À CPI, empresário admite manipulação no futebol e diz que lucrou R$ 300 mi

Da Agência Senado | 08/10/2024, 19h59

Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas nesta terça-feira (8), o empresário William Rogatto admitiu a manipulação de jogos de futebol no Brasil e disse que já ganhou aproximadamente R$ 300 milhões nesse esquema, que lucra com o rebaixamento de times. O empresário declarou-se réu confesso e disse que já rebaixou 42 times de futebol, tendo atuado nas federações de futebol de todos os estados brasileiros, no Distrito Federal e em nove países, como a Colômbia. Ele afirmou ainda que “o esquema de manipulação dos jogos só perde para política e o tráfico de drogas, em termo de valores”.

Rogatto depôs nesta terça-feira (8) por videoconferência à CPI. A comissão deverá ir na próxima semana a Portugal, onde está o empresário, que se colocou à disposição dos senadores para contar e exibir detalhes do “complexo sistema”, que inclui fotos, vídeos, negociações, gravações e conversas envolvendo a manipulação de jogos.

Investigado na Operação Fim de Jogo, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), e na Operação Jogada Ensaiada, conduzida pela Polícia Federal, Rogattto afirmou que o esquema de manipulação dos jogos existe há mais de 40 anos e que a “hipocrisia maior do mundo está em ter um clube de futebol hoje e ser patrocinado por uma casa de aposta”. 

— O sistema é muito além disso, os grandes não vão cair nunca. Estamos falando de dentro da CBF, de dentro das federações, tenho provas e vídeos. Isso não vai dar em nada, vai fazer vítimas do sistema e, no final, não vai acabar porque não é de agora. Isso existe há mais de 40 anos, eu fiz parte do sistema. Se eu tiver que pagar, vou voltar para o Brasil e pagar. Eu sou só apenas uma ferramenta, o mundo do futebol é muito mais do que a gente pensa. Não vai dar em nada, a gente vai passar por isso, nunca vai acabar, a maior máfia está dentro da federação — disse aos senadores.

“Gatilho”

Em resposta ao senador Romário (PL-RJ), relator da CPI, Rogatto afirmou que o fato de uma casa de aposta patrocinar um clube “já abre um gatilho para que tudo aconteça”.

— Quando uma bet patrocina o seu clube, automaticamente o jogador se transforma em aposta, ele não recebe um salário digno e a bet vem e dá um suporte. Já operei nos 27 estados e no Distrito Federal, onde bati de ferente com um cara muito forte. A gente vai na luta de poder. Infelizmente, eu perdi e fiquei exposto. Hoje, no futebol do Candangão, tem um cara que é poderoso e tem três clubes. Isso já é manipulação, já começou errado. O sistema é muito além do que a gente está fazendo aqui. Apreenderam coisas minhas, me pegaram em 2020, o sistema pode acabar comigo, mas não vai acabar – afirmou.

Romário sugeriu a Rogatto a realização de uma delação premiada. O empresário, porém, disse que esse instituto, embora “interessante”, não lhe garante a devida proteção, dadas as ameaças que vem recebendo de muitas pessoas envolvidas no esquema de manipulação, que inclui árbitros, presidentes de clubes e federações.

— O esquema não é pequeno, há pessoas que já ganharam muito dinheiro comigo. Tenho muitos anos nisso, trabalhei em todos os estados do Brasil e trabalhei fora, é muito além disso daí que vocês estão buscando. Se eu não fui o maior, fui um dos maiores; se não fui o maior do Brasil, fui o mais organizado do Brasil. Tem outros grupos, não vou ficar falando deles. São pessoas perigosas. Só resolvi falar hoje porque estou pensando que tem que acabar com isso aí. Eu vejo torcedor se matando, hoje a gente vê torcida do Corinthians, o torcedor sofre pelo time e mal sabe do que acontece nos bastidores. Eu pago muito bem por um gol. Não estou protegido para mexer com os caras que estão acima de mim. Se eu mexer, eu vou cair. Eu sou grande até um ponto, mas acima de mim tem [outros] — afirmou.

Hoje com 34 anos, Rogatto disse que está no esquema de manipulação desde 2009, quando, aos 19, teve a ideia de criar uma casa de aposta para lucrar com a manipulação de apostas esportivas, após viagem a Las Vegas, onde conheceu os cassinos locais.

