Senado do Império estudou transposição do Rio São Francisco
Ricardo Westin | 05/06/2017, 10h59
Assim que as comportas da barragem cravada na divisa de Pernambuco com a Bahia se abriram, as águas represadas do Rio São Francisco caíram num imenso canal de concreto e rolaram com fúria rumo ao norte, para dar vida às terras mais ressequidas do sertão.
A cena se deu em março, e quem acionou o botão das comportas foi o presidente Michel Temer. Após uma década de obras, era inaugurado o primeiro canal, com 220 quilômetros de extensão, da faraônica transposição das águas do Rio São Francisco. O outro canal, com 270 quilômetros, está quase pronto e irrigará outras paragens do semiárido.
Embora só agora se torne realidade, o sonho de fazer o sertão virar mar tem pelo menos dois séculos. O primeiro plano de transposição de que se tem notícia remonta à década de 1810, no fim da Colônia, mas a ideia só começaria a ser levada a sério anos mais tarde, no Império. Dom Pedro II esteve bem perto de executar o “encanamento” (a palavra usada na época) das águas do Rio São Francisco.
Documentos históricos sob a guarda do Arquivo do Senado e do Arquivo da Câmara mostram que vários projetos de lei que previam a transposição passaram pelas mãos dos senadores e deputados do Segundo Reinado.
— Basta fazer um canal. Não é difícil. Cavar e atirar a terra para os lados pouco custa. As mesmas águas que correm farão o resto — disse o deputado França Leite (PB) no Plenário em 1846.
— Uma enxada dirigida por um homem pode levar água até o fim do mundo — insistiu no argumento o deputado Venâncio de Rezende (PE) em 1852.
As secas cíclicas castigam o Norte (como se chamava a porção do país acima de Minas Gerais) desde sempre, dizimando plantações, matando rebanhos e levando sede, fome, doença e miséria à população. Mesmo assim, nenhum dos projetos do Parlamento imperial que previam o “encanamento” vingaria.
Mississipi brasileiro
Da nascente à foz, o São Francisco mede 2.700 quilômetros — quase a mesma distância entre Porto Alegre e Maceió. É o maior rio localizado integralmente no Brasil. As águas brotam no alto da Serra da Canastra, em Minas Gerais, correm para o Nordeste, banham cinco estados (Minas, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe) e caem no Atlântico. Por percorrer uma faixa tão extensa do país, ganhou o apelido de Rio da Integração Nacional. No Império, era Rio “de” São Francisco.
— O Rio de São Francisco é o nosso Nilo, o nosso Mississipi — comparou o senador Fernandes da Cunha (BA) em 1871. — Quem lança os olhos para o nosso sistema hidrográfico vê os Rios Paraná e Paraguai circulando todo o Império ao sul, vê no norte o vasto oceano do Rio Amazonas e vê no centro o patriarca das águas interiores do Império, o caudaloso São Francisco, rolando plácida e majestosamente.
Quando cruza o semiárido, o São Francisco enfrenta escassez de chuva, evaporação intensa e falta de afluentes permanentes. Embora seu volume baixe, o rio se mantém relativamente caudaloso, o que faz de suas margens um enclave verde em pleno sertão. A transposição busca espalhar outros oásis pelo semiárido adentro.
No século 19, o Senado e a Câmara analisaram tanto projetos de lei que criavam comissões de engenheiros para desenhar o trajeto dos canais de água quanto projetos que liberavam as verbas necessárias para tirá-los do papel. Os primeiros foram aprovados. Os segundos, não.
Cada proposta previa uma província do Norte como a receptora das águas — Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte ou Paraíba, a depender da origem do senador ou deputado autor da proposta.
Na batalha interprovincial pela cobiçada vazão do Rio São Francisco, os parlamentares mais aguerridos foram os cearenses. Eles sonhavam com um rio artificial que alimentasse o Riacho dos Porcos e os Rios Salgado e Jaguaribe. Até hoje, os três secam nos meses de estiagem. Uma vez concluído o “encanamento”, eles se tornariam perenes.
