Pescadores condenam restrição de acesso ao seguro-defeso

Paulo Sérgio Vasco | 27/04/2015, 19h51

Representantes de comunidades de pescadores criticaram nesta segunda-feira (27) as alterações trazidas pela Medida Provisória (MP) 665/2014 em relação ao pagamento do seguro-defeso - valor pago a trabalhadores da pesca durante o período de reprodução dos peixes, quando há a proibição da pesca para evitar danos às espécies. Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), eles disseram que a MP marginaliza os pescadores e retira direitos históricos dos trabalhadores do setor.

Integrante do pacote de ajuste fiscal do governo, a MP 665/2014 impõe carência de três anos, contra o período atual de um ano, para acesso ao seguro no período de defeso; limita o pagamento do seguro a cinco parcelas, enquanto a proibição da pesca é de seis meses; proíbe os pescadores de receber dois benefícios simultâneos, como o seguro e a bolsa-família; transfere a execução do seguro-defeso do Ministério do Trabalho para a Previdência Social; e impede categorias envolvidas na cadeia produtiva da pesca de receber o benefício, a exemplo dos envolvidos na seleção de mariscos e na fabricação de instrumentos artesanais usados na atividade, geralmente produzidos pelas mulheres dos pescadores.

Os representantes dos pescadores disseram ainda que a MP relaciona-se a outras ações do governo que limitam seus direitos, como o Decreto 8.425/2015, que regulamenta o parágrafo único do artigo 24 e do artigo 25 da Lei 11.959/2009. O decreto define os critérios para inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira, existente desde 1938, e para a concessão de autorização, permissão ou licença para o exercício da atividade pesqueira.

O senador João Capiberibe (PSB-AP) disse que a medida tem "tirado o sono" dos pescadores. Ele afirmou que são pontuais as irregularidades verificadas no pagamento do seguro-defeso pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que identificou o recebimento do beneficio por pessoas que não se enquadravam na atividade pesqueira. Foi identificado um rombo de R$ 19 milhões, pagos a pessoas que já estariam mortas ou que eram inabilitadas para exercer a atividade. O governo determinou o corte no pagamento do beneficio, e alegou que o valor do desvio é “infimo”, pois representa 0,005% da execução total do seguro pelo Ministério do Trabalho, explicou o senador.

— O fato é que as enormes distâncias e a burocracia podem tornar inacessível o recebimento [do benefício] por pescadores, inviabilizando direitos e favorecendo desastres ambientais. Exigir que os pescadores que recebam tal benefício sejam exclusivamente pescadores é inadmissível — afirmou.

Subsistência

O representante do Conselho Pastoral dos Pescadores, Raimundo Marcos Souza Brandão da Silva, disse que o seguro-defeso é fundamental para  garantir a subsistência dos pescadores.

— Como os pescadores vão sustentar suas famílias ao longo do período extenso de pesca proibida pelo Estado? Isso implica colocar os pescadores em situação de marginalidade, pois eles serão obrigados a exercer a atividade de forma contrária à lei. Vai trazer criminalização e sofrimento social, o que não é admissível, não e razoável. Foi uma alteração irresponsável na legislação, sem nenhum tipo de conhecimento de como funciona a sociedade e as necessidades dos trabalhadores — afirmou.

Josana Serrão Pinto, coordenadora da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), disse que as mudanças propostas na medida provisória trazem discriminação e preconceito.

— A nossa luta é por liberdade, não por opressão; é por direito, não por discriminação. Para quem tem, um salário mínimo não faz falta. Mas, para nós, faz muita falta — afirmou.

Manoel Bueno dos Santos, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras, afirmou que os pescadores artesanais não se sentem representados pela confederação nacional única da categoria. Ele disse que 70% do peixe consumido pelo brasileiro vêm da pesca artesanal.

— Isso precisa ser levado em consideração. A única coisa que queremos é continuar trabalhando, e que mude um pouco esse modelo de desenvolvimento cruel, muito cruel, que substituiu as áreas de pesca por estaleiros, gasodutos e petroleiros — afirmou.

Carlos Alberto Pinto dos Santos, secretário-executivo da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais, ressaltou que o governo deve considerar o alcance da pesca artesanal antes de definir marcos legais.

— [O governo] ignora conceitos de povos tradicionais, da cultura ancestral do repartir, trocar, permutar. O pescador também planta, colhe, beneficia mandioca, batata e ainda tem suas criações. Este modelo que estão impondo a nós está nos fadando à extinção. A quem interessa o enfraquecimento da pesca artesanal? Será que aos aquicultores, para nos ter como mão de obra  barata? O Brasil está avançando para o primeiro mundo, mas está jogando no lixo as culturas que formaram essa nação — afirmou.

