José Sarney: 'O coração da democracia é o Parlamento'

Rodrigo Baptista | 16/08/2024, 13h01

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É impossível contar a história recente do Brasil e dos 200 anos do Senado sem citar o nome de José Sarney. Dono de uma trajetória singular, Sarney é um dos raros brasileiros a ter chefiado o Poder Executivo e o Legislativo. Foi o primeiro presidente civil após 24 anos de ditadura militar e o mais longevo político do país — em 2024, completa 70 anos de vida pública. No Senado, onde passou 38 anos, presidiu a Casa por quatro vezes. Foram oito anos na cadeira localizada sob o busto de Ruy Barbosa, patrono do Senado Federal. Mais do qualquer outro desde o Império.

Aos 94 anos, Sarney repassa sua trajetória política, relembra momentos-chave da transição democrática e afirma: o Parlamento é o “coração” da democracia. Em entrevista à TV Senado, sustenta que, ainda que seja alvo constante de críticas da sociedade, o Congresso Nacional é o espaço de garantia e manifestação da democracia

— Se não existe Parlamento, não existe democracia. O coração da democracia é o Parlamento. Quando o Parlamento não existe, a democracia não existe. Um Parlamento forte é uma democracia forte — afirma.

Maranhense nascido no município de Pinheiro (MA), em 24 de abril de 1930, Sarney foi testemunha e protagonista de vários momentos históricos do país. Ingressou na política em 1954. Depois de dois mandatos como deputado federal, foi governador do Maranhão (1966-1970). Chegou ao Senado em 1971, durante a ditadura militar, quando era filiado à Arena, o partido governista. 

Embora fosse um novato na Casa, Sarney foi prontamente acolhido pelo denominado "Sacro Colégio dos Cardeais", um grupo de políticos experientes dedicados a preservar o funcionamento do Congresso. Integravam a seleta turma nomes como Daniel Krieger, Amaral Peixoto, Magalhães Pinto e Franco Montoro.

— Fizemos um pacto: quando a coisa ficasse paroxística, em uma luta entre o Congresso e os militares, nós não deixaríamos fechar o Congresso, nós abdicaríamos o que fosse possível, mas não deixaríamos fechar o Congresso. Eu acho que esse é um serviço prestado ao Brasil por esses homens que constituíam o Sacro Colégio — diz Sarney na entrevista ao programa Salão Nobre, em edição especial pelos 200 anos do Senado.

Pacote de Abril

Apesar da articulação do grupo, o fechamento do Parlamento foi inevitável durante um período específico. O então presidente da República, general Ernesto Geisel, valeu-se do Ato Institucional nº 5 (o AI-5) e fechou o Congresso no dia 1º de abril de 1977 — ou, como definiu o mandatário, colocou o Congresso “em recesso”. 

O pretexto foi a rejeição, pela Casa, da proposta de reforma do Judiciário, mas a preocupação do governo era evitar nova vitória eleitoral do partido de oposição, o MDB, nas eleições de 1978. Em 1974, a legenda havia elegido 16 das 22 vagas disputadas para o Senado.

— O Geisel queria fazer a reforma do Judiciário. Havia uma reação muito grande. Ninguém queria fazer reforma do Judiciário no Congresso. Então nós trabalhamos na surdina, todos os partidos [para rejeitar], e o Geisel decretou o recesso —  recorda. 

Durante as duas semanas em que Senado e Câmara paralisaram seus trabalhos, o governo elaborou uma série de medidas para garantir maioria no Poder Legislativo, em especial no Senado. O conjunto de normas ficou conhecido como Pacote de Abril. Entre as medidas, estava a previsão de eleição indireta de um terço dos senadores, a serem escolhidos por um colégio eleitoral constituído por deputados das assembleias legislativas e por delegados das câmaras municipais. A imprensa e a população apelidaram os novos parlamentares de "senadores biônicos".