Em 1850, o deputado Araújo Lima (CE) aproveitou a discussão sobre um projeto que reajustaria o salário dos juízes e desviou o debate para a transposição:
— No exame da conveniência de elevar o ordenado da magistratura, perguntarei: acaso não existem no país necessidades que com maior força podem ser satisfeitas? O Ceará carece de melhoramentos materiais. É preciso que se empreguem os meios convenientes para fazer desaparecer as secas que o assolam. Entre esses meios, o que se aponta como o mais apropriado é um canal que comunique o São Francisco com o Salgado.
O deputado continuou:
— Na falência de melhoramentos materiais, o Ceará será despovoado, reduzido a um deserto. Dispensará, portanto, as vantagens de uma boa magistratura, porque os desertos não precisam de Justiça. Despesas com a abertura do canal, portanto, serão infinitamente mais úteis do que com a elevação dos vencimentos da magistratura.
Orçamento e compasso
Em 1864, o deputado Liberato Cardoso (CE) recorreu a uma estratégia mais criativa. Ele narrou um cruzeiro iniciado em Minas:
— Nosso barquinho foi contemplar as maravilhas do Mississipi brasileiro. Ao chegar à província de Pernambuco, em vez de continuar pelo São Francisco, virei de proa, sulcando as águas do canal que se abriu do Cabrobó [PE] ao Riacho dos Porcos. Saudando a Serra do Araripe e a rica cidade do Crato [CE], entrei pelo Rio Salgado. Deixando à minha direita a bela e risonha cidade do Icó [CE], tomei o Rio Jaguaribe.
Com tantos detalhes, os colegas que o escutavam sentiram como se estivessem a bordo do navio. O deputado prosseguiu:
— Saudando a cidade de Russas [CE], reclinada em seus verdes tabuleiros de relva, eu contemplava em poucas horas o teto de meu berço na rica e industriosa cidade do Aracati [CE], onde da borda do navio dei um aperto de mão nos meus amigos e parentes, que me cumprimentavam do cais. Lançando um derradeiro olhar de saudades para a terra do meu berço, eu volvia os olhos para o Atlântico. Em poucas horas, eu via alvejar as torres da catedral de Fortaleza por entre os coqueirais da praia.
Terminada a narrativa, Liberato Cardoso trouxe os deputados de volta à realidade. Aquele lindo cruzeiro jamais fora feito. Motivo: faltava o canal que unisse o São Francisco aos rios cearenses.
— Esse sonho, senhores, pode ser realidade no futuro — continuou ele. — O que convém? Que não viajemos com a imaginação, e sim com o orçamento em uma mão e o compasso na outra.
Em outras palavras, a transposição exigia dinheiro e conhecimentos de engenharia. Na avaliação dos defensores da obra, o Império dispunha tanto do “orçamento” quanto do “compasso”. O deputado paraibano França Leite afirmou em 1846 que o salário dos operários não pesaria nos cofres públicos:
— Aquela gente do Norte acha-se sem trabalho e não duvidaria ganhar a subsistência por meio do seu trabalho. Um homem trabalha um dia inteiro de enxada por 100 réis e de machado por 160 réis. Com salários tão baixos, o trabalho se pode fazer sem grande despesa.
Falas do trono
O mundo já dominava a técnica das grandes canalizações, lembrou o deputado Alencar Araripe (CE). Num pronunciamento em 1877, ele citou o Canal de Suez, no Egito, recém-aberto.
— Por que hesitaremos em empreender obras que tornem o Ceará um novo Egito, dando-lhe um Nilo, canais e lagos? Se a natureza recusou águas abundantes ao Ceará, o homem lhas dê — filosofou Araripe.