Por sua vez, o secretário-executivo do Ministério da Pesca e Aquicultura, Clemerson José Pinheiro da Silva, lembrou que o recurso pesqueiro é um bem público, e que para fazer uso dele tem que haver concessão do Estado.

— O que mais se coloca como sendo violação ao direito é a falta de reconhecimento das comunidades tradicionais. Há um conjunto de medidas contraditórias e a não observação das leis que garantem direitos às comunidades tradicionais dentro do processo de definição de critérios. É o grande problema que esta havendo — afirmou.

Pesca industrial

Na segunda mesa de debates, o pesquisador da universidade federal do Pará (UFPA), Valci Santos, disse que a categoria dos pescadores é discriminada na elaboração de políticas publicas, mais articuladas à pesca industrial. Ele relatou que 85%c do pescado comercializado na Amazônia sofreu decréscimo em função da barragem de Tucuruí, e que os conflitos pelo acesso pesqueiro atingem níveis cada vez mais alarmantes, causando às vezes até morte.

Pesquisador de políticas publicas, Uelton Fernandes, disse que a edição da medida provisória pelo governo é um equívoco. Ele considerou que o tema diz respeito às populações mais pobres, que deveriam ser ouvidas antes de qualquer alteração na legislação, sob a justificativa do ajuste fiscal.

— Os pescadores entraram como gaiatos nessa história. O grande objetivo era fazer o ajuste do seguro-desemprego em função da conjuntura econômica. Eles incluíram os pescadores com a visão equivocada do seguro-defeso. Tratam o seguro-defeso como um seguro-desemprego do pescador. E aí tenta fazer uma série de ajustes no mesmo molde do seguro-desemprego. Qual é a natureza do seguro-defeso? Sem resolver isso não se resolve a questão — afirmou.

Para a secretária-executiva do Conselho Nacional da Pesca (Conape), Roseli Zerbinato, o ideal é que a lei fosse esmiuçada para os pescadores antes de sua publicação.

Por sua vez, a subprocuradora-geral da República, Débora Duprat, criticou a proposta, e disse que o governo não levou em conta a cultura dos povos tradicionais na edição da medida provisória.

— Eles não foram ouvidos, e a medida provisória peca por fazer com que uma medida de natureza indenizatória seja vista como beneficio previdenciário. O que a medida provisória faz é confundir identidade e atividade. A mulher pescadora entra na realidade do pescado. Ao excluir a mulher que trabalha na cadeia produtiva da pesca, a MP nega a sua identidade — afirmou.

Débora Duprat comprometeu-se a encaminhar à comissão encarregada de apreciar a medida provisória uma nota técnica sobre a necessidade de observar a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O instrumento, ratificado pelo Brasil em 2004, determina que as comunidades indígenas, quilombolas e populações tradicionais, como os pescadores, sejam ouvidas antes da adoção de qualquer medida legislativa ou administrativa.

No final da audiência publica, diversos pescadores, sobretudo da Bahia narraram casos de violência, perseguição e invasão de terras, entre outros. Eles também apontaram prejuízos causados em suas comunidades pelas indústrias do petróleo e de papel e pela expansão de atividades agrícolas. Uma integrante do quilombo Rio dos Macacos entregou a Capiberibe documento em que cobra providência contra desmandos praticados na região.

Requerimento

De acordo com requerimento de auditoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), encaminhado ao TCU em 2014, o seguro-defeso custou R$ 2,4 bilhões aos cofres públicos no ano passado - valor 32% maior do que o montante desembolsado em 2013, de R$ 1,8 milhão. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicou que em 2010, em todo o país, 584,7 mil pessoas receberam ao menos uma parcela do seguro-defeso. No entanto, segundo censo do mesmo período, havia apenas 275,1 mil pescadores artesanais no Brasil. Ainda segundo o estudo, as discrepâncias geraram uma espécie de sobrecusto no valor de R$ 638,4 milhões (valor corrente em 2010).

De acordo com o requerimento, o Ministério do Trabalho e Emprego alegou que o aumento no repassado em 2014 teve causa no reajuste de 6,78%, com expectativa de crescimento do número de pescadores em 4,74%. De 2002 para 2013, o universo de potenciais beneficiários do seguro-defeso aumentou consideravelmente, passando de 91,7 mil favorecidos para 714 mil.

O principal requisito para solicitação do seguro é possuir o registro de pescador profissional da pesca artesanal (RGP). Esse registro faz parte de um cadastro, cuja responsabilidade é do Ministério da Pesca e Aquicultura. O RGP contempla todos aqueles que se dedicam à atividade pesqueira, independente de ser pesca artesanal, industrial ou profissional.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)