— Sim, tem muitos, diversos. Tem jogadores que, no dia em que eu falar para você, você vai falar “eu não acredito nisso, não”. E já esteve próximo de você, é algo que eu vou apresentar a vocês, para vocês fazerem o que tem que ser feito. Eu sempre paguei muito bem para esses caras — disse Rogatto a Romário, que o indagou sobre a participação de jogadores da série A no esquema de manipulação.

“Hipocrisia”

Ao senador Jorge Kajuru (PSB-GO), que preside a CPI, Rogatto disse “que realmente frauda e que vive disso” e reiterou a “hipocrisia do sistema”.

— Não roubei ninguém, não matei ninguém. Eu trabalhei em cima do sistema, o sistema é falho, a política não funciona, o sistema não funciona. Achei uma brecha no sistema, que me fortaleceu. Eu me considero um lambari pequeno demais, muita gente grande eu seguro nas costas, mas a gente cansa. Basicamente, eu engano o presidente do clube. Vou pagar ele para colocar os meus atletas. Aquele time vai perder, ele vai me beneficiar nas minhas apostas. Alguns presidentes sabiam e aceitavam. Eu rebaixei 42 clubes no Brasil. Eu só posso ganhar dinheiro com eles caindo. Peguei dinheiro demais com os caras. Quando eu comecei, eu comecei sozinho, mas a ganância me dominou. Para isso eu tinha que colocar mais algumas pessoas no sistema, as pessoas viam que era lucrativo e centenas e centenas de empresários investiram em meu negócio. Eu tinha meus jogadores, meus atletas e entrava nos clubes, enganava alguns presidentes e alguns compactuavam comigo. O modus operandi é complexo, mas o básico é isso — afirmou.

Rogatto também afirmou a Kajuru que o esquema de manipulação favorece os árbitros do VAR [tradução para árbitro assistente  de vídeo]. Ao ser questionado pelo presidente da CPI se os times do Palmeiras e São Paulo “participaram desse jogo sujo”, Rogatto respondeu:

— É uma opinião minha, não sei se aconteceu ou não, está nitidamente, é só você olhar os gols. Os jogadores hoje, às vezes dois jogadores, desestruturam totalmente um jogo. Tem presidente que sabe e compactua com isso, tem presidente que eu engano, tem presidente que está ali para ganhar o dele, tem presidente que não compactua. Todos os jogos que eu fiz no Palmeiras eu ganhei — afirmou.

O senador Eduardo Girão (Novo-CE) defendeu a concessão de medida de segurança a Rogatto, em virtude do teor de suas declarações. Ao indagá-lo se havia a presença de políticos no esquema de manipulação, o empresário respondeu:

— Tem político, vereador, prefeito. O sistema é único e para entrar é preciso de pessoas. Todo mundo gosta de dinheiro. Eu sempre procurei entrar pelas secretarias de Esporte — afirmou.

Árbitros

Ao ser questionado pelo senador Carlos Portinho (PL-RJ) se o esquema de manipulação que comandava também contava com a participação de árbitros das confederações e da Fifa, Rogatto respondeu:

— Tinha árbitros também, dos dois. Um árbitro hoje oficial ganha em torno de R$ 7 mil por jogo, eu pagava R$ 50 mil para ele, o árbitro ganha pouco, o gatilho do futebol está na máfia, que é a confederação, é a CBF, que tem recursos e não passa. É tão simples, é uma matemática tão perfeita, não vê quem não quer. Está tão feio que, como não acontece nada, o sistema não faz nada, você vem e oferece um dinheiro fácil. Isso é um gatilho da corrupção que temos no Brasil. Eu sou uma máquina que estou oferecendo para o atleta dinheiro fácil e dando dignidade para ele oferecer comida ao filho dele — afirmou.

No depoimento, Rogatto admitiu que enganou Dayana Nunes, presidente da Sociedade Esportiva de Santa Maria (DF), ouvida pelos senadores após depoimento do empresário.

— Quem me colocou para enganar a presidente da Santa Maria foi o próprio presidente da federação. Ele disse “vai ali que é frágil, não tem dinheiro, encosta. O marido enfartou ou sei lá, a mulher não entende de futebol e precisa de investidor”. E eu vim a rebaixar o Santa Maria. Ela acabou sendo vulnerável a mim — afirmou.

