Os historiadores costumam torcer o nariz para as especulações. O que teria acontecido se dom Pedro II não tivesse se rendido à espada dos republicanos? E se Getúlio Vargas não tivesse se suicidado? Para os estudiosos da história, é infrutífero dedicar-se a conjecturas que jamais serão comprovadas.

Mesmo assim, o “e se?” pode ter algum valor. No dia 6 de maio, o Senado comemorou seu 190º aniversário. E se ele não tivesse sido criado? E se tivesse sido extinto? Presumir o que teria sido do Brasil sem a Câmara Alta vai além do exercício de imaginação. Ajuda a deixar claro o quanto o Senado, aberto em 6 de maio de 1826, tem sido fundamental para a estabilidade do país.

Não fosse a ação dos senadores, por exemplo, talvez hoje o mapa nacional fosse outro. O Brasil poderia ter se pulverizado em vários países na década de 1840, tal qual havia ocorrido com a América espanhola no processo de independência, ou então nos anos 1890, na instabilidade dos primórdios da República.

A ditadura militar poderia ter tido uma vida mais longa. Sem a firmeza do Senado na defesa da democracia, é provável que o golpe tivesse ocorrido antes de 1964 e que o sepultamento do regime tivesse se dado depois de 1985.

No decorrer destes quase dois séculos, explica o historiador e consultor legislativo do Senado Marcos Magalhães, os senadores não têm se limitado a aprovar leis e fiscalizar o governo:

— O Senado se fez presente em momentos delicados da história nacional agindo como moderador e conciliador, fazendo a mediação entre interesses conflitantes, ajudando a costurar consensos, apontando saídas e evitando quebras da ordem institucional, traumas e rupturas.

O Arquivo do Senado, em Brasília, tem sob sua guarda documentos de todos estes 190 anos. Os papéis, muitos deles amarelados pelo tempo, contêm os debates protagonizados pelos senadores e mostram as rotas tomadas para debelar as crises nacionais.

Nos anos 1830, o Brasil convulsiona. Guerras civis explodem pelo Império, como a Cabanagem e a Revolução Farroupilha. É a década da Regência, o governo-tampão implantado após a renúncia de Pedro I para vigorar até que Pedro II complete 18 anos e possa ser coroado, o que só ocorreria em 1843.

No período regencial, os políticos locais encontram o ambiente ideal para conseguir mais autonomia para as províncias e, ao mesmo tempo, reduzir a força do governo central. Somando-se isso às guerras internas, o Império está na iminência de se desmantelar.

Em 1840, senadores e deputados fazem uma reunião de emergência no Senado, no Rio, para discutir a crise e, ante a incapacidade dos regentes de manter a ordem, decidem propor a Pedro II a antecipação da maioridade e da coroação. Segundo os documentos guardados no Arquivo do Senado, ele, aos 14 anos e ainda sem barba, imediatamente responde “sim”.

Pedra no sapato

Para os parlamentares, só Pedro II será capaz de impedir o esfacelamento do Brasil, graças à autoridade da figura do monarca e ao seu poder simbólico de forjar uma identidade nacional.

— Esse augusto jovem, que é descendente de imperadores e reis, nos oferece imensas garantias e, segundo espero, há de pôr um bálsamo sobre as feridas da nação brasileira — afirma o senador Ferreira de Mello (MG).

Pedro II presta juramento no Senado no dia seguinte. De acordo com o historiador Antonio Barbosa, da Universidade de Brasília (UnB), não há dúvidas de que a derrubada da Regência e a maioridade antecipada caracterizam um golpe de Estado:

— Mas um golpe que fica plenamente reconhecido como benéfico, já que consegue a proeza de manter a integridade territorial de um país das dimensões do Brasil.

Uma das mais incômodas pedras no sapato de Pedro II em meio século de reinado é a escravidão. De um lado, está o grupo que defende a abolição imediata, capitaneado pelos interesses comerciais da Grã-Bretanha. Do outro, o grupo que milita pela manutenção, encabeçado pelos latifundiários.

Esse barril de pólvora só não explode porque o imperador assume uma posição intermediária, impondo uma abolição lenta e progressiva. Ele sabe que a escravidão não pode permanecer por muito tempo no Brasil, que se vê cada vez mais isolado no mundo por causa desse modo de produção bárbaro, mas ao mesmo tempo entende que seria desastroso para a Coroa dar um golpe na elite rural, que garante toda a sustentação política e econômica da Monarquia.

O Senado é decisivo para que Pedro II percorra a via gradualista, livrando-se tanto de uma agressão militar da Grã-Bretanha quanto de uma rebelião da elite agrária — situações com potencial para demolir o Império.

Em 1850, vira lei um projeto do senador e ministro Eusébio de Queirós (RJ) proibindo o tráfico de escravos. Em 1871, é aprovada uma proposta do senador Visconde do Rio Branco (MT) que declara livres todos os filhos de escravas nascidos a partir de então. Em 1885, entra em vigor uma lei sugerida pelo senador José Antônio Saraiva (BA) concedendo a alforria a todos os cativos com mais de 60 anos.

