017, 10h27

A perda dentária é considerada um dos principais prejuízos à saúde bucal devido à sua alta ocorrência e aos danos estéticos, funcionais, psicológicos e sociais que acarreta. Além do mais, é uma perda evitável.

Estudos epidemiológicos mostram que as perdas dentárias são uma marca da desigualdade social em diversas sociedades, o que não é diferente no Brasil. As perdas dentárias são maiores nos estratos de menor renda.

— A saúde bucal nunca foi um direito de cidadania. Quem precisava de tratamento odontológico ou mesmo ações de prevenção tinha que pagar por ela ou acessava os serviços públicos de saúde, que eram muito escassos e ofertavam na maioria das vezes apenas a extração dentária. Isso produziu resultados muito ruins no Brasil — explica o professor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) Gilberto Pucca.

Um levantamento feito em 2003 pelo Ministério da Saúde revelou uma situação dramática: 3 em cada 4 pessoas com mais de 60 anos já havia perdido todos os 32 dentes da boca.

— Isso significa ter sido submetido a 32 cirurgias odontológicas. Esses dentes não foram perdidos por acaso. Na realidade, o Brasil vivia um processo de mutilação em massa da população pobre, que não tinha acesso às ações de promoção da saúde e a tratamentos odontológicos — condenou Pucca.

Para o professor, as perdas dentárias no Brasil sempre foram consideradas algo natural. Na avaliação dele, a saúde bucal só é considerada essencial por quem tem dinheiro.

— Eu sempre pergunto em sala de aula: "Se você perder um dente, vai ficar incomodado? Se tiver uma cárie no dente, vai ficar incomodado? Por que quem não tem dinheiro não fica incomodado?". Porque [é visto como natural] que quem tem dinheiro tem tratamento odontológico, tem sorriso, tem auto-estima. Quem não tem dinheiro extrai o dente ou faz uma dentadura, e isso é normal. Mas não é normal perder dentes. Nós estamos falando de saúde, não apenas de estética. Vários estudos têm mostrado o impacto que a saúde bucal tem na autoestima das pessoas.

Avanços

Pucca coordenou o Brasil Sorridente desde a sua implantação até 2016.

— Após sete anos, de 2004 a 2010, 44% das crianças brasileiras chegaram aos 12 anos de idade sem cárie. Isso nos colocou na classificação da OMS [Organização Mundial de Saúde] como país de baixa prevalência de cárie. Isso significa que o programa estava no caminho certo.

A integração com a atenção básica é um dos destaques do programa. Segundo Pucca, com o Brasil Sorridente, o número de equipes de saúde bucal saltou de 4,3 mil em 2003 para 24 mil em 2013.

— Em 2003, não cobríamos nem 5% da população brasileira com a equipe de saúde bucal na atenção básica, que é justamente o nível onde se deve alcançar o número maior de pessoas — calculou.

Cada equipe atende mil famílias (cerca de 4 mil pessoas).

— Não adianta continuarmos apenas criando serviços odontológicos. Eles são necessários porque a demanda reprimida é alta. Mas se não fecharmos a torneira de produção da doença, isso não se equaciona. E quem fecha a torneira são as equipes de atenção básica. Elas fazem toda a parte de prevenção na escola, na família, nos postos de saúde — explicou o professor.

As ações de prevenção incluem a orientação sobre como se fazer uma boa higiene bucal. Há também uma frente do Brasil Sorridente que é o Programa Saúde na Escola. O trabalho das equipes de saúde bucal é unificado com o de outras equipes de saúde e há orientação até mesmo sobre a merenda escolar.

— Se nós conseguirmos equacionar o problema do consumo de açúcar na escola, não vamos estar prevenindo apenas a cárie, o que não é pouco. Também estaremos prevenindo o diabetes, a obesidade. É um trabalho de promoção da saúde dentro da escola por meio de uma alimentação saudável, por exemplo. Essas ações são feitas pelos profissionais da atenção básica — explica Pucca.

Canal

O programa também ampliou o acesso a tratamentos especializados. Em 2003, apenas 4% dos procedimentos odontológicos oferecidos pelo SUS eram procedimentos especializados. Como relatou o professor Pucca:

— O setor público não oferecia o tratamento de canal. Quando você precisava fazer esse tratamento, tinha que recorrer ao setor privado, que cobra de R$ 200 a R$ 400 por dente. Quem não tinha dinheiro para fazer isso tinha o dente extraído. Essa era a história natural da perda dentária no Brasil.

Com a implantação dos Centros Especializados de Odontologia (CEOs), segundo Pucca, hoje 25% dos procedimentos odontológicos já são especializados. Hoje já há 2,5 mil CEOs distribuídos por todas as unidades da Federação.

— Devemos crescer muito porque a demanda reprimida ainda é alta. O brasileiro ainda não tem acesso a tratamento odontológico especializado de uma forma geral. Os CEOs ainda não são suficientes. É preciso expandir. E isso ainda demanda investimentos públicos — projeta.

O professor considera importante a proposta de institucionalizar a política de saúde bucal para que o cidadão não fique na dependência dos governos que tenham sensibilidade ou não para investir em saúde pública. Ele lembra que o cidadão precisa exigir isso do poder público, principalmente dos governos municipais.

— Se o seu município não tiver atendimento odontológico público, você tem que cobrar do vereador e do prefeito para saber se a verba está chegando, se ela foi pedida, e para que eles de fato priorizem isso no município.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)