Dom Pedro II tocou com frequência no tema da estiagem nas falas do trono, os pronunciamentos que ele proferia duas vezes por ano no Senado. Em 1878, no meio de uma das secas mais violentas da história, discursou:
— O flagelo da seca devasta há quase dois anos uma parte considerável do Norte do Império, afligindo profundamente o meu coração. Para minorar as consequências de tamanha calamidade, tem o governo empregado os meios a seu alcance.
Os “socorros públicos” consistiam basicamente de cereais para a população carente e empréstimos para os fazendeiros.
As falas do trono nunca trataram da transposição. O tema, porém, constava da pauta do governo. Em 1852, dom Pedro II contratou o engenheiro alemão Henrique Guilherme Fernando Halfeld para elaborar dois projetos: um que tornasse o São Francisco integralmente navegável e outro que desviasse água do rio para outros pontos do semiárido. Os croquis de Halfeld seriam engavetados.
Uso político da seca
O que movia dom Pedro II não era exatamente a benevolência. Ao mostrar-se consternado com o infortúnio dos “nortistas” abatidos pela seca, ele tinha um objetivo não declarado. O historiador Gabriel Pereira de Oliveira, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e estudioso do São Francisco no Império, explica:
— No século 19, a ideia de nação ainda não estava cristalizada no Brasil. As províncias mais distantes não se sentiam parte do Império, e havia o temor de que nelas explodissem movimentos separatistas semelhantes aos da Colônia e da Regência. Dom Pedro II, então, se apoiou na seca para forjar a imagem do imperador que não se descuidava de nenhum ponto do país e criar nos nortistas o sentimento de que não sobreviveriam sem ele.
Por essa razão, o monarca fez em 1859 uma excursão ao Norte e conheceu o São Francisco. Ele, contudo, não conseguiu nem sequer iniciar a transposição. Faltou o apoio do Parlamento. Os senadores e deputados rejeitaram, ano após ano, todas as emendas ao Orçamento imperial que destinavam verbas à obra.
Segundo o historiador Pereira de Oliveira, do IFRN, o “encanamento” do Rio São Francisco não foi aprovado por causa da briga entre as províncias:
— Os senadores e deputados do Norte estavam rachados, cada um querendo que a sua província fosse a beneficiada. E os parlamentares do restante do Império boicotaram todos os planos, desejosos de que a fortuna a ser consumida pela transposição fosse destinada a obras em suas próprias províncias.
A falta de consenso no Parlamento fica clara num embate ocorrido em 1852. O deputado pernambucano Venâncio de Rezende disse que era preciso “dar vida ao Ceará”, onde “homens se deitam ricos e acordam pobres” por causa da seca. Ele apoiava o projeto cearense porque, para chegar ao Ceará, o canal teria que cruzar Pernambuco.
— Temos de fazer um canal do Rio de São Francisco que, atravessando esses sertões estéreis, não só lhes leve a fertilidade, como vias de comunicação.
— Isso nem os americanos do norte fariam — retrucou o deputado Santos e Almeida (MA), afirmando que uma obra de tal grandeza era impossível.
— O nobre deputado não conhece os norte-americanos. Se lá fosse, veria que um canal julgado impossível foi feito só com despesas do estado de New York — argumentou Rezende, citando o canal navegável de 600 quilômetros entre o Lago Erie e o Rio Hudson, inaugurado em 1825.
— Os americanos do norte não seriam capazes de fazer passar para o Ceará o Rio de São Francisco — insistiu Santos e Almeida.
Em 1846, o deputado Francisco José da Silva (SE) recorreu ao aspecto financeiro para pedir a rejeição de um projeto que beneficiaria o Ceará:
— Quanto não seria preciso para a canalização do Rio de São Francisco pelas províncias flageladas, atravessando mais de 400 léguas? É preciso incluir no cálculo a hipótese de encontrar rochedos que tenham de ser abertos para dar passagem ao rio. O país não pode com tal despesa.