As normas entram para a história como Lei Eusébio de Queirós, Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários.

— Pode a nação condenar-se a um statu quo [a escravidão] que a abate e a humilha simplesmente porque alguns homens mais ou menos influentes de uma classe muito limitada não querem que a reforma se faça? Não, é preciso que os representantes de nação, compenetrados de seus deveres, saibam caminhar para diante. É o que peço — diz o senador Dantas (BA) em 1886.

São as três leis concebidas no Senado que preparam o terreno para a célebre Lei Áurea, de 1888.

Mesada para o governo

Já nos primeiros meses da República, os senadores voltam a se mostrar imprescindíveis. O desafio é conceber uma Constituição que consolide o novo regime. Um dos pontos centrais em discussão no Congresso Constituinte de 1890 e 1891, formado por senadores e deputados, é o grau de independência que os estados terão.

A corrente liderada pelo deputado Júlio de Castilhos (RS) milita por estados fortes e governo central fraco, invertendo a ordem vigente no Império. Para esse grupo, entre outros pontos, a Constituição deve direcionar todos os impostos para os cofres estaduais. A União passaria a depender de uma mesada enviada pelos governadores.

O senador Ruy Barbosa (BA) se lança com todas as forças contra essa ideia. Para ele, a nascente República não vingará se a União for mais fraca do que os estados. O ideal, segundo ele, é uma Federação com os dois entes fortes, sem que um seja refém do outro.

— A ideia federalista assumiu a posse de todos os seus espíritos, mas o seu domínio exagera-se. Há um apetite desordenado e doentio de federalismo, cujas consequências seriam a perversão e a ruína do princípio federativo — adverte ele.

Na defesa da União, Ruy ganha o apoio de colegas. O senador Ubaldino do Amaral (PR) enumera missões que estão nas mãos do governo federal e exigem recursos financeiros, como “representar a nação no exterior, sustentar o Exército e a Marinha, prover o serviço de correios e telégrafos, garantir a segurança interna e manter o crédito nacional”, e lembra que o Brasil precisa de “grandes melhoramentos que os estados por si sós não podem fazer”.

Ruy continua:

— Se nós, nas primeiras medidas adotadas por este Congresso, não demonstrarmos que a nossa preocupação é manter a unidade da pátria, a República será uma grande decepção.

No final, a partilha dos impostos acaba entrando na Constituição de 1891 tal qual o desejo de Ruy Barbosa. Uma parte da arrecadação fica com a União e a outra, com os estados. Segundo o historiador Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa, a decisão dos constituintes é acertada:

— No início da República, revoltas contestam o governo, como a Revolução Federalista, nos estados do Sul. Se tivesse vingado, o modelo [arrecadatório] de estados fortes e União fraca teria arruinado o país. A União, sem dinheiro nem mesmo para o Exército, não conseguiria evitar que tamanha autonomia dos estados levasse ao separatismo.

E se não houvesse o Senado nas explosivas décadas de 1950 e 1960? O provável é que o golpe militar tivesse ocorrido antes de 1964. A política começa a fervilhar em 1951, quando Getúlio Vargas volta ao Palácio do Catete, agora pelo voto popular.

Os militares e os políticos da UDN se inquietam. Eles abominam as bandeiras nacionalistas e trabalhistas levantadas pelo presidente. Antevendo o golpe que estão prestes a dar, Getúlio se mata com um tiro no peito em 1954. O vice, Café Filho, assume a Presidência. Como Getúlio previa, o suicídio põe o Brasil contra os golpistas.

Mas a paz dura pouco. No ano seguinte, Juscelino Kubitschek é eleito presidente pelo getulista PSD. A sanha golpista renasce com força total.

No final de 1955, o presidente Café Filho se afasta alegando problemas no coração. O presidente da Câmara, Carlos Luz, assume interinamente o Catete decidido a impedir a posse de JK. O ministro da Guerra, Henrique Lott, fareja o complô e, com tiros de canhão, frustra o golpe. O Senado e a Câmara trabalham durante a madrugada e a toque de caixa aprovam o impedimento de Carlos Luz.

A trama continua. Café Filho anuncia que seu coração está recuperado e avisa que voltará ao Catete. Lott vê também no presidente a disposição de ajudar os golpistas na missão de abater JK e põe tanques de guerra nas ruas do Rio para impedir que Café saia de casa e reassuma a Presidência. O Senado e a Câmara declaram o segundo impedimento de um presidente em menos de duas semanas.

Quem assume o governo é Nereu Ramos (PSD-​SC), vice-presidente do Senado, que transmitirá a faixa para JK no início de 1956, garantindo a manutenção da democracia.

— A Constituição precisou ser rasgada algumas vezes naquele final de 1955. Não fosse isso, JK não teria assumido a Presidência — explica o jornalista Wagner William, autor da biografia de Lott O Soldado Absoluto.