“Vida cara”

Rogatto disse ainda aos senadores que atua em nove países, em virtude das “brechas do sistema”.  

— Eu tenho nove países diferentes em apostas, eu pago caro para o atleta e também gosto de ganhar. Hoje eu uso nove países diferentes. Na semana passada eu fiz dois jogos na Colômbia, na primeira divisão. O sistema está fazendo que eu não pare. Querendo ou não, a gente tem uma vida cara, sabe como é, viver na Europa. Eu preciso fazer jogos, sou réu confesso, não consigo parar porque o sistema está me dando brechas — afirmou.

O empresário revelou que já faturou aproximadamente R$ 300 milhões desde a criação do esquema de manipulação.

— Inclusive, entrei num ramo de ouro na África e perdi quase metade. O bom enganador também é enganado. Infelizmente, o que me dá dinheiro é rebaixar time. Se o presidente do time não está preocupado com o time dele, eu vou estar? Eu ganho dinheiro perdendo jogo, entregando jogo. É por isso que eles me chamavam de rei do rebaixamento desde 2009. Eu sempre rebaixei clube, e clube grande, viu? O Coruripe, de Alagoas, e um time muito forte do Maranhão eu rebaixei. O melhor campeonato da minha vida é o carioca. Em São Paulo eu rebaixei alguns, também em Goiás, mas o maior alvo hoje são os clubes pequenos — afirmou.

Na avaliação de Rogatto, a manipulação favorece os atletas envolvidos no esquema irregular.

— Eu estou dando condições aos atletas de ter um salário hoje de time pequeno. As federações e a CBF estão pegando dinheiro de todo mundo e não dá nada. Eu sou apenas um lambari no meio do sistema. Eu também já fiz vôlei de praia e futsal — afirmou.

Santa Maria

Na mesma sessão, a comissão também ouviu a presidente da Sociedade Esportiva de Santa Maria (DF), Dayana Nunes, que compareceu ao colegiado, na condição de testemunha, a fim de prestar informações sobre a suspeita de manipulação de resultados esportivos por parte de alguns jogadores.

Ela disse que no final de 2023, após seu marido sofrer um AVC hemorrágico, assumiu o papel dele no comando do time durante o campeonato Candangão. O time não tinha dinheiro, apenas a vaga no Candangão. Nesse contexto, ela conheceu Rogatto, que lhe propôs a compra do Santa Maria, dado o interesse de adquirir um time no Distrito Federal. Ela disse, porém, que ele poderia tocar o time em 2024. Ele aceitou, desde que ficasse com R$ 700 mil se ganhasse a vaga.

— Quem consegue ganhar o Candangão vai para a Copa do Brasil e tem direito a esses R$ 700 mil. Eu falei para ele que tudo bem, a gente nunca ganhou dinheiro com futebol em Brasília. Eu não tinha interesse em ganhar dinheiro, o meu interesse era manter o Santa Maria, porque se eu não apresentasse o meu time na data certa, ele cairia automaticamente. Era o meu maior medo, e foi o que aconteceu. Foi o que me desestabilizou, me levou a duas internações. Meu time estava na primeira divisão, meu time valia por baixo R$ 2 milhões. Depois que o William veio e rebaixou, ele foi para R$ 300 mil — afirmou.

Emocionada, Dayanna disse que não conseguiu “ver malícia” na atuação de Rogatto, visto que o time passou a contar com recursos, organização, contas pagas e salários em dia. Até então, o time contava apenas com o apoio do BRB, insuficiente para as despesas da agremiação.

— Na minha mente estava tudo tranquilo, tudo organizado. Comecei a perceber que tinha algo errado quando a gente começou a perder. De oitos jogos, eu ganhei um único jogo, e não empatei nenhum; eu perdi para o lanterna. Eu achava que ele [William] estava do meu lado, ele foi um artista muito bom. Eu larguei tudo, fui internada, não consegui entender como uma pessoa consegue fazer esse mal para o outro. Eu abri meu coração e ele pegou tudo isso e viu a vulnerabilidade, uma mulher ferida. Não tive o apoio nem dele nem da federação, eu estava realmente sozinha. Eu nunca imaginei chegar num ponto de me ver sentada numa cadeira de uma CPI, mesmo como convidada. Eu nunca peguei um real do William — afirmou.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)