O historiador do IFRN explica:
— As províncias que esperavam pelas águas do São Francisco não tinham força para aprovar os projetos. Eram pobres, pequenas e sem peso político. Em meados do século 19, o Piauí contava com apenas 3 deputados e o Ceará, com 5. Não tinham como brigar no Parlamento com as províncias poderosas. Minas Gerais, por exemplo, era representada por 20 deputados.
Os parlamentares que pediam a transposição se irritavam com o desequilíbrio político. Como consequência, segundo eles, suas províncias eram tratadas pelo Império a pão e água enquanto as províncias poderosas nadavam em privilégios.
— O Ceará não é considerado para os benefícios. Só é considerado para dar soldados e dinheiro para o Império — queixou-se o senador Pompeu (CE) em 1871.
— Nunca mais acabará o sacrifício do Império a bem da dotação das empresas [empreendimentos] do Sul? Nunca raiará a aurora dadivosa em que deve começar o desenvolvimento do Norte do Império? — questionou no mesmo ano o senador baiano Fernandes da Cunha, apesar de sua província ser uma das mais influentes.
— As províncias que são amparadas com grandes representações podem tudo, conseguem facilmente os favores do governo, o que não acontece com as outras, haja vista a minha pouco afortunada província — lamuriou-se o senador Mendes de Almeida (MA) em 1874.
— Tudo se concede para Minas, ao passo que para o Ceará é preciso pedir licença, uma petição com muito cuidado, um “espero receber mercê” — comparou o senador Viriato de Medeiros (CE) em 1884.
Bancada desunida
Outro problema contribuiu para que a transposição naufragasse: nem sequer os parlamentares cearenses caminhavam unidos. Embora a maior parte dos projetos beneficiasse o Ceará, houve senadores e deputados da província que, incrivelmente, votaram contra as obras.
Numa audiência na Câmara em 1854, o deputado Jerônimo Macário (CE) disse ao ministro dos Negócios do Império, Visconde do Bom Retiro, que seria um erro o Império “mandar engenheiros examinarem as possibilidades de um encanamento de águas do Rio São Francisco” até o Ceará:
— O melhoramento de que o nobre ministro quer dotar o Ceará não é aquele de que se deveria ocupar. Esse melhoramento promete frutos tão tardios, que me faz desanimar. Oxalá, porém, que os frutos sejam apenas tardios, e não uma quimera [utopia].
A falta de unidade da bancada cearense tinha origem política, segundo o historiador Pereira de Oliveira. A transposição levaria água do São Francisco para localidades cearenses como Crato e Aracati. Fortaleza e Sobral, situadas no outro lado da província, não teriam ganho nenhum. Temendo perder a supremacia, a elite dessas duas grandes cidades agiu para barrar a transposição e impedir a ascensão do Crato e de Aracati. O deputado Jerônimo Macário era de Sobral.
O plano de irrigar pontos do semiárido com água do São Francisco ressurgiria de tempos em tempos. Presidentes como Epitácio Pessoa, João Figueiredo e Itamar Franco tentaram executar a obra, sem êxito. As prioridades acabaram sendo os açudes, os poços artesianos e as cisternas.
Após dois séculos de promessas, os canais do Rio São Francisco começaram a ser abertos em 2007, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O primeiro canal está pronto. O segundo, quase concluído, depende do julgamento de uma ação judicial movida por empreiteiras que disputaram a licitação. Quando toda a obra terminar, a água chegará a 400 cidades de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, beneficiando 12 milhões de pessoas.
A transposição está sob a responsabilidade do Ministério da Integração Nacional. O senador Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE), titular do ministério de 2011 a 2013, diz que a obra é o pagamento de “uma dívida histórica do Brasil com os nordestinos”.
— O Nordeste foi o responsável por praticamente toda a riqueza nacional nos primórdios da nossa história, com a cana-de-açúcar e o algodão. Depois foi esquecido pelos governos. Se a transposição tivesse sido feita lá atrás, tantos nordestinos não teriam vivido na miséria, migrado, morrido. O Nordeste não seria hoje lembrado pela pobreza.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
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