Poderes esvaziados

Jânio Quadros, o sucessor de JK, toma posse em janeiro de 1961 e, para surpresa da nação, anuncia sua renúncia poucos meses depois, em agosto. O vice, João Goulart, afilhado político de Getúlio, se encontra na China comunista, em viagem oficial. Os ministros militares avisam que não permitirão a posse do vice.

No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola se alia a uma parte do Exército e promete recorrer às armas para barrar o golpe. O Brasil se encontra à beira de uma guerra civil.

O banho de sangue só não ocorre graças às negociações feitas dentro do Legislativo. O senador Auro de Moura Andrade (PSD-SP), na condição de presidente do Congresso, encarrega uma comissão de senadores e deputados de propor uma solução. O grupo oferece a saída parlamentarista, que prevê a posse de Jango, mas com o presidente com poderes esvaziados, dividindo o governo com um primeiro-ministro. A emenda constitucional é aprovada pelo Senado e pela Câmara e em poucos dias Jango sobe à Presidência. A medida, em setembro de 1961, adormece o golpe militar.

— É merecedora dos maiores aplausos a maneira como o senador Moura Andrade vem conduzindo os nossos trabalhos nestes dias em que a nação foi abalada e se agitaram todos os representantes do povo num transe terrível — discursa o senador Heribaldo Vieira (UDN-SE).

— Os partidos esqueceram por um momento suas rivalidades e saíram ombro a ombro para a peleja maior que era a da democracia.

No plebiscito de 1963, os brasileiros optam pela volta do presidencialismo e Jango consegue poderes plenos. A crise volta a se instalar. Em 1964, os golpistas finalmente alcançam o que desejam desde o governo de Getúlio.

O Senado também tem peso na derrocada da ditadura militar. Nas eleições de 1974, o regime é surpreendido pela vitória avassaladora do oposicionista MDB na renovação de um terço das cadeiras do Senado. Das 22 vagas em disputa, o MDB vence 16. A Arena, partido do governo, obtém 6 assentos. O resultado é claro: o país rejeita o regime.

Novos representantes do MDB no Senado, Paulo Brossard (RS) e Marcos Freire (PE) se destacam nas críticas à ditadura a partir de 1975. Até mesmo os deputados largam as sessões da Câmara para acompanhar os exaltados e corajosos debates no Senado.

— O Senado se torna um foco de rebeldia contra as arbitrariedades dos militares — afirma o brasilianista James Green, professor de história do Brasil na Universidade Brown, nos Estados Unidos.

Em 1979, Brossard sobe à tribuna para atacar a Lei de Anistia que o governo acaba de aprovar no Congresso. Para ele, a lei é insuficiente e beneficia os torturadores:

— Votado hoje o projeto da anistia restrita, ou da anistia mesquinha, ou da anistia caolha, ou da anistia paralítica, hoje, ainda hoje, daqui diremos ao Brasil: a nossa vitória ainda está longe de ser alcançada, mas, dia mais, dia menos, ela virá, pela voz dos homens que anunciarão a anistia para os brasileiros.

A ditadura adota medidas para conter a insubordinação do Senado, como a criação da figura do senador biônico. Mas o regime já está exausto e a abertura se torna inevitável. Em 1983, o senador Tancredo Neves (PMDB-MG) deixa o Senado para assumir o governo de Minas Gerais e faz um discurso de despedida incisivo:

— Sem a democracia, a vida se torna vil, os homens se corrompem na subserviência ou na violência, e a pátria escravizada perde o senso de sua própria dignidade. A nossa geração viveu e assistiu de perto ao que é o liberticídio. Que aquela época sinistra seja proscrita, e para sempre, da nossa história.

Tancredo se torna líder na luta pelo fim da ditadura. Em 1984, ele sai do governo mineiro para disputar a eleição presidencial indireta como candidato da oposição. Vence, mas não assume. Justamente na noite anterior à posse, em 1985, aquele que seria o primeiro presidente civil após 21 anos passa por uma cirurgia de emergência.

Surge a dúvida: poderá o vice, José Sarney, assumir interinamente sem que o titular tenha sido antes empossado? Teme-se que os militares decidam retardar a redemocratização, rejeitando Sarney e propondo uma nova eleição.

Mais uma vez, os senadores têm que agir. Na madrugada, a poucas horas da cerimônia de posse, os presidentes do Senado, José Fragelli (PMDB-MS), e da Câmara, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), e os líderes partidários das duas Casas fazem uma reunião extraordinária para decidir o futuro do país. Concluem que basta um laudo médico sobre a cirurgia de Tancredo para que o Senado dê posse a Sarney. A volta da democracia está garantida.

E se o Senado não existisse? Além do “e se?”, o professor de ciência política David Fleischer, da UnB, propõe outro método capaz de confirmar a importância do Senado para a estabilidade do Brasil:

— Basta olhar o Peru e a Venezuela, onde o Legislativo é composto de apenas uma Casa, e não duas. Nos anos 1990, os ditadores Alberto Fujimori e Hugo Chávez acabaram com o Senado. O interesse deles, claro, era governar com muito mais poderes. E conseguiram, para o mal de seus países.


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