Extinção dos atos institucionais

Já com o Congresso em pleno funcionamento e com uma crescente demanda popular pela volta da democracia, coube a Sarney a missão de relatar, em 1978, a proposta de emenda à Constituição que daria origem à Emenda Constitucional 11.  A medida extinguiu os atos institucionais do período ditatorial e restabeleceu a pluralidade partidária.

Segundo Sarney, sua atuação, mesmo na base do governo, nunca foi pautada pela defesa do regime militar, mas de determinados projetos.

— Eu nunca fiz discurso de defesa do regime militar. Eu sempre fazia discurso defendendo determinada coisa — afirmou.

O então senador apontou, em seu parecer, que a emenda não acabava com o autoritarismo, mas representava o começo de um longo processo de transição. Para Sarney, o melhor caminho para o fim do governo militar seria pela via institucional.

— Na surdina, nós tentávamos que na realidade o Parlamento não fosse atingido, mas tudo que nós fazíamos tinha um objetivo maior: que nós voltássemos à plenitude democrática e ao Estado de direito o mais rapidamente possível. Porque tínhamos a convicção que inevitavelmente o Brasil chegaria a esse ponto. Agora, nós não queríamos chegar pela revolução, e sim pela pela reforma — disse.

Sarney também recordou os embates com Ulysses Guimarães (1916-1992), então deputado federal e um dos líderes da oposição ao regime.

— Eu fui relator porque o Geisel achava que eu tinha uma boa relação com todos os partidos. Muitas vezes eu combinei com Ulysses os discursos que nós tínhamos que fazer. Ele fazia o discurso [na Câmara] e eu ia assistir. Eu fazia um discurso [no Senado] e ele assistia ao meu discurso — relembrou.

Diretas Já

Outro episódio que marcou Sarney aconteceu em 1984, quando a emenda Dante de Oliveira (para a volta das eleições diretas) estava em votação na Câmara dos Deputados. Sarney era presidente do PDS, partido que sucedeu a Arena e, mesmo com a orientação contrária da legenda, seu filho, o deputado federal Sarney Filho, votou a favor da volta das eleições diretas para presidente da República. Apesar da campanha das Diretas Já, faltaram 22 votos na Câmara para o texto seguir para o Senado.

—  Fiz discurso contra as diretas. Meu filho votou pelas diretas, e o que eu fiz? Eu fui ao presidente da República e disse: eu vim lhe entregar o lugar de presidente do partido do governo. Para surpresa minha, o Figueiredo (então presidente ) me disse: "Sarney, hoje nós não controlamos mais nossos filhos". Eu disse, então: "Eu fiquei orgulhoso do meu filho". E ele respondeu: "Eu também ficaria" — contou.

Transição democrática

Ao todo, Sarney ficou quase quatro décadas no Senado desde que estreou na Casa, em 1971, e se despediu dela, em 2015. O único período em que passou fora foi entre 1985 e 1990, quando teve a missão de ser o primeiro presidente civil após os 24 anos do regime militar. Mas a chegada ao Palácio do Planalto foi resultado de amplas negociações e uma tragédia: a morte de Tancredo Neves. Sarney exalta a construção política que tornou viável a transição para a democracia.

— Conseguimos sair sem que realmente tivéssemos uma ruptura, uma guerra civil que levasse o povo brasileiro a uma decisão de sangue. Nós não fizemos isso. Fizemos com uma construção política admirável. Eu confesso que botei um pouquinho da minha mão nessa construção — avalia. 

Já filiado ao MDB, Sarney entrou como vice-presidente na chapa com Tancredo Neves. A composição foi possível depois que ele e outros dissidentes do PSD contrários à indicação de Paulo Maluf deixaram o partido governista. Ele explica a aliança que levou à eleição de Tancredo Neves para presidente da República.

— Eu acho que a minha renúncia possibilitou a vitória do Tancredo, porque nós levamos ao Tancredo no colégio eleitoral o número de delegados que ele precisava para vencer a eleição para presidente — argumenta.

Constituinte

Sobre o seu período à frente do governo federal, Sarney destaca como principal legado a bem-sucedida transição democrática e a construção da nova Constituição brasileira, promulgada em 1988. 

