Sarney: Tancredo ainda não recebe do país o devido reconhecimento
Ricardo Westin | 02/03/2015, 17h47
José Sarney passou 37 dias como presidente interino. Com a morte de Tancredo Neves, assumiu definitivamente a Presidência da República e consolidou a redemocratização. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Arquivo S:
“Eu não consegui dormir na virada de 14 para 15 de março. Passei a madrugada acordado porque estava profundamente preocupado e angustiado, acompanhando os acontecimentos da doença do Tancredo. A minha preocupação não era tanto política. Era mais humana, porque eu era amigo do Tancredo.
Ainda no hospital, começou-se a dizer que eu teria que assumir como vice-presidente. O Ulysses [Guimarães, presidente da Câmara] me disse: ‘Lutamos muito para chegar até aqui. Não podemos parar agora. O Brasil precisa dessa atitude’. Eu respondi: ‘Só assumo com Tancredo’. Eu tinha a absoluta certeza de que o Tancredo estaria em condições de assumir dentro de uma semana, já que seria uma operação relativamente simples. Ninguém imaginava o desfecho daquela hospitalização.
Fui para a minha casa. Às 3h da manhã, recebi um telefonema do [José] Fragelli, que era o presidente do Congresso: ‘Sarney, já está resolvido. Você vai assumir como vice-presidente logo mais, às 10h. Nós vamos lhe dar posse’. Havia a informação de que a área militar que apoiava o [presidente João] Figueiredo e o [ministro do Exército] Walter Pires pretendia fazer um levante nos quartéis para eu não assumir e não haver a transição democrática. Foram momentos dramáticos. Quando o Fragelli me disse tudo aquilo, minha ficha caiu. Foi então que eu senti que a minha responsabilidade era imensa, que o futuro do país dependia da posse. Havia uma ala militar que estava do nosso lado, comandada pelo Leônidas Pires Gonçalves, o ministro do Exército escolhido por Tancredo. Alguns minutos depois, por volta das 3h30, foi o Leônidas que me ligou: ‘Sarney, você tem que prestar o compromisso às 10h. Não crie nenhuma dificuldade para nós. Todos nós estamos depositando extrema confiança em você’. Antes de desligar o telefone, ele se despediu: ‘Boa noite, presidente’. Aquela frase me marcou. Na hora marcada, eu estava no Congresso.
Na minha opinião, o Tancredo ainda não ocupa o lugar que ele merece na história do Brasil. Falta da sociedade o reconhecimento necessário. Foi ele quem garantiu a transição democrática. Graças a ele, com seu temperamento e sua experiência, a transição foi feita sem traumas, ao contrário do que ocorreu em outros países da América Latina, onde a transição se deu com guerra, violência, derramamento de sangue. O [jurista e político] Afonso Arinos tem uma frase que resume muito bem: ‘Muitos deram a vida pelo Brasil. O Tancredo deu a sua morte’. Nós sempre seremos devedores do Tancredo.
Foi um tempo muito difícil, mas terminou bem porque conseguimos garantir a redemocratização do país. Como presidente da República, convoquei a Assembleia Nacional Constituinte, que nos deu a Constituição que temos até hoje. Graças a ela, vivemos numa democracia social. A cidadania se consagrou. Antes, o governo só tinha preocupação econômica. Naquele momento, o social entrou na pauta. Para dar apenas um exemplo, a saúde, que era um privilégio daqueles que tinham carteira assinada, passou a ser um direito de todos os brasileiros.
Figueiredo não quis me passar a faixa. O meu sucessor [Fernando Collor] era meu adversário político, e eu lhe entreguei a faixa presidencial. Naquele momento [nas eleições de 1989], a República comemorava 100 anos. Só pudemos comemorar de verdade porque já vivíamos numa democracia plena."
Reportagem atualizada em 24/01/2020
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)