MP da regularização fundiária divide opiniões em comissão mista
Da Redação | 04/03/2020, 21h29
Em audiência pública promovida nesta quarta-feira (4) pela comissão mista destinada a analisar a MP 910/2019, medida provisória que estabelece novos critérios para a regularização fundiária de imóveis da União e do Incra, a maior parte dos debatedores questionou a eficácia da proposta em reduzir conflitos agrários e controlar violações ambientais. Especialistas convidados também questionaram a constitucionalidade da MP e classificaram o procedimento de autodeclaração sem vistoria como lesivo às comunidades tradicionais e aos pequenos agricultores.
A regularização de que trata o texto inclui assentamentos ocupados até maio de 2014, com área de até 15 módulos fiscais. Com a medida, o governo diz que beneficiará cerca de 300 mil famílias. O módulo fiscal, que é uma unidade fixada para cada município pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), varia de 5 a 110 hectares.
O relator da medida, senador Irajá (PSD-TO), anunciou que apresentará seu parecer na próxima terça-feira (10). Segundo ele, foram apresentadas 542 emendas, mas descartadas todas aquelas que pudessem estimular o desmatamento, anistiar produtores inadimplentes ou legalizar a grilagem de terras.
- A ideia é tentar desburocratizar com transparência e responsabilidade o procedimento de titulação de terras da União, com atenção redobrada para os pequenos agricultores.
O senador Irajá mencionou algumas emendas incorporadas, como a que garante gratuidade de custos cartoriais para o registro do título de propriedade por pequenos produtores e a gratuidade de taxas do Incra, que encarecem o processo.
— Queremos simplificar e desburocratizar a vida do pequeno produtor, criando uma legislação que atenda a 99% dos brasileiros de boa-fé. Não estamos aqui para fazer lei para 1% de criminosos, que infelizmente existem. Estamos atentos e preocupados em fazer uma lei que seja justa, que permita dar transparência e segurança jurídica aos produtores do país — afirmou.
Para Oriel Rodrigues de Moraes, advogado da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a MP contraria a Constituição. Ele disse estar preocupado com o tratamento destinado às terras coletivas, como as ocupadas pelos quilombolas, em face da autodeclaração.
— É um grande desafio, um grande medo e uma grande insegurança para a gente. Imagine qualquer um ir lá e dizer que é dele as terras que os quilombolas usam há mais de 200 anos — afirmou.
Elias d’Ângelo Borges, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), criticou o que chamou de política de esvaziamento do Incra. Para ele, os termos da MP beneficiam quem tem mais condição econômica para solicitar a regularização de terras, o que resultaria em procedimentos que ignoram as famílias que lá vivem.
— Para nós, que discutimos a democratização das terras no Brasil, a MP vem na contramão — lamentou, citando a possibilidade de aumento da insegurança jurídica e de conflitos violentos no campo.
Saulo Ferreira Reis, representando a Comissão Pastoral da Terra (CPT), também considera a MP superficial. A autodeclaração, diz ele, pode contribuir para a grilagem de terras, pois não afere objetivamente quem tem a posse da terra. Ele chamou atenção para o grande passivo de regularização de áreas indígenas e quilombolas, e pediu respeito aos direitos das pessoas que foram para a Amazônia incentivadas pelo próprio governo, em projetos de povoamento.
— É preciso levar em consideração as pessoas que produzem no campo e respeitam o meio ambiente — ressaltou.
Vistoria remota
Por sua vez, Hercules Jackson Moreira Santos, especialista em direito ambiental, afirmou que muitas pessoas esperam há décadas por seus títulos de propriedade porque o Estado não tem agilidade para promover a regularização fundiária. Para ele, a dispensa de vistoria, prevista na MP, poderia ser complementada pela vistoria remota, desde que regulamentada.
— Com a vistoria remota, temos condições de identificar uso, gozo e condições de produtividade da propriedade — disse.
Santos não vê inconstitucionalidade da dispensa de vistoria, argumentando que o Supremo Tribunal Federal (STF) já declarou que a vistoria remota é permitida. Ele defendeu a função social da propriedade, mas disse ser “perfeitamente cabível” a regularização de áreas que apresentem passivo ambiental: se assim não fosse, disse, seria impossível a regularização da Amazônia Legal.
Gerd Sparovek, professor da Universidade de São Paulo (USP), mostrou estudos de análise da malha fundiária nas glebas federais da Amazônia. Ele sublinhou que as terras pendentes de regularização equivalem à área somada dos estados do Paraná e de São Paulo. O professor concluiu que a dinâmica de ocupação das glebas públicas é menos afetada pela alteração das leis do que pelo efetivo controle do desmatamento ilegal.
— O que faz a taxa de conversão [de floresta para terra desmatada] não é a regra fundiária, mas a regra ambiental.
Sparovek ressalvou que a MP sinaliza uma tolerância com a ocupação de áreas maiores e com o alongamento de prazos para regularização, e o texto poderia ser modificado de modo a não sinalizar um “processo contínuo” nesse sentido. Porém, ele considera preferível promover a ocupação ordenada do que permitir a ocupação espontânea.
A deputada Aline Sleutjes (PSL-PR) contestou os argumentos contrários à MP. Ela considera a medida provisória benéfica aos pequenos e médios ocupantes que atualmente não conseguem apoio para suas atividades. O deputado Vilson da Fetaemg (PSB-MG) ressaltou a necessidade de regularização fundiária, mas pediu limites à vistoria remota.
O deputado Sidney Leite (PSD-AM) associou a falta de regularização fundiária à incidência de desmatamento ilegal, e somou-se aos que pediram mais recursos para o Incra. O deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) previu que a MP resultará em favorecimento aos grandes invasores e aumento do desmatamento. O deputado Valmir Assunção (PT-BA), por sua vez, criticou a ineficácia das leis fundiárias e denunciou a falta de interesse no apoio à agricultura familiar.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
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