— Eu disse a Ulysses [presidente da Assembleia Nacional Constituinte]: Sem Constituição não temos transição. Nós todos fracassaremos. Então, vamos fazer de tudo para votarmos a Constituição [...] Hoje, os ventos da liberdade que tem na nossa terra foram feitos justamente durante aquele governo. Sem Constituição não teríamos transição democrática. Fizemos a Constituição e eu entreguei a transição democrática — conta. 

Projetos

Em 1991, José Sarney retornou ao Senado, desta vez representando o recém-criado estado do Amapá. Durante seu extenso período de serviço na Casa, Sarney foi eleito quatro vezes como presidente: de 1995 a 1997, de 2003 a 2005, de 2009 a 2011 e de 2011 a 2013. Em 2014, anunciou sua aposentadoria, que ocorreu no final de seu mandato, em 2015.

Ao longo de sua atuação no Senado, Sarney deixou um legado significativo, incluindo o PLS 158/1996, proposta que obrigou o governo a fornecer gratuitamente toda a medicação necessária para o tratamento do vírus HIV pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O projeto deu origem à Lei 9.313, sancionada em 1996.

Apresentei o projeto e ele foi aprovado. Foi para a Presidência da República. Houve uma reação de que iriam vetar; eu fui lá e disse ao Fernando [Henrique Cardoso]: "Olha, não vete, senão o senhor vai me ter como adversário"  recordou. 

Cultura, a principal bandeira

Mas a principal bandeira do senador Sarney sempre foi a cultura. Nas décadas de 1970 e 1980, o parlamentar apresentou vários projetos voltados para o setor, mas as propostas não prosperaram e foram arquivadas. Em 1986, na Presidência da República, Sarney conseguiu a aprovação de um projeto do Executivo que culminou na Lei 7.505, também conhecida como Lei Sarney. A legislação permitiu a dedução de impostos para doações, patrocínios e investimentos em cultura. Foi o embrião da Lei Rouanet, de 1991.

Nunca ninguém tinha discutido um projeto de incentivo à cultura. Eu apresentei em 1972 esse projeto de incentivo e foi uma revolução. Eu tive a causa parlamentar da cultura, apresentei muitos projetos sobre cultura, sobre a leitura, sobre a difusão do livro, apoio a editoras. Muitos projetos foram apresentados por mim — assinala.

Cotas para negros

Sarney também foi o autor de uma proposta pioneira de cotas para negros no Congresso. Em 1999, ele apresentou um projeto de lei que estipulava uma cota mínima de 20% para a reserva de vagas em concursos para cargos públicos, bem como em instituições de ensino em todos os níveis — federal, estadual e municipal — e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). 

Embora a proposta tenha sido aprovada pelo Senado, o texto foi incorporado ao Estatuto da Igualdade Racial e acabou retirado na versão final referendada pela Câmara dos Deputados.

— O projeto de cotas para negros marcou a minha passagem pelo Congresso. Eu apresentei o projeto e, a partir daí, o tema entrou no debate nacional e hoje é uma realidade — destacou.

Modernização do Senado

No comando do Senado, Sarney foi o responsável por implantar o sistema de comunicação da Casa. O primeiro veículo foi o Jornal do Senado, criado em 1995. TV, Rádio, Agência Senado e a área de relações públicas vieram na sequência.

Também foi durante a sua gestão que foram criados o Instituto Legislativo Brasileiro (ILB), o Centro de Consulta Popular e o Alô Senado. Sarney recorda outras medidas adotadas na sua gestão:

 — Eu sairia frustrado se eu não dissesse que eu fui o modernizador do Senado. Eu convoquei a Fundação Getúlio Vargas duas vezes, uma para fazer a reforma relativa à atividade legislativa e outra relativa à área administrativa. O Senado hoje é uma repartição exemplar, com os melhores funcionários do Brasil — finalizou Sarney, que se diz um "apaixonado" pela Casa.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)